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terça-feira, 26 de abril de 2016

A superioridade do Evangelho no encontro entre Paulo e Pedro

Quando, porém, vi que não procediam corretamente segundo a verdade do evangelho, disse a Cefas, na presença de todos: se, sendo tu judeu, vives como gentio e não como judeu, por que obrigas os gentios a viverem como judeus?” (Gl.2.14)

Os séculos XIX e XX foram berço para um grande número de estudos críticos do Novo Testamento. Conforme Herman Ridderbos, “o esforço no sentido de determinar o significado do apóstolo Paulo para a história da revelação do Novo Testamento teve início em tempos recentes com as obras de F. C. Baur (falecido em 1860), pai da chamada escola de Tubingen.[1]” Desde então, os escritos de Paulo tem sido analisados lado a lado com o mundo helênico. Quase todas as explicações sobre a teologia de Paulo são procuradas no mundo greco-romano. Assim, Paulo deixou de ser o judeu-cristão, educado por toda sua vida no judaísmo farisaico, e passou a ser o criador e propagador de uma nova religião com fundamentos nas religiões e filosofias gregas, influenciado pelo helenismo dos arredores de Tarso, sua cidade natal[2]. Os fundamentos judaicos que alicerçaram a vida e ministério do apóstolo foram sendo pouco a pouco substituídos pela diversidade religiosa de seus dias. Dentro desse pluralismo religioso-cristão, Paulo é visto como um dos protagonistas que se sobressaiu e obteve sucesso na propagação de sua teologia pregada aos gentios, em moldes helênicos, em contrapartida ao cristianismo palestinense, entre outras formas de cristianismo[3]. Contudo, tanto seu conteúdo quanto sua retórica em Gálatas estão, notoriamente, alicerçados no Antigo Testamento, base para todos os escritos do apóstolo.
Gálatas pode ser considerada a carta de autoria mais certa entre os estudiosos[4], por causa das muitas marcas deixadas pelo seu autor ao narrar parte de sua trajetória (Gl.1-2). A causa de sua escrita e seu propósito são igualmente certos (Gl.1.6-11; 3.1-5), pois o apóstolo deixa explícito que os Gálatas estavam se desviando do evangelho e Paulo queria conduzi-los de volta (Gl.5.1-12). Contudo, a data da carta é bastante discutida tendo em vista estudos divergentes quanto ao lugar para a qual foi destinada, para Galácia do norte ou Galácia do Sul[5]. Não desconsiderando os inúmeros outros argumentos, parece mais adequado acompanhar a trajetória missionária de Paulo que esteve no Sul da Galácia. Considerando que tenha escrito para o sul da Galácia, a data mais provável gira em torno de 52 a.C[6].
Os estudiosos são, praticamente, unânimes na divisão de Gálatas em três partes[7]. Os dois primeiros capítulos da carta possuem uma defesa do ministério do apóstolo Paulo, concedendo provas de que sua mensagem era divina, revelação dada por Jesus Cristo. Os capítulos 3 e 4 fornecem as bases escriturísticas da teologia de Paulo mostrando plena coerência entre seu ensino advindo de Cristo e a mensagem profética revelada pelos profetas do Antigo Testamento. Por fim, nos capítulos 5 e 6, o apóstolo aponta as implicações escatológicas de seu evangelho, pois aqueles que estão em Cristo andam no Espírito. Tais implicações escatológicas são o cumprimento das promessas do Antigo Testamento e estão relacionadas com a manifestação da presença de seu Reino.
A perícope em questão (Gl.2.11-17) se encontra na primeira parte da carta aos Gálatas. Sua trajetória, descrita em Gálatas 1.10-2.21, pode ser dividida em três seções, acompanhada de um desfecho triunfante: o encontro de Paulo com Pedro. Cada uma das seções apresenta um período da vida de Paulo, separadas por marcadores temporais (três anos; catorze anos): Gl.1.11-17; 1.18-24; 2.1-10. A ultima seção relata a exortação de Paulo a Pedro (Gl.2.11-21), acompanhada de uma conclusão de sua abordagem histórico-teológica.
Nesta quarta seção (Gl.2.11-21), Paulo se coloca frente a frente com Pedro, reconhecido como “coluna” da igreja (Gl.2.11). A história de Pedro e sua participação no círculo mais íntimo de Jesus eram conhecidas da igreja (Gl.2.6-8), e parecia ainda desfrutar de certa proeminência entre os demais[8]. Por causa deste conhecimento, é bastante provável que estivessem atribuindo uma autoridade especial a Pedro sem associá-la ao ensino do Evangelho de Jesus. Ao desassociá-la, os Gálatas corriam o risco de aceitar falsas doutrinas ensinadas por pessoas que se diziam seguidoras de Pedro. Então, Paulo corrige a visão dos Gálatas, mostrando que o Evangelho está acima do mensageiro, e que a aprovação deste depende de sua fidelidade ao Evangelho de Jesus. Conforme Tolmie, Paulo “narra os acontecimentos em Antioquia, de tal forma que seu próprio comportamento é visto como uma defesa da “verdade do Evangelho” [9]”.
Após descrever seu encontro com Pedro, Paulo apresenta seus argumentos a favor da igualdade entre Judeus e gentios dentro do projeto redentor (Gl.2.15-21). Conforme Bruce, “é difícil definir em que ponto termina a censura de Paulo a Pedro e quando começa a exposição dos princípios em questão[10]”. Ao dizer “Nós judeus por natureza”, Paulo envolve o apóstolo Pedro, afirmando que ambos eram judeus por nascimento. Até Gálatas 2.17, Paulo faz uso da primeira pessoa do plural (nós), dando a entender que o texto faz parte do diálogo com Pedro. Somente a partir do versículo 18, Paulo faz uma mudança abrupta de pessoa, passando a falar em primeira pessoa singular (eu). Além da mudança de pessoa, não há outros marcadores que apontem para alguma divisão no texto.
Conforme Tolmie, “não é exatamente certo, como os versos 15 e 16 são estruturados sintaticamente. Alguns estudiosos tomam os versos 15 e 16 como uma unidade, vendo-o como um período complexo[11]”. Contudo, Tolmie considera que “a melhor opção parece ser a proposta por Eckstein, isto é, ver o verso 15 como uma unidade separada[12]”. O versículo 15 chama a atenção do leitor, como uma curta frase de efeito. Os gentios de Gálatas poderiam se sentir ofendidos com ela, mas era assim que os judeus olhavam para eles. Contudo, o propósito de Paulo não é ofendê-los, mas chamar a atenção deles. Por isso, o versículo 15 deve ser lido como parte de uma estrutura maior que envolve o versículo 16. Sem a conclusão do versículo 16, o propósito do versículo 15 fica oculto. Mas, ao ler o versículo 16, o leitor entende que apesar do judeu ver o gentio como um “pecador”, sem Cristo não há distinção entre judeu e gentio, assim como não há distinção entre gentio e judeu dentro do corpo de Cristo. Portanto, ainda que completo, o versículo 15 está conectado estruturalmente ao versículo 16, ajudando a construir o seguinte quiasmo:

A Nós, judeus por natureza e não dentre os gentios pecadores
B mas, sabendo que não é justificado o homem por obras da lei
C se não através da fé em Cristo Jesus
D também nós [judeus] em Cristo Jesus temos crido
C’ para que fôssemos justificados pela fé em Cristo
B’ e não por obras da lei,
A’ pois, por obras da lei, não será justificado nenhuma carne.


Ainda que Tolmie encontre um quiasmo entre os versículos 16 e 17, em vez dos versículos 15 e 16, ele, também, vê seu centro na expressão: “também nós [judeus] em Cristo Jesus temos crido”. Conforme Tolmie, “usando o quiasmo ele não somente consegue repetir a noção de fé em Cristo de forma pura, mas, também, converge a atenção sobre as palavras também nós[13]”. O centro do quiasmo é a afirmação que nós, ou seja, os judeus, também, precisaram crer em Cristo para ser salvo. Portanto, as obras da Lei não haviam sido eficazes para a salvação deles. Desta forma, Paulo chama a atenção dos Gálatas para o fato de que o cerne da vida cristã está na fé em Jesus como único Senhor e Salvador, pois por obras da Lei ninguém será justificado, nem judeu nem gentio.
Paulo repete algumas expressões diversas vezes, dentre as quais “obras da lei” aparece três vezes, enfatizando o assunto que está sendo abordado em sua carta[14]. Se ninguém será justificado por obras da Lei, nem judeu nem gentio; se as obras da Lei não foram eficazes para a salvação dos judeus; e, se o coração da vida cristã é a fé em Cristo Jesus, por que, então, os Gálatas estavam se deixando levar pelo ensino dos judaizantes, querendo confiar nas obras da Lei? Por que estavam querendo confiar na carne, ou seja, nas obras da Lei, novamente? Aqueles que queriam confiar nas próprias obras seriam achados como transgressores da Lei, pois seriam julgados conforme a Lei e não segundo a graça de Deus em Cristo Jesus.
No versículo 17, Paulo faz uma pergunta retórica: “Mas se, procurando ser justificados em Cristo, fomos nós mesmos também achados pecadores, dar-se-á o caso de Cristo ser ministro do pecado? Certo que não!”. Nem todas as perguntas retóricas feitas por Paulo são acompanhadas de resposta. No versículo 14, Paulo fez uma pergunta retórica, em seu discurso para Pedro, mas não mencionou qualquer resposta explícita. Contudo, algumas perguntas recebem uma ênfase maior e Paulo traz uma resposta forte, como se elevasse a voz naquele determinado momento e chamasse a atenção de seus leitores com um enfático: “Certo que não!” (Rm.3.4,6,31; 6.2,15; 7.7,13; 9.14; 11.1,11; 1Co.6.15; Gl.2.17; 3.21; [Gl.6.14]). Esse recurso é muito eficaz para chamar a atenção dos leitores[15]. Segundo Tolmie, o versículo levanta duas questões: se a referência de Paulo é real e se a pergunta deve ser realmente considerada retórica[16]. Todavia, considerando que estava em questão duas situações reais: Pedro dissimulando diante dos judeus e os Gálatas aderindo aos ensinos dos judaizantes, o problema deve ser tratado como real, e Paulo estava querendo corrigi-lo como fez com Pedro.
Tendo em vista o contexto de Gálatas 2.17, posto dentro da exortação de Paulo a Pedro, “Certo que não!” poderia ser atribuída à fala tanto de Pedro quanto de Paulo. Teria Pedro dito este não enfático como resposta ao questionamento de Paulo, ou o próprio Paulo dá sua resposta veemente? De acordo com o teor da pergunta, ambos teriam respondido, pois quanto ao assunto, é evidente que tanto Pedro (concordando com as palavras de Paulo por meio do silêncio) quanto Paulo estavam de pleno acordo que Cristo não era ministro do pecado. Deve-se considerar, também, que “Certo que não” é uma expressão característica do apóstolo aos gentios, pois no Novo Testamento, afora Paulo, somente Lucas a utiliza uma vez (Lc.20.16). É provável que Paulo tenha aderido a esta forma enfática que aparece na LXX (Gn.44.7; Js.22.29; 24.16), utilizada, também, para traduzir o termo hebraico equivalente a “amém[17]”.
No entanto, isso não invalida a possibilidade de Paulo tê-la colocado na boca de Pedro para dar maior ênfase à resposta para seus leitores. Conforme Bruce, “as evidências não são suficientemente conclusivas para diferenciar este “Certo que não!” como a resposta imaginária de Pedro à surpreendente declaração paulina sobre a conclusão à qual aponta para a ação de Pedro[18]”. De qualquer modo, a resposta de Paulo chama a atenção para o absurdo em questão. É evidente que Cristo não era ministro do pecado, pois Cristo morreu para livrar o pecador do pecado, por conseguinte, do jugo da Lei.
Em seu confronto a Pedro, Paulo demonstra que o Evangelho por ele pregado era proveniente de Jesus Cristo. Conforme Tolmie, “a estratégia retórica de Paulo nesta seção é dominado pelo que foi identificado como argumento baseado na noção de autorização divina[19]”. O evangelho anunciado por Paulo é de origem divina e está em pleno acordo com o Evangelho conhecido por todo o cristianismo, conforme “a tradição Bíblica aceita como oficial por todos[20]”, ao contrário do “evangelho” que os judaizantes haviam anunciado entre os Gálatas. Portanto, qualquer pessoa que se opusesse ao Evangelho anunciado por Paulo deveria ser exortado, pois estaria se desviando da Palavra de Cristo.
As palavras de Paulo possuem importante e ampla implicação para a igreja do século XXI, sobretudo, brasileira. As últimas décadas têm testemunhado um aparecimento crescente de líderes autônomos autoproclamados “apóstolos”. Seus ensinos são desassociados da Escritura Sagrada, se colocando acima da Palavra de Deus. Multidões têm seguido esses falsos apóstolos e obedecido seus falsos ensinos sem observar a procedência deles. A maioria desses falsos ensinos conduz o homem à confiança nas obras de suas mãos, acrescentando ritos e práticas veterotestamentárias para complementar a obra redentora, afastando o homem da suficiência da graça redentora de Jesus. Paulo deixa claro que o Evangelho está acima de qualquer pessoa de forma que todo ensino deve proceder dele para que seja aceito como Verdade proveniente da parte de Deus. Portanto, a igreja deve rejeitar qualquer ensino, não importando sua origem, que seja contrário ao Evangelho de Jesus Cristo.




[1] RIDDERBOS, Herman. A Teologia do Apóstolo Paulo. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p.14.
[2] Ibid, p.16.
[3] Ibid, p.15-22.
[4] CARSON, D. A.; MOO, Douglas J.; MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1997, p.320.
[5] GUTHRIE, Donald. Gálatas: Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova, 2011, p.26-47.
[6] HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento: Gálatas. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p.29.
[7] Esta conclusão é resultado da análise do esboço de diversos comentários e introduções.
[8] BRUCE, F. F. Un comentario de la epístola a los Gálatas. Barcelona: Editorial Clie, 2004, p.173.
[9] TOLMIE, D.F. Persuading the Galatians: a text-centered rhetorical analysis of a Pauline letter. Tübingen: Mohr Siebeck, 2005, p.95.
[10] BRUCE, 2004, p.191.
[11] TOLMIE, 2005, p.88.
[12] Ibid, p.88.
[13] Ibid, p.97.
[14] Ibid, p.88.
[15] Ibid, p.97.
[16] Ibid, p.97.
[17] BRUCE, 2004, p.198.
[18] Ibid, p.197.
[19] TOLMIE, 2005, p.72.
[20] Ibid, p.96.

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