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quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Pastoreio bíblico - A sabedoria vem de Deus

 


mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, pregamos a Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus.” (1Co.1.24)

 

Rudolf Karl Bultmann (1884-1976) era um homem muito inteligente, mas não necessariamente sábio. Foi influenciado por acadêmicos como Karl Barth, Martin Heidegger, Adolf Harnack, Karl Müller, Hermann Gunkel, Friedrich Schleiermacher, entre outros. Destacou-se em algumas áreas do saber teológico, literário e filosófico. Possuía uma ampla leitura acadêmica, mostrando-se muito interessado em arte e literatura, sobretudo clássica; também se dedicou ao grego, ao latim e à história da Alemanha[1]. Em sua obra magna, Teologia do Novo Testamento, Bultmann mostrou conhecimento das ferramentas hermenêuticas e foi bem-sucedido em diversas análises de textos e conceitos do Novo Testamento, destacando-se pela criação do método denominado: Crítica da forma, estudado amplamente ainda hoje. Todavia, esse mesmo homem escreveu um livro que trata todo o sobrenatural dos evangelhos como mitos criados pelos cristãos primitivos[2].

Mas, como um homem tão inteligente, depois de examinar todo o Novo Testamento, pode afirmar que Jesus Cristo, como Filho de Deus (DEUS-HOMEM), é um mito criado pela igreja, e que a linguagem neotestamentária é mitológica[3]? Bultmann não conseguia compreender como Jesus Cristo, com todo poder e glória manifestos na vida, morte e ressurreição, poderia ser real. Ele não conseguia ver em Jesus mais do que um homem revolucionário que deu o maior exemplo de amor entregando sua vida para motivar os demais homens a viverem também em amor. A ideologia racionalista moderna tornara-se o pressuposto mais básico de Bultmann que tentou adequar a Escritura a essa ideologia. A inteligência de Bultmann não foi suficiente para conduzi-lo a Cristo, e em Jesus alcançar a salvação.

O exemplo de Bultmann nos ajuda a demonstrar a nítida e a importante diferença entre ser inteligente e ser sábio. Ser inteligente é ser capaz de fazer uso das ferramentas interpretativas para compreender o que o texto do Novo Testamento está dizendo. Ser sábio é ser capaz de aplicar tudo o que está escrito à própria vida e à vida dos outros, exatamente como Deus quer. Por meio da inteligência, conseguimos compreender muitas coisas ao nosso redor, aprendendo os mais diversos assuntos e adquirindo as mais variadas competências. Por causa da inteligência, o homem chegou até a lua, inventou o computador e tem tornado a vida social muito confortável para todos (ou quase todos). Todavia, enquanto isso, as cidades tornam-se mais violentas e imorais, afastando-se cada dia mais de uma vida em conformidade com a Palavra de Deus. Mesmo com tanta inteligência, o ser humano está assumindo o pior grau de sua depravação, o vazio existencial, fortemente estimulado em nossos dias pela ideologia de gênero. A verdade é que todos os homens são inteligentes, mas poucos são realmente sábios.

Por meio da inteligência, homens enveredam pelos mais profundos estudos, inclusive teológicos, dedicando-se amplamente à leitura pela qual adquirem vasta erudição, ao mesmo tempo em que rejeitam a sabedoria do Senhor que nos conduz a um viver piedoso em Cristo Jesus. O estudo pode tornar o homem conhecedor dos mais variados campos do saber sem, contudo, torna-lo conhecedor de si mesmo, capaz de reconhecer sua real condição de pequeno pecador. Desse modo, o acumulo de informações mostra-se insuficiente ao revelar-se incapaz de dar ao homem aquilo que ele precisa: sabedoria. Como disse Salomão: “Demais, filho meu, atenta: não há limite para fazer livros, e o muito estudar é enfado da carne. De tudo o que se tem ouvido, a suma é: Teme a Deus e guarda os seus mandamentos; porque isto é o dever de todo homem.” (Ec.12.12). Ou seja, erudição não é sinônimo de sabedoria, e a sabedoria revela-se no temor ao Criador.

Essa aparente contradição é possível por causa do grande abismo que há entre a inteligência e a sabedoria. Também, devemos fazer distinção entre a esperteza e a sabedoria, bem como entre a experiência/erudição e a sabedoria. Todavia, ainda podemos dizer que tudo provém do Senhor já que todo conhecimento da Verdade vem de Deus, a fonte de todas as coisas, como disse Tiago: “Toda boa dádiva e todo dom perfeito são lá do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não pode existir variação ou sombra de mudança” (Tg.1.17). Deus deixou ao alcance do homem o conhecimento no qual ele pode se deleitar e desenvolver sua vida pessoal e social, como temos visto acontecer, sobretudo nos últimos 200 anos da história humana. Mas, a sabedoria, Deus não a entregou abertamente, não a expôs aos quatro cantos do mundo, nem mesmo a esconde como um tesouro a ser descoberto. O Senhor guardou a sabedoria consigo para que Ele mesmo a dê a cada homem segundo sua vontade e graça.

É interessante observarmos que a inteligência é bastante presente na linhagem de Caim, o filho amaldiçoado de Adão e Eva. Conforme Gênesis 4.17-24, além dos pecados dos filhos de Caim, encontramos diversas habilidades. Caim edifica uma cidade, mostrando habilidade administrativa e política (Gn.4.17); Jubal e seus descendentes são hábeis tocadores de harpa e flauta (Gn.4.21); Tubalcaim é um perito artífice que manuseia todo tipo de “instrumento cortante de bronze e de ferro” (Gn.4.22); e, Lameque mostra-se muitíssimo esperto tanto em tomar para si duas esposas quanto em legislar em seu favor (Gn.4.19,24), um político de mãos cheias. A cidade de Caim está repleta de homens inteligentes e espertos capazes de tornar a vida mais prazerosa, confortável e produtiva. Contudo, uma simples leitura de descrição desta cidade é suficiente para se perceber que não há sabedoria nela. São pecadores vivendo para si mesmos, “obscurecidos de entendimento, alheios à vida de Deus por causa da ignorância em que vivem, pela dureza do seu coração” (Ef.4.18).

A falta de temor a Deus entre os filhos de Caim, tendo em vista a ampla lista de pecados praticados despreocupadamente, nos revela a ausência de sabedoria entre eles. Não há temor de Deus naquela cidade, ainda que Caim tenha tido experiências singulares com Deus, pois falou com o Senhor “frente a frente”, conforme nos revela Gênesis 4.6-16. Nem mesmo a experiência de Caim com o próprio Deus, ouvindo a Palavra divina diretamente da boca do Senhor, foi suficiente para que a sabedoria se manifestasse na vida dele. A inteligência e a esperteza estão presentes no dia a dia daqueles que só se preocupam com o que é terreno, cultivando o conforto e buscando o status que satisfazem a vaidade. A inteligência e a esperteza se mostram necessárias para o desfrute de uma vida de luxúria, já que o único propósito daqueles homens era curtir o tempo presente ao máximo. E em nada disso há sabedoria, pois, a sabedoria, está com o Senhor.

Alguns personagens da Escritura Sagrada são instrumentos para mostrar tais diferenças: José, Jó/Eliú, Salomão, Daniel. Eles não inventaram algo extraordinário, mas falaram com sabedoria; eles não agiram com esperteza diante dos adversários, mas se comportaram com sabedoria, pois esperavam em Deus; eles não eram muito experientes nem tampouco eruditos, mas agiram como sábios mestres em todo o proceder diante dos momentos bons e ruins da vida. Neles, a sabedoria é apresentada como um dom divino independentemente da idade, do estudo, do status social ou de outro elemento que possa fazer distinção entre os homens. A sabedoria é um dom divino concedido graciosamente para manifestar a beleza da glória de Deus. A história desses personagens nos apontam para o Senhor. Ao termino da leitura, somos motivados a buscar em Deus a sabedoria, conhecendo seus bons frutos abençoadores daqueles que a possuem. Seu propósito é dar a Deus todo louvor, manifestando sua vontade boa, perfeita e agradável (Rm.12.1-2), fazendo do pecador um vaso de honra nas mãos do Criador (Rm.9.23-24).

Em nossos dias, cultiva-se amplamente a erudição (completamente distinta da sabedoria). Desde Adão e Eva, o homem demonstra uma curiosidade desmedida pelo desconhecido. Em Gênesis 3, a curiosidade desmedida se opõe ao contentamento, pois, mesmo conhecendo todo bem que precisavam, o homem e a mulher desejaram o conhecimento do mal (Gn.3.5-6). Por meio da erudição, o homem também sacia a busca pelo status social, atendendo às vaidades do coração pecador que cultiva desesperadamente o orgulho de si mesmo, mostrando, assim, que a erudição não é suficiente para tornar o homem humilde nem muito menos sábio. Isso não significa que erudição seja algo ruim, mas nos mostra, sim, que seu caminho não é o mesmo da sabedoria e que o homem pode trilha-lo pelas piores razões possíveis. Isso se dá porque erudição não é sabedoria. Conhecendo os perigos de tal caminho, desprovido da piedade promovida pela Escritura e pelo Espírito do Senhor, Paulo procurou afastar os coríntios do academicismo infrutífero de sofistas vaidosos e enganosos, motivando seus leitores à simplicidade do Evangelho de Cristo como algo mais sublime e frutífero, já que “o saber ensoberbece, mas o amor edifica” (1Co.8.1). A erudição está ao alcance de qualquer homem que quiser por ela caminhar, mas a sabedoria Deus a guardou consigo para que o pecador a encontre apenas no Senhor.

Portanto, não é a quantidade de livros que você lê nem o nível acadêmico que você possui que indicarão a presença de sabedoria em seu coração. Grandes eruditos mostraram-se incapazes de compreender a mais fundamental sabedoria divina: Cristo Jesus. Enquanto um erudito é capaz de ler e copiar o que os autores dizem, um sábio segundo Deus é capaz de interpretar tudo e discernir entre o que é bom e o que é mau: “o homem espiritual julga todas as coisas, mas ele mesmo não é julgado por ninguém. Pois quem conheceu a mente do Senhor, que o possa instruir? Nós, porém, temos a mente de Cristo” (1Co.2.15-16). Devemos considerar, atentamente, o fato de que Jesus escolheu homens simples, não doutores, para dar-lhes o simples e poderoso Evangelho capaz de transformar o pecador e salvar todo aquele que nele crê, de modo que nenhum deles viesse a gloriar-se em si mesmo, mas tão somente em Cristo (1Co.4.7). Como disse o apóstolo Paulo: “Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes; e Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são; a fim de que ninguém se vanglorie na presença de Deus” (1Co.1.27-29).

Contudo, é importante salientarmos que nosso propósito com o exposto acima não é desestimular você a estudar. Ler é algo bom, desde que sejam coisas boas; estudar é algo bom, desde que tal estudo não desonre a Deus. Todavia, não podemos confundir essas coisas com a sabedoria divina. Comumente podemos ver o conhecimento alimentar o orgulho do coração das pessoas, sobretudo jovens. Mas, a sabedoria sempre conduzirá o homem à humildade, ainda que esse homem possua todo o saber possível. Logo, nosso objetivo é fazer o pastor desejar a sabedoria mais do que o conhecimento. E em sua jornada do saber, alertá-lo quanto ao perigo de caminhar sem sabedoria, como fizeram os teólogos liberais, entre outros. Conhecer tudo o que é bom é algo bom, mas ter sabedoria é ainda melhor. E o pastor precisa ser sábio para pastorear as ovelhas de Cristo conforme a vontade revelada por Deus, ainda que não possuam muito conhecimento sobre o que os homens já escreveram na jornada humana.

Certa feita, fui a um encontro de pastores da cidade. Havia pastores de várias denominações e um deles era o responsável pela pregação daquele dia. Com certeza, o referido pastor tinha um vasto conhecimento. Ele não somente era formado em teologia, mas, também, em psicologia. Talvez, até possuísse outros títulos que desconheço. Independente de seus títulos e conhecimentos extra bíblicos, aquele homem era pastor e deveria ter a sabedoria de Deus em seu coração para pastorear as ovelhas na Palavra de Deus e no poder do Espírito Santo. Todavia, sua pregação foi horrível. Ele, literalmente, falou mais de Sigmund Freud e suas ideias relacionadas à psicanálise do que de Cristo, o Senhor e Salvador de nossas vidas. Ele tratou seu público como pacientes e nem mesmo lhes deu um bom remédio. Um sermão desperdiçado, palavras vazias lançadas ao ar. Precisávamos de Cristo e aquele pregador nos deu meras ideias vazias Sua falta de sabedoria fez com que aproveitasse o momento apenas para exibir seu leque de saberes, sua erudição, deixando seu público sedento do conhecimento de Cristo Jesus; conhecimento este que parecia não dominar muito bem. Faltou sabedoria, pois caso a possuísse, naquele momento, não teria usado a erudição de modo errado e vaidoso.

 

 

Um jovem cheio de sabedoria

 

José era ainda muito jovem quando foi levado para o Egito (Gn.37.2,28). Mesmo sendo o penúltimo filho de Jacó, o segundo mais jovem de entre seus irmãos, Deus o escolheu para trilhar uma dura jornada que iniciou com a traumatizante traição de seus familiares que o venderam para uma caravana de mercadores midianitas (Gn.37.28). Como deve ter sido difícil para José lidar com a traição dos irmãos. Foi preciso a graça divina para que ele superasse e, ainda, pudesse agir como sábio instrumento divino para a conservação daqueles que lhe haviam feito mal. Os mercadores o venderam como escravo para Potifar e, desde esse dia, José trilhou uma difícil jornada no Egito até culminar com o alcance do governo de toda a terra egípcia (Gn.39.1//Gn.41.39-44). Em toda sua jornada, José demonstrou ser homem “ajuizado e sábio” “em quem há o Espírito de Deus” (Gn.41.38-39) de tal modo que, sendo ainda jovem, aconselhou Faraó e todos os oficiais sobre como administrarem a nação nos dias de fartura e escassez que viriam.

Qual foi o estudo que José recebeu, sendo filho de um nômade pastor de ovelhas, filho de Jacó? Os filhos aprendiam em casa com escravos responsáveis pela educação das crianças (Gl.4.1-2). Sendo Jacó um homem próspero (Gn.32), dono de vários escravos (Gn.32.5), muito provavelmente possuía papiros nos quais estavam registradas as contas da família. Não há razão para não pensarmos na probabilidade de que alguns papiros guardassem tradições familiares e, também, a revelação divina que fora dada para Abraão e Isaque. Por razões materiais, livros eram escassos naquela época e, provavelmente, estavam concentrados em bibliotecas de realezas de grandes cidades como Egito, ao ocidente, e Mesopotâmia, ao oriente. Todavia, aquilo que realmente importava, o conhecimento de Deus, estava sendo preservado pelos escolhidos do Senhor, de modo que José deve ter sido ensinado na Palavra de Deus (oral e escrita) que até aqueles dias fora dada àqueles que o Senhor havia escolhido para serem seu povo, como fora dito a Abraão: “Porque eu o escolhi para que ordene a seus filhos e a sua casa depois dele, a fim de que guardem o caminho do SENHOR e pratiquem a justiça e o juízo; para que o SENHOR faça vir sobre Abraão o que tem falado a seu respeito.” (Gn.18.19).

Pequena, mas poderosa, a Palavra de Deus operava no coração e na mente daqueles que dela se apropriavam por meio da ação eficaz do Espírito do Senhor, a fim de que lhes concedesse o temor a Deus, princípio da sabedoria. Essa pequena porção da Palavra de Deus operara no coração de José através do agir do Espírito Santo tornando-o sábio, apesar da pouca idade. Tal sabedoria não é vista em uma aparente erudição, que provavelmente nem mesmo possuía, mas por intermédio de sua vida temente a Deus, razão para: fugir do pecado, esperar pacientemente no Senhor em dias maus, dar conselhos realmente sábios e discernir a vontade de Deus se manifestando na história humana. Com pouca, ou mesmo sem nenhuma, erudição, José mostra-se mais sábio do que boa parte dos eruditos de seus dias.

Com certeza, Faraó possui a seu dispor muitos estudiosos versados em diversos conhecimentos disponíveis na época. Contudo, diante da necessidade de compreender a vontade divina que lhe fora revelada, por meio de sonhos, e de ser orientado quanto ao modo como deveria agir, Faraó recebe conselhos de um jovem que se encontrava na prisão, estando treze anos longe de casa. Nenhum erudito daqueles dias fora apto a discernir a vontade de Deus nem de aconselhar sabiamente a Faraó, razão para que o grande rei do Egito afirmasse: “Acharíamos, porventura, homem como este, em quem há o Espírito de Deus? Depois, disse Faraó a José: Visto que Deus te fez saber tudo isto, ninguém há tão ajuizado e sábio como tu.” (Gn.41.38-39).

A provável falta de erudição de José não significa um estímulo à anti-erudição, mas nos ensina que sabedoria não provém do estudo, ainda que possa andar lado a lado com ele. José recebeu a mesma educação que seus irmãos, mas possuía uma sabedoria que os demais não receberam do Senhor. Diante disso, somos conduzidos a fazer distinção entre o que aprendemos por meio do estudo e o que podemos receber por meio da graça divina. Por essa razão, Tiago nos ensina a buscar em Deus a sabedoria necessária para tomar decisões na vida, fazer as escolhas certas, agir em acordo com a vontade do Senhor, lutar e resistir às tentações do mundo etc.: “Se, porém, algum de vós necessita de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá liberalmente e nada lhes impropera; e ser-lhe-á concedida” (Tg.1.5).

Na história de José, vemos que não há idade para ter sabedoria, porque a sabedoria é um dom divino. Também podemos observar que a sabedoria não é genética, pois José não a herdou de seus pais, mas do Espírito do Senhor. E uma vez que a sabedoria é adquirida em Deus, por meio do agir do Espírito Santo e da Palavra do Senhor (Gn.39.9), também somos exortados a jamais nos orgulharmos dessa aquisição graciosa. A sabedoria está em Deus, é dada por Deus e deve servir à glória de Deus, pois a vaidade e o orgulho humanos são, em si mesmos, uma demonstração de falta de sabedoria (Tg.4.6). O exercício da sabedoria visa o serviço ao Senhor dentro do plano redentor, manifestando a justiça, a bondade, a grandeza, a graça, a santidade, a misericórdia e o amor de Deus; abençoando, assim, muitas vidas.

 

 

Um jovem sábio entre anciãos

 

Outros dois personagens que nos chamam a atenção são Jó e Eliú. O livro que carrega o nome do personagem principal (Jó) encontra-se entre a coletânea de escritos sapienciais da Escritura Sagrada (Jó, Provérbios e Eclesiastes). O autor é incerto (apesar de considerarmos que Salomão deva ser a melhor opção) e o personagem, mesmo sendo real, não possui data certa também. No livro do profeta Ezequiel, Deus trata Jó como um personagem de carne e osso tanto quanto Noé e Daniel (Ez.14.14,20). O livro de Tiago também faz menção de Jó como exemplo a ser seguido, não como se falasse apenas de uma história fictícia, mas de uma história real (Tg.5.11).

Os dois primeiros capítulos do livro prestigiam a piedade de Jó, mostrando ao leitor que ele realmente era um homem sábio, pois era um homem temente a Deus (Jó.1.1,8). Podemos observar isso nas reações de Jó, frente à chegada da grande tribulação que o alcançou (Jó.1.13-19). Jó não se revoltou, não desistiu da vida, não blasfemou contra Deus nem mesmo murmurou contra o Senhor. Ele simplesmente entrou em luto e se humilhou diante de Deus, adorando-o e reconhecendo que não era verdadeiramente possuidor de coisa alguma que desfrutava, pois tudo vinha do próprio Deus que, portanto, tinha o direito de tirar quando quisesse. Portanto, assim como Jó havia nascido sem nada, não poderia reclamar tendo que morrer sem nada. Desse modo, Jó bendiz o nome do Criador, em vez de acusar a Deus por suas desventuras.

 

Então, Jó se levantou, rasgou o seu manto, rapou a cabeça e lançou-se em terra e adorou;  21 e disse: Nu saí do ventre de minha mãe e nu voltarei; o SENHOR o deu e o SENHOR o tomou; bendito seja o nome do SENHOR!  22 Em tudo isto Jó não pecou, nem atribuiu a Deus falta alguma (Jó.1.20-22)

 

O proceder sábio de Jó torna-se ainda mais evidente quando contrastado com as palavras de sua esposa que lhe diz: “Ainda conservas a tua integridade? Amaldiçoa a Deus e morre” (Jó.2.9). A mulher de Jó não somente agiu como uma tola, mas ainda serviu como instrumento de Satanás para tentar Jó a pecar contra Deus. Jó resiste à tentação e ainda emite um juízo que condiz perfeitamente com o olhar de Deus para as palavras dela, glorificando ao Senhor ao reconhecer o direito divino sobre todos os homens: “Falas como qualquer doida; temos recebido o bem de Deus e não receberíamos também o mal?” (Jó.2.10). Por isso, em nenhuma das palavras Jó pecou contra Deus.

Todavia, com o decorrer dos dias e das acusações dos três amigos de Jó, seu comportamento muda e suas ações e reações deixam de ser caracterizadas pela sabedoria divina. A sabedoria que havia sido evidenciada no início do livro dá lugar a alta autoestima de Jó que começa a se justificar acusando Deus de injustiça. E apesar de todos os pecados presentes no comportamento dos amigos de Jó, eles terminam sendo o instrumento para tornar evidente os pecados ocultos de Jó: ele era justo demais aos seus próprios olhos (Jó.32.1). Enquanto o temor a Deus era proeminente na vida de Jó, suas palavras e seu comportamento foram sábios. Mas, a partir do momento em que a justiça própria de Jó tomou a dianteira de seu coração, então Jó começa a pecar contra Deus e a encobrir o conselho do Senhor (Jó.42.3). E por causa da ausência da sabedoria, Jó não consegue perceber os males em seu proceder.

Dentre os diálogos travados entre Jó e seus três amigos, o personagem principal relembra seus dias de glória, antes que os males o alcançassem (Jó.29.7-11). Nessa lembrança, Jó era respeitado por todos como um homem abençoado e sábio, de modo que tanto os mais jovens quanto os mais velhos se calavam esperando ouvir palavras de sabedoria de sua boca:

 

Quando eu saía para a porta da cidade, e na praça me era dado sentar-me,  8 os moços me viam e se retiravam; os idosos se levantavam e se punham em pé;  9 os príncipes reprimiam as suas palavras e punham a mão sobre a boca;  10 a voz dos nobres emudecia, e a sua língua se apegava ao paladar.  11 Ouvindo-me algum ouvido, esse me chamava feliz; vendo-me algum olho, dava testemunho de mim [...] Os que me ouviam esperavam o meu conselho e guardavam silêncio para ouvi-lo.  22 Havendo eu falado, não replicavam; as minhas palavras caíam sobre eles como orvalho.  23 Esperavam-me como à chuva, abriam a boca como à chuva de primavera. (Jó.29.7-11, 21-23)

 

A sabedoria em Jó é tratada como uma bênção divina. Ele lembra aqueles momentos como “dias em que Deus me guardava” (Jó.29.2), fazendo brilhar sua “lâmpada sobre a minha cabeça, quando eu, guiado por sua luz, caminhava pelas trevas; [...] quando a amizade de Deus estava sobre a minha tenda; quando o Todo-Poderoso ainda estava comigo” (Jó.29.3-5). Não sabemos a idade de Jó, mas ele faz menção desse tempo como “dias do meu vigor” (Jó.29.4). Podemos, então, dizer que Jó atribuiu a Deus a sabedoria de seus dias mais jovens, já que a sabedoria, no capítulo anterior (Jó.28.12-28) é tratada como um dom divino, concedido graciosamente por Deus, assim como fora testemunhado por Salomão, o possível autor do livro (1Rs.3): “então, viu ele a sabedoria e a manifestou; estabeleceu-a e também a esquadrinhou” (Jó.28.27).

Jó se gaba de sua sabedoria passada sem se aperceber que não estava mais presente em suas palavras, mesmo já não sendo jovem. Mas, a nítida distinção entre a experiência decorrente da idade e a aquisição graciosa da dádiva da sabedoria é vista na aparição do misterioso personagem chamado Eliú. Seu aparecimento em Jó é inesperado. Eliú possui genealogia certa (Jó.32.2), mas não havia sido contado entre os amigos de Jó: Elifaz, Bildade e Zofar (Jó.2.11). Além disso, o personagem surge para dar respostas a todos os demais que não haviam chegado a um consenso sobre a razão pela qual Jó estava sofrendo demasiadamente (Jó.32.1-5). Eliú faz todos se calarem (como Jesus fez com os fariseus e os saduceus - Mt.22.23-46), e somente Deus fala após seu longo monólogo (Jó.32-37). Desse modo, Eliú se sobressai em sabedoria a todos os amigos de Jó, e até ao próprio Jó, mesmo sendo de menor idade (Jó.32.4), reprisando o mesmo cenário que Jó havia testemunhando em seus anos anteriores quando sua sabedoria era manifesta a todos (Jó.29.7-11, 21-23):

 

Eliú, porém, esperara para falar a Jó, pois eram de mais idade do que ele.  5 Vendo Eliú que já não havia resposta na boca daqueles três homens, a sua ira se acendeu.  6 Disse Eliú, filho de Baraquel, o buzita: Eu sou de menos idade, e vós sois idosos; arreceei-me e temi de vos declarar a minha opinião.  7 Dizia eu: Falem os dias, e a multidão dos anos ensine a sabedoria.  8 Na verdade, há um espírito no homem, e o sopro do Todo-Poderoso o faz sábio.  9 Os de mais idade não é que são os sábios, nem os velhos, os que entendem o que é reto. (Jó.32.4-9)

 

Quando mais jovem, Jó viu os mais velhos buscarem nele a sabedoria divina, pois, conforme Jó: “Está a sabedoria com os idosos, e, na longevidade, o entendimento? Não! Com Deus está a sabedoria e a força; ele tem conselho e entendimento” (Jó.12.12-13). Agora, nos dias da tribulação de Jó, um rapaz de menor idade, Eliú, o aconselhará com palavras de sabedoria proveniente de Deus, conduzindo tanto o próprio Jó quanto seus três amigos ao coração do problema em questão: o pecado da autojustificação de Jó.

Portanto, a sabedoria, no livro de Jó, independe da idade e está intimamente relacionada à comunhão entre o homem e Deus (Jó.29). Em seus dias de intensa tribulação, Jó sente-se “desamparado” por Deus e em vez de caminhar humildemente na presença do Senhor, ele se faz adversário de Deus, a fim de se autojustificar perante o Criador. A sabedoria é apresentada como dádiva divina que independe da idade e do status do homem, ao mesmo tempo em que somos conduzidos a entender que a sabedoria é associada à presença divina, à relação do homem com Deus. Assim como, a falta de sabedoria é relacionada à maldade do coração do pecador.

Mas, após ouvir a Palavra de Deus, algo muda no coração de Jó. O homem sofrido que acusa Deus por seu sofrimento, tentando se autojustificar, após o encontro com Deus, está com o coração quebrantado e a mente esclarecida. E com entendimento, Jó toma a única atitude sábia que deveria, naquele momento, dizendo:

 

Então, respondeu Jó ao SENHOR:  2 Bem sei que tudo podes, e nenhum dos teus planos pode ser frustrado.  3 Quem é aquele, como disseste, que sem conhecimento encobre o conselho? Na verdade, falei do que não entendia; coisas maravilhosas demais para mim, coisas que eu não conhecia.  4 Escuta-me, pois, havias dito, e eu falarei; eu te perguntarei, e tu me ensinarás.  5 Eu te conhecia só de ouvir, mas agora os meus olhos te vêem.  6 Por isso, me abomino e me arrependo no pó e na cinza (Jó.42.1-6)

 

Essa foi a atitude mais sábia de Jó. Como alguém que recobra a razão, voltou a Jó a graça da sabedoria. Então, em poucas palavras, ele expressou a iluminação da sabedoria divina. Pelo menos três pontos podem ser observados nas palavras de Jó:

 

1) Jó reconheceu que nada foge à vontade do Senhor e que, portanto, seu sofrimento cumpria um propósito sábio de Deus, que o próprio Jó desconhecia. Logo, apesar de todas as catástrofes que aconteceram com Jó, nada estava perdido, pois Deus sempre teve tudo sob controle (v.2).

 

2) Jó também reconheceu que tudo o que Deus faz é sábio, justo e verdadeiro, e que é necessário ao pecador confiar totalmente no Senhor, pois o Criador é puríssimo, boníssimo e justíssimo. Sendo assim, Jó havia agido sem sabedoria ao se opor ao Senhor sem qualquer conhecimento da verdade sobre a causa e o propósito de todo aquele sofrimento (v.3);

 

3) Jó, ainda, reconheceu sua ignorância tanto sobre a grandeza do Ser de Deus e de seus sábios planos, como, também, confessou não ter conhecimento de si mesmo, conhecimento de seu coração pecador que se autojustificava (v.4-6). Jó contemplava apenas o visível e estava centrado em seu próprio ego. Sua autoidolatria e autojustificação o tornava tolo, mas, na sabedoria do Senhor, ele pode ver que a vida é mais do que os olhos alcançam, e que a miséria de seu ser não estava na aparência dos tumores terríveis de sua pele, mas no pecado de seu coração.

 

Na fala de Jó, vemos que o arrependimento de um pecador e sua confissão de fé, frutos do conhecimento da Palavra de Deus, são gestos de sabedoria, assim como “o temor do Senhor é a sabedoria, e o apartar-se do mal é o entendimento” (Jó.28.28). Para conhecer a Deus e para conhecer a si mesmo, o homem precisa da sabedoria do alto. Essa sabedoria é expressa na Revelação divina e na iluminação do Espírito Santo. Jó esteve frente a frente com a Revelação divina, pois Deus lhe falou do meio de um redemoinho (Jó.38.1). E com o coração quebrantado, Jó falou o que é reto diante de Deus (Jó.42.7), uma atitude condizente com a manifestação do Espírito divino no homem (At.2.37-47). Agora, Jó via nitidamente a glória de Deus, bem como a mais profunda miséria de seu próprio coração. Então, o Senhor cumpriu seu propósito, razão para restaurar a vida de Jó a seu estado de bem-aventurança (Jó.42.10-17).

Por fim, devemos ainda observar que o livro de Jó começa com a esperteza e sagacidade de Satanás que pretende jogar Deus contra Jó e Jó contra Deus (Jó 1-2). A jogada de Satanás parece inteligente até sucumbir perante a infinita sabedoria de Deus que triunfa sobre a esperteza do adversário, ao alcançar o propósito de aperfeiçoar o coração de Jó (Jó.42). O livro é encerrado exaltando a grandiosidade da sabedoria divina, pois tudo o que acontecera estava em acordo com os planos de Deus, o perfeito Conselho do Senhor (Jó.42.2-3). E à semelhança do que acontecera na história de José, mais uma vez Deus transformou males em bênçãos (Jó.42.10-17). Assim, podemos ver a sabedoria divina tanto na frustação do plano de Satanás quanto no alcance do propósito de transformar a vida de Jó que não é mais o mesmo (Jó.42.1-6).

 

 

O segundo homem mais sábio do mundo

 

O personagem mais conhecido da Escritura Sagrada, em sua relação com a sabedoria, é Salomão. Jesus fez menção da destacada sabedoria do filho de Davi, mas não o considerou como o homem mais sábio do mundo, pois o próprio Cristo era superior a Ele (Mt.12.42). O nascimento de Salomão foi marcado por um contexto conturbado (2Sm.12), apesar disso Deus o amou desde o início e o agraciou com a bênção de crescer sob o ensino da Palavra divina ensinada pelo profeta Natã: “Então, Davi veio a Bate-Seba, consolou-a e se deitou com ela; teve ela um filho a quem Davi deu o nome de Salomão; e o SENHOR o amou. Davi o entregou nas mãos do profeta Natã, e este lhe chamou Jedidias, por amor do SENHOR” (2Sm.12.24-25).

Conforme algumas cronologias bíblicas sugeridas, Salomão (990-930 a.C.?) viveu aproximadamente 60 anos[4] (reinou 40 anos[5] – 1Rs.11.42) e começou a reinar com 20 anos de idade. Não se sabe ao certo a precisão de tais informações, principalmente porque a Escritura não menciona a idade em que Salomão começou a reinar nem com quantos anos ele morreu. Contudo, serve-nos para dar-nos uma ideia da tenra idade com que Salomão recebeu sabedoria da parte do Senhor.

No início do reinado de Salomão, Deus lhe aparecera por meio de sonhos, oferecendo-lhe a satisfação de qualquer desejo que ele tivesse (1Rs.3.5). Este é o desejo de praticamente todo ser humano que nessas condições teria pedido muitas riquezas. Todavia, antes de tal sonho, o autor de 1 Reis nos informa que “Salomão amava ao SENHOR, andando nos preceitos de Davi, seu pai” (1Rs.3.3), dando-nos a razão certa pela qual Salomão não pede a Deus “longevidade, nem riquezas, nem a morte” de seus inimigos, mas “entendimento” (1Rs.3.11).

Salomão fora ensinado a amar a Deus, muito provavelmente através do profeta Natã, a fim de que governasse com integridade e zelo ao Senhor, pois, desde muito cedo, Deus revelara para Davi que Salomão seria o herdeiro de seu trono:

 

Eis que te nascerá um filho, que será homem sereno, porque lhe darei descanso de todos os seus inimigos em redor; portanto, Salomão será o seu nome; paz e tranquilidade darei a Israel nos seus dias.  10 Este edificará casa ao meu nome; ele me será por filho, e eu lhe serei por pai; estabelecerei para sempre o trono do seu reino sobre Israel.  11 Agora, pois, meu filho, o SENHOR seja contigo, a fim de que prosperes e edifiques a Casa do SENHOR, teu Deus, como ele disse a teu respeito.  12 Que o SENHOR te conceda prudência e entendimento, para que, quando regeres sobre Israel, guardes a lei do SENHOR, teu Deus (1Cr.22.9-12).

 

O valor dos ensinamentos que o jovem havia recebido é atestado na ocasião em que Deus lhe aparece por meio de sonho, no qual Salomão tem a oportunidade de pedir qualquer coisa, mas deseja apenas aquilo que lhe fora ensinado: entendimento para servir a Deus como bom rei. O pedido de Salomão agradou a Deus, diferente dos filhos de Caim que só se preocupavam com aquilo que satisfazia os olhos, o ventre e o próprio coração (Gn.4.17-24). Salomão, antes mesmo de pedir sabedoria, demonstra que a educação da criança na Palavra de Deus é o instrumento para conduzir o pecador ao que é bom e agradável ao Senhor. Desse modo, a Palavra de Deus é apresentada como fonte de sabedoria, pois, por meio dela, o pecador é conduzido a temer a Deus, como nos diz esse versado autor de Provérbios: “O temor do SENHOR é o princípio da sabedoria, e o conhecimento do Santo é prudência” (Pv.9.10).

Não é por acaso que este homem de Deus é o responsável pelos livros Sagrados chamados de Sapienciais: Jó (conforme nossa compreensão de sua autoria), Provérbios e Eclesiastes, além do livro poético chamado Cantares ou Cânticos. Com Salomão, a sabedoria é estritamente relacionada à Palavra de Deus e ao temor ao Senhor, ambos sendo dádivas do próprio Criador que é a fonte de toda sabedoria concedida graciosamente ao homem. Salomão é a “prova viva” de que a sabedoria é um dom divino e que a desejar, com o fim de fazer a vontade de Deus, é algo que agrada bastante ao Senhor.

A sabedoria concedida por Deus a Salomão é atestada tanto por suas obras quanto por seus escritos (1Rs.3.16-28; 4.29-34). O autor do livro de 1 Reis não apenas nos conta como Salomão adquiriu sua extraordinária sabedoria, como também nos dá as provas da presença dela em diversas obras de Salomão. Porém, isso não o torna um herói mítico nem um semideus. Salomão ainda é um pecador sujeito aos mais terríveis pecados que não são ocultados do leitor (Ne.13.26). Desse modo, o autor do livro demonstra a todos que nem mesmo a maior sabedoria que um homem possa receber de Deus é capaz de livrá-lo do pecado, pois a redenção do homem não encontra-se no saber. O poder da sensualidade também é experimentado por Salomão que se deixou influenciar pelas muitas mulheres pagãs que possuía, de modo que veio a servir aos deuses das muitas nações a quem pertenciam as esposas e concubinas do rei (1Rs.11.1-8). Assim, a sabedoria abandona Salomão, frente ao pecado e à cobiça do coração dele, porque os frutos da sabedoria dependem de uma vida de real comunhão com o Senhor.

Em Salomão, vemos que a sabedoria é um grande dom concedido por Deus, não uma aquisição da experiência humana. A sabedoria de Salomão não é atribuída a algum mestre ou tutor de sua infância e/ou juventude. Deus é sua única fonte! Por isso, o profeta Natã não recebe qualquer mérito pela sabedoria do rei. E sua mais sublime presença encontra-se na Escritura Sagrada, expressão da sabedoria divina. A sabedoria do Senhor conduz o homem ao que é bom, pois também é serva de Deus. Por isso, o livro de Provérbios contém muitos conselhos para que o homem fuja do que é mau e cultive aquilo que é bom, por meio de expressões práticas de sabedoria aplicada ao dia a dia de um jovem.

Contudo, na história de Salomão, Deus nos revela, ainda, que a sabedoria não é redentora. Por mais sábio que seja o pecador, ele precisará da redenção do Justo e Justificador prometido por Deus desde os dias de Adão e Eva (Gn.3.15). Assim como a sabedoria é um dom gracioso de Deus, também a redenção do pecador deve ser esperada somente do Senhor, como disse o profeta Jonas: “Ao Senhor pertence a salvação” (Jn.2.9). A sabedoria é dom de Deus, mas não é por meio dela que os pecadores são salvos.

 

 

O sábio estrangeiro

 

Por maior que tenha sido em sua sabedoria, Salomão não foi o único agraciado com essa bênção. Aproximadamente 370 anos depois, encontramos Daniel, um descendente de Judá, transportado para o cativeiro da Babilônia, junto a tantos outros judeus de seus dias. E apesar de haver muitos judeus, Daniel recebeu singular destaque por causa da sabedoria que Deus lhe dera, a fim de glorificar seu Santo NOME em terra estranha, no coração do cruel império babilônico.

Dentre os sábios da antiguidade bíblica, Daniel é o único a registrar que fora instruído conforme a erudição de sua época. Israel não era uma nação isolada, o que podemos ver nas práticas cúlticas pagãs que estavam sendo aderidas pelo povo antes do cativeiro babilônico. Logo, podemos pressupor que houvesse certo intercâmbio cultural e intelectual. E até podemos afirmar que as ideias filosóficas monoteístas de alguns filósofos gregos tenham sido provenientes de certo conhecimento das Escrituras judaicas (1Rs.10), pois os judeus estavam espalhados pelo mundo durante o período clássico grego (séc.VI a IV a.C.). Além disso, o material literário de Israel não estava restrito à Palavra de Deus. Conforme 1 Reis 4, Salomão

 

Compôs três mil provérbios, e foram os seus cânticos mil e cinco. Discorreu sobre todas as plantas, desde o cedro que está no Líbano até ao hissopo que brota do muro; também falou dos animais e das aves, dos répteis e dos peixes. De todos os povos vinha gente a ouvir a sabedoria de Salomão, e também enviados de todos os reis da terra que tinham ouvido da sua sabedoria (1Rs.4.32-34).

 

No texto acima, podemos ver o interesse de Israel pela arte da música e da poesia. Também, há o interesse pelo conhecimento biológico, pois Salomão estudou e discorreu sobre plantas, mamíferos, aves, répteis e peixes. Ou seja, Israel ganhou uma enciclopédia de biologia. Em certa medida, podemos ainda mencionar os provérbios como textos que abordam tanto a moral quanto a ética e filosofam sobre diversos assuntos da vida cotidiana. É possível que houvessem outros livros que tratassem sobre aritmética, álgebra, geometria, gramática de hebraico, história etc., pois a aplicação de tais conhecimentos aparece nos livros da bíblia ao tratar sobre construção civil, leis civis e análise literária (2Cr.3; Dt.17.8; 22.8; Sl.119; 1Cr.29.29; Ed.4.15). Portanto, Israel possuía certo interesse no conhecimento geral. Não sabemos exatamente que tipo de conhecimento Daniel teve, mas seu livro nos informa que ele estava dentre os “jovens sem nenhum defeito, de boa aparência, instruídos em toda a sabedoria, doutos em ciência, versados no conhecimento e que fossem competentes para assistirem no palácio do rei e lhes ensinasse a cultura e a língua dos caldeus” (Dn.1.4).

Como vimos em personagens anteriores, a sabedoria divina aparece associada ao temor a Deus. Com Daniel não é diferente. Conforme o primeiro capítulo, “resolveu Daniel, firmemente, não contaminar-se com as finas iguarias do rei, nem com o vinho que ele bebia” (Dn.1.8). O temor do Senhor é o princípio da sabedoria de Daniel que encontra o agrado de Deus em suas decisões e é abençoado por Deus (Dn.1.20). Daniel tomava decisões sábias por temor a Deus, de modo que a sabedoria dele provém de Deus e serve ao propósito de glorificar a Deus.

Em Êxodo 31.3 e 35.31, Deus fala a Moisés que havia escolhido alguns homens para cumprirem o propósito de construir o tabernáculo e seus utensílios. Para isso, o Senhor diz que “o enchi do Espírito de Deus, de habilidade, de inteligência e de conhecimento, em todo artifício” e, assim, “o Espírito de Deus o encheu de habilidade, inteligência e conhecimento em todo artifício”. Conforme o texto, três capacidades foram dadas por Deus àqueles homens: sabedoria, conhecimento, ciência (técnica). Conforme Daniel, Deus também deu essas aptidões tanto para ele quanto para seus três amigos: Hananias, Misael e Azarias (Dn.1.19), fazendo-os superar a todos os demais jovens doutos: “Ora, a estes quatro jovens Deus deu o conhecimento e a inteligência em toda cultura e sabedoria; mas a Daniel deu inteligência de todas as visões e sonhos” (Dn.1.17). Portanto, não somente a sabedoria provém de Deus, mas ainda a inteligência e a habilidade. Por conseguinte, toda competência deve servir ao propósito de glorificar a Deus, servindo ao Senhor no dia a dia nas relações sociais.

O livro de Daniel destaca o relacionamento do autor com o Deus de Israel e o testemunho que ele e seus três amigos deram perante o império Babilônico e Medo Persa. O principal dom de Daniel é a capacidade de interpretar sonhos, presente no segundo capítulo do livro que nos conta como Daniel interpretou o sonho de Nabucodonosor (Dn.2). Além desse evento, o profeta Daniel interpreta outro sonho de Nabucodonosor, antes do imperador ser humilhado por Deus (Dn.4); e, encontramos a interpretação dos dizeres escritos na parede por uma mão (Dn.5). Por último, há o registro das visões apocalípticas (Dn.7-12) que Deus revelara para Daniel que, sem a explicação do anjo do Senhor, não teria conseguido compreender o que via (Dn.7.15). Os anjos de Deus têm participação importante no livro, tanto nas revelações divinas quanto nos momentos de apuros do povo de Deus, como instrumentos de Deus para livrar Daniel e seus amigos. A despeito de tudo isso, a sabedoria de Daniel é expressa no dia a dia, no saber agir frente aos desafios que lhe são apresentados, de modo a glorificar a Deus em cada momento da vida no coração do império babilônico.

 

 

A sabedoria para o cristão hoje

 

E hoje, qual deveria ser a relação do cristão (não somente pastor) com a sabedoria? De modo algum devemos entender que a sabedoria é um privilégio de alguns por causa do destaque de poucos personagens bíblicos. A sabedoria é sim um dom divino, mas ela é apresentada pelos autores do Antigo Testamento como dádiva graciosa de Deus para todo aquele que a procurar (Pv.2.1-10), conforme nos diz a carta de Tiago:

 

Se, porém, algum de vós necessita de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá liberalmente e nada lhes impropera; e ser-lhe-á concedida.  6 Peça-a, porém, com fé, em nada duvidando; pois o que duvida é semelhante à onda do mar, impelida e agitada pelo vento.  7 Não suponha esse homem que alcançará do Senhor alguma coisa;  8 homem de ânimo dobre, inconstante em todos os seus caminhos. (Tg.1.5-8)

 

Conforme Tiago, a sabedoria é uma necessidade. Quem não tem sabedoria precisa ter. Ela é uma necessidade para o viver cristão, não apenas para as grandes coisas, mas, também, para o propósito de glorificar a Deus com o cotidiano mais comum em casa e no trabalho, quando comprar e quando vender, com os irmãos da igreja e com as pessoas do mundo. Como nos diz o apóstolo Paulo: “quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus” (1Co.10.31). A falta de sabedoria tem sido motivo de muitos problemas nas denominações de hoje, inclusive juízos injustos e antibíblicos emitidos por causa de comidas e bebidas (Tg.4.11-12), de forma que Deus não é glorificado entre aqueles que professam seu Santo Nome.

Podemos ver a necessidade de se ter sabedoria quando o apóstolo Paulo fala sobre diversas questões práticas com as igrejas em suas cartas, sobretudo voltadas aos relacionamentos dos cristãos, tanto com os irmãos da igreja quanto com as pessoas de fora. Em Romanos 12, ele fala sobre a justiça divina quando somos maltratados; em Romanos 13, Paulo ensina os cristãos a lidarem com a política; e, em Romanos 14, ele fala sobre questões relacionadas a comida e bebida, pois o cristão não deve ser juiz do outro nem negligente com a fraqueza alheia. Em 1 Coríntios, Paulo nos mostra a necessidade de sabedoria para lidar com diversos assuntos do cotidiano dos irmãos, tais como: diferenças de pensamentos sobre tradições; problemas conjugais entre cristãos e quando um dos cônjuges não for cristão; as diferenças de dons e o uso deles nos cultos ao Senhor; as diferenças culturais entre judeus e gentios etc. A Filemom o apóstolo ensina a proceder para com um servo fujão que se converteu. E assim, podemos ver que os ensinos bíblicos mostram aos cristãos a profunda necessidade da sabedoria divina para tratar cada assunto de modo agradável ao Senhor.

Todos esses ensinos nos mostram a profunda necessidade que o cristão tem da sabedoria divina. Mas, como consegui-la? Vimos que ela se encontra de modo objetivo na Revelação divina que é a Palavra de Deus. E também nos é dada subjetivamente quando a pedimos ao Senhor em nossas orações, pois o Espírito Santo opera graciosamente em sua igreja, inclusive para que cada cristão entenda e aplique corretamente a Escritura a sua vida. Portanto, o cristão tem por obrigação buscar a sabedoria de Deus, a fim de saber proceder de modo santo e agradável a Deus em seu dia a dia, perante o mundo. Para isso, você precisará ler a Bíblia frequentemente e, também, orar ao Senhor continuamente, pois a sabedoria que o cristão necessita encontra-se em Deus e somente Ele pode dar a quem a procura.

 

 



[1] KONRAD, Hammann. Rudolf Bultmann: a Biography. Salem: Polebridge Press, 2013.

[2] BULTMANN, Rudolf. Demitologização: Coletânea de ensaios. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1999.

[3] Ibid. Crer e Compreender: Artigos Selecionados. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1987.

[4] TIMELINE BIBLEWORKS 7. Version 7.0.0012g, 2006.

[5] WISEMAN, Donald J. 1 e 2 Reis: Introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 2006, p.28.

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