“para mostrar, nos séculos vindouros, a suprema riqueza da sua graça, em
bondade para conosco, em Cristo Jesus.” (Ef.2.7)
É claro que não se deve
pensar em teologia paulina somente após a reforma protestante, pois os pais da
igreja (séc.II à VIII) procuraram compreender a teologia do apóstolo Paulo, bem
como a igreja dos séculos seguintes (séc.IX à XV). Contudo, a partir da reforma
(séc.XVI), as cartas de Paulo ganham destaque nos círculos cristãos, alvo de
estudos os mais variados. Tanto os reformadores retiraram das cartas paulinas os
fundamentos da fé, livres dos abusos papais de um cristianismo norteado por
tradições apócrifas, quanto diversos outros estudiosos fizeram delas a base
para seus estudos místicos, liberais e ético-morais.
Lutero foi
profundamente marcado pela doutrina da justificação pela fé, e fez dela o critério
para a canonicidade dos livros do Novo Testamento. Romanos era para ele a carta
magna e a justificação pela fé somente, sem as obras da lei, era o importante
fundamento que aponta para Cristo, afinal todas as coisas devem apontar para
Jesus. Calvino, também, vivenciou o espírito da reforma em sua ênfase à
justificação pela fé como tema chave para a compreensão do evangelho, e, apesar
de não ter assumido o rigor de Lutero, Calvino compreendia que essa doutrina
era fundamental para “substituir o espírito de servidão legalista”. Lutero e
Calvino fizeram uma leitura judicial da Lei, de forma que a justificação
deveria ser compreendida como uma obra objetiva e legal, que ocorreu fora do
homem, imputada a ele por meio da fé. Esta fé torna o homem participante da
justiça alcançada por Jesus.
Com o surgimento do
pietismo (séc. XVII), misticismo e moralismo, a ênfase sobre a justificação mudou,
deixando sua aplicação judicial, externa ao indivíduo, para uma experiência
individual de salvação focada em sua prática espiritual e moral. A salvação é
enfatizada a partir do relacionamento do indivíduo com Deus por meio de sua prática
espiritual e conduta moral, em conformidade com os ensinos do Novo Testamento,
que tem no sermão do monte seu modelo. A justificação não é mais compreendida
em termos objetivos, mas subjetivos, e a imagem jurídica de um tribunal onde
Cristo nos justificou perante o Juiz de toda a Terra é substituída por um
quadro de cunho mais existencialista, repleto de experiências espirituais-ético-morais.
Ainda que o pietismo tenha apontado importantes pontos da teologia, a piedade
cristã cotidiana, trocou o foco da fé cristã.
A partir do iluminismo,
o estudo das cartas paulinas ganha uma maior força acadêmica por meio da
exegese histórico-crítica norteada pelos pressupostos filosóficos e religiosos
da época (séc. XVIII), criando diversas imagens de Paulo de acordo com tais
conceitos pré-concebidos. A maioria dos estudiosos foram buscar suas ideias nas
filosofias gregas, religiões de mistério, literaturas apocalípticas e livros
gnósticos. O background judaico de Paulo se tornou completamente secundário e o
Antigo Testamento foi quase que ignorado. O “Jesus histórico” se tornou apenas
um ponto de partida para o desenvolvimento praticamente independente de Paulo,
formando basicamente uma nova religião a partir de um misto de ideias que o
influenciaram após sua experiência de conversão na estrada de Damasco. Quatro
escolas produzem sua própria imagem de Paulo: a escola de Tübingen, a escola liberal,
a escola da história das religiões e a escola das interpretações escatológicas.
A partir da escola de
Tübingen (séc. XIX), os estudiosos tendem a ler Paulo numa perspectiva
subjetiva ético-mística. O Antigo Testamento e o judaísmo não é o background
das cartas paulinas, mas as religiões de mistério encontradas entre os gregos,
além dos conceitos helênicos sobre salvação, carne, espírito etc. O ponto de
partida é a experiência de Paulo na estrada de Damasco. Esta teria transformado
o fariseu num novo homem desvencilhado da Lei judaica.
A partir de seu
fundador F. C. Baur, a escola interpretou o cristianismo por meio dos
princípios filosóficos de Hegel, afirmando encontrar nas cartas paulinas uma antítese
ao cristianismo judaico que estava preso à Lei mosaica. Conforme esta escola, a
síntese entre o cristianismo judaico e o cristianismo de Paulo aparece
posteriormente por meio do gnosticismo e do catolicismo sintético. Enquanto o
cristianismo inicial ainda vivia debaixo da esfera da Lei, Paulo defendeu e
propagou um cristianismo fora das amarras da Lei. Mais tarde, a igreja gera uma
síntese dos dois pensamentos concebendo o universalismo. Para Baur, Paulo estava
desassociado do cristianismo iniciado pelos demais apóstolos. Conforme Baur, o Jesus
histórico não é o objeto da fé do apóstolo aos gentios. Sua concepção de
cristianismo liberto da Lei surgiu quando Deus o chamou e lhe revelou a
realidade da morte de Jesus. A partir de sua experiência, Paulo não precisava
da história relacionada ao cristianismo, pois Deus falava em sua consciência
diretamente. Por esta razão, Baur considerou uma grande parte do conteúdo das
cartas paulinas como escrito não original do apóstolo, por causa das muitas
referências ao Antigo Testamento.
Um pouco posterior à
escola de Tübingen, apareceu a escola liberal interpretando Paulo à luz de uma
antropologia grega, considerando que a linha jurídico-legal pertencia ao
judaísmo enquanto Paulo adotava uma linha ético-mística de caráter
grego-helenista. Assim, a “união com Cristo” é interpretada com sentido místico
voltado para a ética. Paulo teria abandonado o judaísmo após sua conversão na
estrada para Damasco começando uma nova vida influenciada por diversos
pensamentos gregos místicos. A antítese entre espírito e carne é analisada numa
perspectiva ético-racionalista, onde carne significa os desejos animalescos,
como o desejo sexual, e o espírito é “o mais importante princípio racional no
ser humano”. Contudo, sem poder negar o caráter jurídico da doutrina da
justificação, o liberalismo ora interpreta Paulo numa visão grega e moral ora
afirma que Paulo abordava o tema numa perspectiva judaica. A conversão de Paulo
em Damasco foi de caráter subjetivo e se tornou a base para a doutrina da salvação
elaborada pelo apóstolo. Essa salvação se dá por meio da experiência pessoal e
interior do indivíduo, com o Espírito. Seus conceitos teriam se originado a
partir de pensamentos gregos que o influenciaram, fazendo-o abandonar os
conceitos judaicos de seu tempo de fariseu. O pensamento de Paulo é reduzido a
uma religiosidade ética-racional independente de fatores redentores objetivos.
No entanto, conforme Wrede,
os conceitos de Paulo eram provenientes de sua religião judaica e foram
transferidos para Jesus, gerando o Cristo de Paulo. Mesmo que a proclamação de
Paulo não tenha muita relação com o Jesus histórico, deve ser compreendida a
partir deste. A concepção de Wrede sobre a teologia de Paulo sobrepôs as compreensões
anteriores a ele, ainda que não tenha feito justiça ao pensamento do apóstolo, pois
manteve certa distância entre o apóstolo e o Filho de Deus histórico.
A abordagem da história
das religiões interpretou Paulo a partir das religiões de mistério presentes em
sua época. Em certa medida, sua abordagem não é muito diferente das demais
escolas, tentando explicar os conceitos de Paulo a partir das filosofias e
religiões presentes no primeiro século. Para essa escola, as religiões de
mistério helênicas teriam exercido forte influência sobre Paulo que inseriu os elementos
sacramentais no cristianismo, associando-os à morte e ressurreição de Jesus.
Cristo é reinterpretado de forma mística se tornando o kyrios pneumático (Senhor
espiritual) que se faz presente misticamente no culto oferecido pela igreja. Este
kyrios (Senhor) é o Espirito que atua na igreja proporcionando uma experiência
de ressurreição. A presença do kyrios (Senhor) na vida do cristão transmite
para este a vida, tornando-o participante de sua eternidade. Uma espécie de
pré-gnosticismo teria influenciado Paulo. Sua proclamação não se baseava nos
ensinos e obra do Jesus histórico, mas na experiência que ele teve em seu
interior. Paulo seria um místico que assimilou o conceito mitológico de
redentor redimido.
Conforme a escola da
interpretação escatológica de Paulo, a união da igreja com cristo deve ser
compreendida num sentido escatológico judaico. Portanto, a teologia de Paulo
está fundamentada na pregação do Reino de Deus anunciada por Jesus. O tempo
presente se tornou o período escatológico, mas como diversos elementos
esperados não foram cumpridos, Paulo fez uma releitura mística, de acordo com o
esquema de livros apocalípticos como Baruque. O presente e o futuro, o natural
e o sobrenatural se encontram nesta era tornando o cristão coparticipante da
ressurreição, como uma “personalidade conjunta” desfrutada por meio do “pneuma”
(Espírito). Contudo, essa relação não é simbólica, nem místico-grega, mas real
e corpórea que ocorre por meio da apropriação do evento sacramental.
Apesar de todo esforço,
nenhuma das correntes de interpretação fez justiça aos aspectos fundamentais da
teologia do apóstolo Paulo. Perdeu-se a continuidade entre o Antigo e o Novo
Testamento, pois o cristianismo deixou de ser visto como o cumprimento das
promessas redentoras feitas pelos profetas. A conversão de Paulo se tornou um
completo abandono de seu passado relacionado ao Antigo Testamento. Sem um
fundamento para alicerçar a teologia paulina, foi preciso colocar outro no
lugar daquele que fora retirado, e, para isso, as escolas de interpretação
recorreram aos diversos elementos filosóficos e religiosos presentes nos dias
do apóstolo, criando uma imagem completamente distorcida de Paulo e sua
teologia.
Contudo, um grupo de
teólogos tem se preocupado em ler o evangelho a partir de seu sentido original,
olhando para o Novo Testamento como o cumprimento da história redentora
anunciada pelo Antigo Testamento. A escatologia realizada não é o resultado de
uma frustração, mas a compreensão de que os últimos dias se iniciaram por meio
de Jesus e a igreja já desfruta das bênçãos divinas enquanto aguarda o advento
da volta de Jesus. Desta forma, toda a teologia de Paulo é compreendida numa
relação de continuidade com o Antigo Testamento, vida e obra de Jesus. Herman
Ridderbos representa com excelência um grupo significativo de estudiosos
ortodoxos com esse olhar para Paulo e suas obras.
Conforme Herman
Ridderbos, há alguns temas que são básicos na formação da teologia de Paulo.
Eles se constituem no fundamento da “proclamação e explicação do tempo escatológico
de salvação inaugurado com o advento de Cristo, sua morte e ressurreição”.
Paulo usa duas vezes a expressão “Plenitude dos tempos” para se referir à
consumação do tempo com o advento de Cristo. O mundo entrou em seu estágio
final e esse último estágio possui um aspecto presente e outro futuro, ambos
abordados pelo apóstolo que tanto olha para o presente, explicando a presença
do Reino de Deus, quanto aborda o tempo futuro quando se dará o desfecho destes
dias. Dentro deste tempo Paulo faz menção do “dia da salvação” como referência
à encarnação, morte, ressurreição, glorificação de Cristo e vinda do Espírito. Esses
eventos redentores se constituem no “dia da salvação” e inauguraram os últimos
dias. O futuro escatológico chegou por meio de Cristo e com Ele a “nova
criação” foi inaugurada. A igreja, portanto, já desfruta da nova criação. Esta
ampla realidade dos últimos dias estava oculta nos dias do Antigo Testamento.
Mas, a proclamação do evangelho de Paulo, e o Novo Testamento como um todo, é a
“Revelação do mistério” que estivera oculto em tempos anteriores. Paulo explica
que o advento de Cristo não era conhecido dos homens, mas o tempo de sua
revelação chegou por meio da manifestação de Cristo e pregação apostólica.
Paulo compreende a
história à luz de Cristo de forma que sua escatologia é cristológica, pois está
diretamente relacionada com os eventos históricos-redentor acontecidos em
Cristo. Esses eventos são a base da pregação de Paulo, determinados pela morte
e ressurreição de Jesus. O Reino de Deus chegou com poder e o mundo presente
perdeu sua força diante da chegada do tempo escatológico. Um novo mundo está
presente sobrepondo o velho mundo com seus pecados. Aqueles que creem recebem a
aplicação da obra expiatória de Cristo se beneficiando do tempo da salvação.
Esses desfrutam de uma plena união com Cristo, uma realidade permanente que
molda todos os aspectos da vida. Por meio dessa união com Cristo o pecado é
vencido, pois o velho homem foi crucificado perdendo seu controle sobre aqueles
que estão em Cristo. A carne já não tem domínio, pois a nova criação foi
inaugurada proveniente do Espírito. Toda essa realidade foi inaugurada pela
pessoa de Cristo, o filho de Deus pré-existente que na plenitude dos tempos foi
revelado. Ele é o primogênito de todas as coisas, ou seja, o Senhor absoluto de
todo o cosmo criado, também o inaugurador da nova criação. Por meio do Espírito,
penhor que sela que garante ao crente a redenção final, Cristo, exaltado à
destra de Deus, mantém comunhão com a igreja. Mas, o advento do Espírito, parte
do projeto redentor, somente pode ser compreendido à luz de Cristo de forma que
sem os eventos históricos-redentor manifestos na pessoa de Cristo a promessa do
Espírito não poderia ser cumprida. Pelo Espírito a igreja mantem sua
expectativa futura até que a revelação do mistério de Deus seja completada
quando Cristo for manifesto em glória.
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