“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus […] E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai” (Jo.1.1,14)
Cada evangelho começa de um modo peculiar. Mateus inicia com a genealogia de Jesus (Mt.1.1-17); Marcos começa com o precursor, aquele que fora enviado para preparar o povo para a chegada do Messias prometido (Mc.1.2-8); Lucas se dedica a contar os mínimos detalhes dos acontecimentos que antecedem o nascimento de Jesus até sua maturidade, quando começará oficialmente seu ministério da pregação da Palavra de Deus (Lc.1.1-2.52); e, por fim, João conduz seus leitores à eternidade do Filho de Deus, fazendo-nos recorrer ao primeiro versículo do Antigo Testamento: “No princípio, criou Deus os céus e a terra” (Gn.1.1).
A genealogia que dá início ao evangelho de Mateus nos mostra que a humilhação do Filho de Deus começou muito antes de seu nascimento, e sua identificação com o ser humano passou por uma longa jornada. Ao mesmo tempo, podemos dizer que Mateus pretende apresentar o elemento glorioso da genealogia, pois Cristo é filho de patriarcas e reis, motivo de glória, principalmente, para os judeus. Humilhação e exaltação acompanharão toda a jornada de Cristo que culmina com a humilhação da cruz e a exaltação de sua ressurreição. No glorioso culto revelado pelo livro de Apocalipse, Cristo é o “Leão da tribo de Judá, a Raiz de Davi, venceu para abrir o livro e os seus sete selos” (Ap.5.5) e, também, “Cordeiro como tendo sido morto” (Ap.5.6). Sem a humilhação de Cordeiro não haveria a vitória do Leão, e a genealogia de Mateus nos mostra ambos os aspectos da vida e ministério do Filho de Deus.
Vários dos personagens da genealogia de Mateus foram agraciados com alguma glória aparente. Alguns são patriarcas: Abraão, Isaque, Jacó, Judá; outros são reis: Davi, Salomão, Roboão, Abias, Asa, Josafá, Jorão, Uzias, Jotão, Acaz, Ezequias, Manassés, Amom, Josias, Jeconias. Ser descendente de Davi, mesmo sem que tenha exercido o ofício da realeza, é algo importante, pois Davi foi um homem muito agraciado pelo Senhor. Essa glória aparente tornou-se pedra de tropeço para muitos judeus do primeiro século. Eles esperavam um rei glorioso que fizesse jus ao fato de ser filho do “grande” patriarca Abraão e, também, do maior rei de Israel: Davi. Quando se depararam com um homem simples e humilde, sem lugar certo para morar e que convivia com publicanos e pecadores (Mt.8.20; 11.19), a liderança político-religiosa dos judeus ficou escandalizada e rejeito veementemente o Filho de Deus, razão para o terem enviado à cruz.
Parece-nos que os judeus não observaram importantes detalhes da genealogia do Messias prometido. Mateus faz questão de fornecer esses detalhes, mostrando que o evangelista não estava interessado apenas em mostrar o aspecto glorioso da linhagem de Jesus, mas, também, pretendia mostrar que o glorioso rei de Israel, o Filho de Deus, veio para ser humilhado e a vida de seus antepassados já indicava a forma como o Filho de Deus cumpriria a obra redentora. Os mesmos personagens vistos com glória pelo status a eles conferido (patriarcas e reis) eram homens pecadores. A importância de se destacar o fato de todos eles terem sido pecadores é comprovada na presença das quatro mulheres gentias que foram agregadas à linhagem, dentro de um contexto vergonhoso: Tamar, Raabe, Rute e Bate-seba. Desse modo, a humilhação do Filho de Deus começa em seu berço, tendo sido destinado a nascer de homens e mulheres pecadores.
Apesar do status a eles conferido, a história dos personagens da Escritura está longe de ser plena de glória. Abraão teve um filho (Ismael) de uma escrava (Agar), pois Sara se impacientou com a demora do cumprimento da promessa divina (Gn.16), e, ainda, quase criou problemas para alguns reinos (Egito e Gerá) por esconder a verdade de que Sara era sua esposa, não apenas sua meia irmã (Gn.12.13-20; 20.1-18). O pecado de Abraão é destacado quando, mais adiante, seu filho Isaque comete o mesmo erro (Gn.26.6-11) dizendo que Rebeca era sua irmã (uma mentira completa), pois ela não era meia irmã de Isaque como Sara era meia irmã de Abraão. Em ambos os casos, as esposas foram expostas perante o mundo, correndo o risco de serem abusadas gratuitamente, pois, claramente, os maridos não estavam dispostos a dar a vida por elas. A vergonha desses fatos é que as esposas foram forçadas a dar a vida pelos maridos, pois os maridos não estavam prontos para isso. E Cristo nasceria como descendente de tais homens covardes. O Filho de Deus estava sendo humilhado muito antes de nascer.
Em seguida, encontramos o patriarca Jacó. Sua história é ainda mais problemática, pois ela começa com uma briga entre os irmãos gêmeos (Esaú e Jacó) em busca da bênção de seu pai, Isaque (Gn.27). A confusão é tão grande que Esaú decide, em seu coração, matar Jacó (Gn.27.41). Então, Jacó precisa fugir para a casa dos parentes de sua mãe. Estando lá, o problema só aumenta. Jacó se apaixona por Raquel, filha de Labão, irmão de Rebeca, mas é enganado e recebe a irmã, Lia, em seu lugar. No final, eles entram em acordo e Jacó casa com as duas irmãs: Lia e Raquel, dando início à poligamia entre os descendentes de Abraão. Como se não fosse suficiente, Lia e Raquel acrescentam a Jacó mais duas concubinas: Bila e Zilpa, que eram servas de Raquel e Lia, respectivamente. Dessa família de quatro esposas, nascem 12 filhos que mostrarão os problemas familiares no decurso de suas próprias histórias. Todos esses tristes acontecimentos formam a história da família na qual o Filho de Deus nasceria. Aquele que é eternamente glorioso, teria uma história dramática ao nascer de uma longa genealogia de pecadores.
A jornada continua marcada por diversas más escolhas e pecados de toda natureza. Judá coabita com a própria nora, Tamar, pensando ser uma prostituta (Gn.38); Salmom gera Boaz de uma prostituta, Raabe, da cidade de Jericó (Js.2 e 6); Mateus nos diz que Davi gerou Salomão “da que fora mulher de Urias” (Mt.1.6), lembrando-nos o triste adultério de Davi que cobiçou a mulher de um fiel soldado seu (2Sm.11). Com tantos pecados, a genealogia do Filho de Deus realça a grandeza das misericórdias do Senhor, dispensadas graciosamente por Deus que pacientemente suportou todos os pecados, mantendo-se fiel ao propósito de seu plano redentor, porque “se somos infiéis, ele permanece fiel, pois de maneira nenhuma pode negar-se a si mesmo” (2Tm.2.13). E em cada novo personagem do Antigo Testamento, o Filho de Deus é humilhado por seus pecados, proclamando antecipadamente seu sofrimento em favor dos pecadores para dispensar a eles as ricas misericórdias do Senhor, de modo que “onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Rm.5.20).
Glória e humilhação acompanham toda a história da redenção, como a beleza da concepção de uma vida que vai à luz através de profundas dores de parto (Ap.12). Deus não escolheu os melhores homens nem mudou seu plano após a constatação da drástica história de vida deles. O Filho de Deus nasceria de uma longa linhagem de pecadores para ser o legítimo representante de todos eles. Em nossos dias, os homens buscam o conhecimento de sua história na expectativa de que glórias passadas lhes proporcionem algum status presente. Mas, a genealogia do Filho de Deus nos revela a humilhação a que Ele estava destinado sofrer o salvador do mundo, a fim de glorificar o Pai com o cumprimento do magnífico plano redentor.
Cristo nasceu sem pecado algum, pois foi concebido pelo Espírito Santo no ventre de Maria (Lc.1.35). Mas, sua história carrega as profundas marcas da queda de Adão. Desse modo, o glorioso Filho de Deus não fez caso de ser humilhado muito antes de seu nascimento, porque sua missão era glorificar o Pai, manifestando o amor divino para com os pecadores criados à imagem e semelhança de Deus, “porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo.3.16). Conforme nos diz o apóstolo Paulo: “Deus prova o seu próprio amor para conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores” (Rm.5.8). Assim como Cristo amou seus antepassados os quais Ele decidiu que fossem sua família segundo a carne, Jesus também ama todos os que são inseridos na família de Deus (Ef.2.19), enxertados pela graça do Senhor (Rm.11.17-24).
Os homens buscam o nobre nascimento, a fama, o status, a glória e o poder. Cristo fez o percurso inverso, pois, sendo incomparavelmente glorioso, voluntariamente se humilhou, nascendo de uma linhagem marcada por homens e mulheres pecadores, para ser um de nós e nos redimir na cruz do Calvário. É interessante observarmos como a humilhação de Cristo com respeito à sua genealogia é aplicada por Paulo à vida da igreja de Filipenses e, também, Corinto, a fim de que os cristãos daquelas cidades buscassem e vivessem humildemente na presença do Senhor, gloriando-se somente em Cristo Jesus:
Filipenses 2:5-11 Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, 6 pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; 7 antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, 8 a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz. 9 Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome, 10 para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, 11 e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai
1 Coríntios 1:26-31 Irmãos, reparai, pois, na vossa vocação; visto que não foram chamados muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de nobre nascimento; 27 pelo contrário, Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes; 28 e Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são; 29 a fim de que ninguém se vanglorie na presença de Deus. 30 Mas vós sois dele, em Cristo Jesus, o qual se nos tornou, da parte de Deus, sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção, 31 para que, como está escrito: Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor
Deus não escolheu homens sobre-excelentes para fazer parte da longa linhagem de Cristo. O Senhor deu a pecadores comuns o privilégio de fazer parte da principal genealogia da história humana. Dentre essas pessoas comuns, ainda se encontram pessoas insignificantes aos olhos da sociedade, como foi Davi aos olhos de seu próprio pai (1Sm.16). E, assim, na humilhação pré-natal do Filho de Deus, o Senhor deu aos homens insignificantes a oportunidade de se gloriarem em alguém: no Messias prometido que se fez semelhante a eles para lhes dar a esperança de viverem dias de profunda e ampla glória: a vida eterna (Ap.21-22). E, enquanto Cristo exalta os mais insignificantes que se lançaram sobre Ele pela fé, também prostra por terra todos os arrogantes que se gabam de sua aparente glória (Lc.18.9-14; 1Pe.5.5-7), reduzindo-os a nada, pois o poder deles é nulo perante a profunda necessidade de serem justificados diante do Criador-Rei-Juiz de todo o universo.
Lucas 18:9-14 Propôs também esta parábola a alguns que confiavam em si mesmos, por se considerarem justos, e desprezavam os outros: 10 Dois homens subiram ao templo com o propósito de orar: um, fariseu, e o outro, publicano. 11 O fariseu, posto em pé, orava de si para si mesmo, desta forma: Ó Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros, nem ainda como este publicano; 12 jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de tudo quanto ganho. 13 O publicano, estando em pé, longe, não ousava nem ainda levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, sê propício a mim, pecador! 14 Digo-vos que este desceu justificado para sua casa, e não aquele; porque todo o que se exalta será humilhado; mas o que se humilha será exaltado.
A humilhação de Cristo sinaliza para todos os homens que Deus não faz acepção de pessoas, concedendo graciosa salvação a qualquer pessoa que creia em Jesus de todo seu coração. A igreja não é para alguns “poderosos”, mas para todos os pecadores indignos que se lançam esperançosos aos braços do bom pastor que deu a vida por suas ovelhas (Jo.10.11). Desse modo, a genealogia de Jesus proclama grande esperança para mendigos, prostitutas, marginalizados, escravos e todos os rejeitados por seu status social.
Ao longo da história cristã, principalmente todas as vezes em que a igreja é institucionalizada transformando-se em uma entidade de forte caráter político-religiosa, os cristãos são conduzidos pela falsa ideia de que a glória aparente reflete a glória do Reino de Deus. O poder é demasiadamente tentador e a vaidade do coração se deixa enganar facilmente por coisas aparentes. Construções luxuosas, vestes resplandecentes e suntuosas, fama e muita pompa iludem muitos líderes eclesiásticos e impõe muito peso sobre cristãos simples. Por essa razão, muitos crentes carregam em seu coração a falsa ideia de que é preciso ser grande e ter muito para Deus ser glorificado em suas vidas. Todavia, a Escritura nos revela exatamente o contrário. Um olhar atento à história da igreja verá que os verdadeiros cristãos, normalmente, estão desassociados da glória aparente da cristandade institucionalizada. A Palavra de Deus nos mostra que quando homens se gloriaram em si mesmos e naquilo que possuíam, Deus foi aviltado por eles: “havendo-se já fortificado, exaltou-se o seu coração para a sua própria ruína, e cometeu transgressões contra o SENHOR, seu Deus” (2Cr.26.16). Mas, quando os homens se humilharam na presença do Senhor, Deus foi glorificado, manifestando neles o seu glorioso poder:
Paulo foi escolhido por Deus para ser um grande instrumento do Senhor, um dos maiores escritores da revelação do Novo Testamento. O apóstolo plantou diversas igrejas pelo mundo antigo e calou a boca de muitos adversários do Evangelho. Contudo, nada disso aconteceu por haver algo especial nele, mas porque Deus quis manifestar seu poder na vida daquele que outrora havia perseguido a igreja de Cristo: “eu sou o menor dos apóstolos, que mesmo não sou digno de ser chamado apóstolo, pois persegui a igreja de Deus. Mas, pela graça de Deus, sou o que sou; e a sua graça, que me foi concedida, não se tornou vã” (1Co.15.9-10). Por isso, o próprio Paulo nos diz que “para que não me ensoberbecesse com a grandeza das revelações, foi-me posto um espinho na carne, mensageiro de Satanás, para me esbofetear, a fim de que não me exalte” (2Co.12.7). Deus não precisa de homens grandes, mas quer usar pecadores humildes:
2 Coríntios 12:9-10 Então, ele me disse: A minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza. De boa vontade, pois, mais me gloriarei nas fraquezas, para que sobre mim repouse o poder de Cristo. 10 Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias, por amor de Cristo. Porque, quando sou fraco, então, é que sou forte.
Devemos considerar, diante de tudo isso, que não é preciso ser grande, poderoso, erudito, forte ou rico para fazer a obra do Senhor. Jesus chamou homens comuns para serem profetas e, também, para serem apóstolos, a fim de colocarem os fundamentos de sua igreja: O Antigo e o Novo Testamentos. Sendo assim, você não deve se gloriar por algo que tenha recebido pela graça do Senhor nem deve desprezar aqueles que parecem nada ter, porque Deus é glorificado tanto em um quanto no outro, pois do Senhor vem a capacitação de todos para o cumprimento de sua vontade. Quando grandes e pequenos reconhecem a suficiência de Deus para a realização de toda obra, e o poder de Deus para usar qualquer um que Ele queira, independentemente de status e qualificações, o Senhor é exaltado por todos, até mesmo naqueles de quem nada se esperaria.
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