“Quando, porém, vi que não procediam
corretamente segundo a verdade do evangelho, disse a Cefas, na presença de
todos: se, sendo tu judeu, vives como gentio e não como judeu, por que obrigas
os gentios a viverem como judeus?” (Gl.2.14)
Os séculos XIX e XX foram berço para um grande número de estudos críticos
do Novo Testamento. Conforme Herman Ridderbos, “o esforço no sentido de determinar o significado do apóstolo Paulo para
a história da revelação do Novo Testamento teve início em tempos recentes com
as obras de F. C. Baur (falecido em 1860), pai da chamada escola de Tubingen.[1]” Desde
então, os escritos de Paulo tem sido analisados lado a lado com o mundo
helênico. Quase todas as explicações sobre a teologia de Paulo são procuradas
no mundo greco-romano. Assim, Paulo deixou de ser o judeu-cristão, educado por
toda sua vida no judaísmo farisaico, e passou a ser o criador e propagador de
uma nova religião com fundamentos nas religiões e filosofias gregas,
influenciado pelo helenismo dos arredores de Tarso, sua cidade natal[2].
Os fundamentos judaicos que alicerçaram a vida e ministério do apóstolo foram
sendo pouco a pouco substituídos pela diversidade religiosa de seus dias.
Dentro desse pluralismo religioso-cristão, Paulo é visto como um dos
protagonistas que se sobressaiu e obteve sucesso na propagação de sua teologia
pregada aos gentios, em moldes helênicos, em contrapartida ao cristianismo
palestinense, entre outras formas de cristianismo[3].
Contudo, tanto seu conteúdo quanto sua retórica em Gálatas estão, notoriamente,
alicerçados no Antigo Testamento, base para todos os escritos do apóstolo.
Gálatas pode ser considerada a carta de autoria mais certa entre os
estudiosos[4],
por causa das muitas marcas deixadas pelo seu autor ao narrar parte de sua
trajetória (Gl.1-2). A causa de sua escrita e seu propósito são igualmente
certos (Gl.1.6-11; 3.1-5), pois o apóstolo deixa explícito que os Gálatas
estavam se desviando do evangelho e Paulo queria conduzi-los de volta
(Gl.5.1-12). Contudo, a data da carta é bastante discutida tendo em vista
estudos divergentes quanto ao lugar para a qual foi destinada, para Galácia do
norte ou Galácia do Sul[5]. Não
desconsiderando os inúmeros outros argumentos, parece mais adequado acompanhar
a trajetória missionária de Paulo que esteve no Sul da Galácia. Considerando
que tenha escrito para o sul da Galácia, a data mais provável gira em torno de
52 a.C[6].
Os estudiosos são, praticamente, unânimes na divisão de Gálatas em três
partes[7].
Os dois primeiros capítulos da carta possuem uma defesa do ministério do
apóstolo Paulo, concedendo provas de que sua mensagem era divina, revelação
dada por Jesus Cristo. Os capítulos 3 e 4 fornecem as bases escriturísticas da
teologia de Paulo mostrando plena coerência entre seu ensino advindo de Cristo
e a mensagem profética revelada pelos profetas do Antigo Testamento. Por fim,
nos capítulos 5 e 6, o apóstolo aponta as implicações escatológicas de seu
evangelho, pois aqueles que estão em Cristo andam no Espírito. Tais implicações
escatológicas são o cumprimento das promessas do Antigo Testamento e estão
relacionadas com a manifestação da presença de seu Reino.
A perícope em questão (Gl.2.11-17) se encontra na primeira parte da carta
aos Gálatas. Sua trajetória, descrita em Gálatas 1.10-2.21, pode ser dividida
em três seções, acompanhada de um desfecho triunfante: o encontro de Paulo com
Pedro. Cada uma das seções apresenta um período da vida de Paulo, separadas por
marcadores temporais (três anos; catorze anos): Gl.1.11-17; 1.18-24; 2.1-10. A
ultima seção relata a exortação de Paulo a Pedro (Gl.2.11-21), acompanhada de
uma conclusão de sua abordagem histórico-teológica.
Nesta quarta seção (Gl.2.11-21), Paulo se coloca frente a frente com
Pedro, reconhecido como “coluna” da
igreja (Gl.2.11). A história de Pedro e sua participação no círculo mais íntimo
de Jesus eram conhecidas da igreja (Gl.2.6-8), e parecia ainda desfrutar de
certa proeminência entre os demais[8].
Por causa deste conhecimento, é bastante provável que estivessem atribuindo uma
autoridade especial a Pedro sem associá-la ao ensino do Evangelho de Jesus. Ao
desassociá-la, os Gálatas corriam o risco de aceitar falsas doutrinas ensinadas
por pessoas que se diziam seguidoras de Pedro. Então, Paulo corrige a visão dos
Gálatas, mostrando que o Evangelho está acima do mensageiro, e que a aprovação
deste depende de sua fidelidade ao Evangelho de Jesus. Conforme Tolmie, Paulo
“narra os acontecimentos em Antioquia, de tal forma que seu próprio
comportamento é visto como uma defesa da “verdade do Evangelho” [9]”.
Após descrever seu encontro com Pedro, Paulo apresenta seus argumentos a favor da igualdade entre Judeus e gentios dentro do projeto
redentor (Gl.2.15-21). Conforme Bruce, “é difícil definir em que ponto termina a censura de
Paulo a Pedro e quando começa a exposição dos princípios em questão[10]”.
Ao dizer “Nós judeus por natureza”, Paulo envolve o apóstolo Pedro, afirmando
que ambos eram judeus por nascimento. Até Gálatas 2.17, Paulo faz uso da
primeira pessoa do plural (nós), dando a entender que o texto faz parte do
diálogo com Pedro. Somente a partir do versículo 18, Paulo faz uma mudança
abrupta de pessoa, passando a falar em primeira pessoa singular (eu). Além da
mudança de pessoa, não há outros marcadores que apontem para alguma divisão no
texto.
Conforme Tolmie, “não é exatamente certo, como os versos 15 e 16 são
estruturados sintaticamente. Alguns estudiosos tomam os versos 15 e 16 como uma
unidade, vendo-o como um período complexo[11]”.
Contudo, Tolmie considera que “a melhor opção parece ser a proposta por
Eckstein, isto é, ver o verso 15 como uma unidade separada[12]”.
O versículo 15 chama a atenção do leitor, como uma curta frase de efeito. Os
gentios de Gálatas poderiam se sentir ofendidos com ela, mas era assim que os
judeus olhavam para eles. Contudo, o propósito de Paulo não é ofendê-los, mas
chamar a atenção deles. Por isso, o versículo 15 deve ser lido como parte de
uma estrutura maior que envolve o versículo 16. Sem a conclusão do versículo
16, o propósito do versículo 15 fica oculto. Mas, ao ler o versículo 16, o
leitor entende que apesar do judeu ver o gentio como um “pecador”, sem Cristo
não há distinção entre judeu e gentio, assim como não há distinção entre gentio
e judeu dentro do corpo de Cristo. Portanto, ainda que completo, o versículo 15
está conectado estruturalmente ao versículo 16, ajudando a construir o seguinte
quiasmo:
A Nós,
judeus por natureza e não dentre os gentios pecadores
B mas,
sabendo que não é justificado o homem por obras da lei
C se não
através da fé em Cristo Jesus
D também nós [judeus] em Cristo
Jesus temos crido
C’ para
que fôssemos justificados pela fé em Cristo
B’ e não
por obras da lei,
A’ pois,
por obras da lei, não será justificado nenhuma carne.
Ainda que Tolmie encontre um quiasmo entre os versículos 16 e 17, em vez
dos versículos 15 e 16, ele, também, vê seu centro na expressão: “também nós [judeus]
em Cristo Jesus temos crido”.
Conforme Tolmie, “usando o quiasmo ele não somente consegue repetir a noção de
fé em Cristo de forma pura, mas, também, converge a atenção sobre as palavras “também nós”[13]”.
O centro do quiasmo é a afirmação que nós, ou seja, os judeus, também,
precisaram crer em Cristo para ser salvo. Portanto, as obras da Lei não haviam
sido eficazes para a salvação deles. Desta forma, Paulo chama a atenção dos
Gálatas para o fato de que o cerne da vida cristã está na fé em Jesus como
único Senhor e Salvador, pois por obras da Lei ninguém será justificado, nem
judeu nem gentio.
Paulo repete algumas expressões diversas vezes, dentre as quais “obras da lei” aparece três vezes,
enfatizando o assunto que está sendo abordado em sua carta[14].
Se ninguém será justificado por obras da Lei, nem judeu nem gentio; se as obras
da Lei não foram eficazes para a salvação dos judeus; e, se o coração da vida
cristã é a fé em Cristo Jesus, por que, então, os Gálatas estavam se deixando
levar pelo ensino dos judaizantes, querendo confiar nas obras da Lei? Por que
estavam querendo confiar na carne, ou seja, nas obras da Lei, novamente?
Aqueles que queriam confiar nas próprias obras seriam achados como
transgressores da Lei, pois seriam julgados conforme a Lei e não segundo a
graça de Deus em Cristo Jesus.
No versículo 17, Paulo faz uma pergunta retórica: “Mas se, procurando ser justificados em Cristo, fomos nós mesmos também
achados pecadores, dar-se-á o caso de Cristo ser ministro do pecado? Certo que
não!”. Nem todas as perguntas retóricas feitas por Paulo são acompanhadas
de resposta. No versículo 14, Paulo fez uma pergunta retórica, em seu discurso
para Pedro, mas não mencionou qualquer resposta explícita. Contudo, algumas
perguntas recebem uma ênfase maior e Paulo traz uma resposta forte, como se
elevasse a voz naquele determinado momento e chamasse a atenção de seus
leitores com um enfático: “Certo que não!”
(Rm.3.4,6,31; 6.2,15; 7.7,13; 9.14; 11.1,11; 1Co.6.15; Gl.2.17; 3.21;
[Gl.6.14]). Esse recurso é muito eficaz para chamar a atenção dos leitores[15].
Segundo Tolmie, o versículo levanta duas questões: se a referência de Paulo é
real e se a pergunta deve ser realmente considerada retórica[16].
Todavia, considerando que estava em questão duas situações reais: Pedro
dissimulando diante dos judeus e os Gálatas aderindo aos ensinos dos
judaizantes, o problema deve ser tratado como real, e Paulo estava querendo
corrigi-lo como fez com Pedro.
Tendo em vista o contexto de Gálatas 2.17, posto dentro da exortação de
Paulo a Pedro, “Certo que não!”
poderia ser atribuída à fala tanto de Pedro quanto de Paulo. Teria Pedro dito
este não enfático como resposta ao questionamento de Paulo, ou o próprio Paulo
dá sua resposta veemente? De acordo com o teor da pergunta, ambos teriam
respondido, pois quanto ao assunto, é evidente que tanto Pedro (concordando com
as palavras de Paulo por meio do silêncio) quanto Paulo estavam de pleno acordo
que Cristo não era ministro do pecado. Deve-se considerar, também, que “Certo que não” é uma expressão
característica do apóstolo aos gentios, pois no Novo Testamento, afora Paulo,
somente Lucas a utiliza uma vez (Lc.20.16). É provável que Paulo tenha aderido
a esta forma enfática que aparece na LXX (Gn.44.7; Js.22.29; 24.16), utilizada,
também, para traduzir o termo hebraico equivalente a “amém[17]”.
No entanto, isso não invalida a possibilidade de Paulo tê-la colocado na
boca de Pedro para dar maior ênfase à resposta para seus leitores. Conforme
Bruce, “as evidências não são suficientemente conclusivas para diferenciar este
“Certo que não!” como a resposta
imaginária de Pedro à surpreendente declaração paulina sobre a conclusão à qual
aponta para a ação de Pedro[18]”.
De qualquer modo, a resposta de Paulo chama a atenção para o absurdo em
questão. É evidente que Cristo não era ministro do pecado, pois Cristo morreu
para livrar o pecador do pecado, por conseguinte, do jugo da Lei.
Em seu confronto a Pedro, Paulo demonstra que o Evangelho por ele pregado
era proveniente de Jesus Cristo. Conforme Tolmie, “a estratégia retórica de
Paulo nesta seção é dominado pelo que foi identificado como argumento baseado
na noção de autorização divina[19]”.
O evangelho anunciado por Paulo é de origem divina e está em pleno acordo com o
Evangelho conhecido por todo o cristianismo, conforme “a tradição Bíblica
aceita como oficial por todos[20]”,
ao contrário do “evangelho” que os judaizantes haviam anunciado entre os Gálatas.
Portanto, qualquer pessoa que se opusesse ao Evangelho anunciado por Paulo
deveria ser exortado, pois estaria se desviando da Palavra de Cristo.
As palavras de Paulo possuem importante e ampla implicação para a igreja
do século XXI, sobretudo, brasileira. As últimas décadas têm testemunhado um
aparecimento crescente de líderes autônomos autoproclamados “apóstolos”. Seus
ensinos são desassociados da Escritura Sagrada, se colocando acima da Palavra
de Deus. Multidões têm seguido esses falsos apóstolos e obedecido seus falsos
ensinos sem observar a procedência deles. A maioria desses falsos ensinos
conduz o homem à confiança nas obras de suas mãos, acrescentando ritos e
práticas veterotestamentárias para complementar a obra redentora, afastando o
homem da suficiência da graça redentora de Jesus. Paulo deixa claro que o
Evangelho está acima de qualquer pessoa de forma que todo ensino deve proceder
dele para que seja aceito como Verdade proveniente da parte de Deus. Portanto,
a igreja deve rejeitar qualquer ensino, não importando sua origem, que seja
contrário ao Evangelho de Jesus Cristo.
[2] Ibid, p.16.
[3] Ibid, p.15-22.
[4] CARSON, D. A.; MOO, Douglas
J.; MORRIS, Leon. Introdução
ao Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1997, p.320.
[5]
GUTHRIE, Donald. Gálatas: Introdução
e Comentário. São Paulo: Vida Nova, 2011, p.26-47.
[6] HENDRIKSEN,
William. Comentário do Novo Testamento:
Gálatas. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p.29.
[7]
Esta conclusão é resultado da análise do esboço de diversos comentários e
introduções.
[8] BRUCE,
F. F. Un comentario de la epístola a los
Gálatas. Barcelona: Editorial
Clie, 2004, p.173.
[9] TOLMIE, D.F. Persuading the Galatians: a text-centered
rhetorical analysis of a Pauline letter. Tübingen: Mohr Siebeck, 2005,
p.95.
[10]
BRUCE, 2004, p.191.
[11] TOLMIE, 2005, p.88.
[12] Ibid, p.88.
[13] Ibid, p.97.
[14] Ibid, p.88.
[15] Ibid, p.97.
[16] Ibid, p.97.
[17] BRUCE, 2004, p.198.
[18] Ibid, p.197.
[19] TOLMIE, 2005, p.72.
[20] Ibid, p.96.
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