Pages

quinta-feira, 9 de junho de 2022

O Deus-Homem (Deus na história humana)


 
 “Visto que muitos houve que empreenderam uma narração coordenada dos fatos que entre nós se realizaram,  2 conforme nos transmitiram os que desde o princípio foram deles testemunhas oculares e ministros da palavra,  3 igualmente a mim me pareceu bem, depois de acurada investigação de tudo desde sua origem, dar-te por escrito, excelentíssimo Teófilo, uma exposição em ordem,  4 para que tenhas plena certeza das verdades em que foste instruído” (Lc.1.1-4)


Lucas é o evangelista mais detalhista dentre os quatro Evangelhos. Ele se preocupa em apresentar informações históricas com precisão, trazendo uma imensa e importante contribuição para o Novo Testamento. Lucas nos informa como foi o anuncio do nascimento de João Batista (Lc.1.5-25) e nos dá detalhes sobre o período de gestação de Maria (Lc.1.39-66). Seu trabalho historiográfico é impressionante, sem abandonar o propósito teológico de sua obra. Os detalhes de seu evangelho tornam possível, ao leitor, ver o cuidado e a diligência, dedicados à pesquisa de campo, que o médico amado teve para transmitir com precisão todas as verdades que cercaram o nascimento e o ministério do Filho de Deus: “igualmente a mim me pareceu bem, depois de acurada investigação de tudo desde sua origem, dar-te por escrito, excelentíssimo Teófilo, uma exposição em ordem” (Lc.1.3).


O evangelista situa o Filho de Deus na história humana. A redenção é, antes de um operar no coração do homem, uma obra fundamentalmente e necessariamente histórica. Sem a obra histórica de Cristo não haveria a obra existencial do Espírito Santo. Antes de mudar o coração do homem perante Deus, Cristo mudou a condição histórico-jurídica da humanidade perante o Criador-Juiz de todo o universo. O nascimento, vida/sofrimento, morte, ressurreição e ascensão do Filho de Deus tem local e data definidos. E Lucas demonstra que entendeu a importância dessas informações para o cristianismo. A fé cristã não pode ser reduzida a uma filosofia de vida, muito menos a uma fictícia jornada épica de um personagem mitológico. Sem a pessoa histórica de Cristo, o cristianismo seria apenas uma religião de boas obras e palavras bonitas, incapaz de comunicar histórica salvação para os pecadores; impossibilitado de transmitir verdadeira esperança de vida eterna aos mortais. 


Contudo, há algo importante a considerarmos: As informações históricas situam os leitores no espaço-tempo, mas não constituem o coração da obra. Lucas não é apenas um historiógrafo. Seu propósito é revelar as obras do Senhor e seu significado expresso nas Palavras dos personagens. Lucas prioriza as longas palavras nos primeiros capítulos de seu livro. O anjo Gabriel abre os diálogos do livro anunciando para Zacarias o nascimento de seu filho, João Batista, precursor do Filho de Deus (Lc.1.8-25). Em seguida, o anjo Gabriel aparece, também, a Maria para lhe anunciar que fora escolhida por Deus para ser a mãe do Messias, o Filho de Deus (Lc.1.26-38). Logo adiante, Lucas dá espaço para as palavras de Maria, a mãe do Salvador, e de Zacarias, por ocasião do nascimento de seu filho João Batista. Na ocasião do nascimento de Cristo, o anjo do Senhor anuncia aos pastores o advento do Messias; e, nos “dias da purificação deles segundo a Lei de Moisés” (Lc.2.22), aparece Simão, “homem este justo e piedoso que esperava a consolação de Israel” (Lc.2.25), louvando a Deus com o menino Jesus em seus braços (Lc.2.28). Nessa ocasião, também uma profetiza chamada Ana dava testemunho “e falava a respeito do menino a todos” (Lc.2.38). O bloco textual encerra-se com as Palavras do próprio Jesus, que tinha apenas 12 anos de idade, em seu encontro com doutores da Lei no Templo de Jerusalém que Ele chama de “casa de meu Pai” (Lc.2.41-52).


O invisível encontra o visível, o celestial se faz presente entre os terrenos. A dimensão espiritual se encontra com o mundo material para anunciar a salvação do cosmo criado por Deus, por meio do DEUS-HOMEM, Jesus Cristo (Jo.1.1-12). A integralidade da realidade criada por Deus se descortina aos homens pecadores para manifestar a graça divina da eterna salvação e restauração de tudo que fora criado pelo Criador. A história humana ganha um adorno especial, mostrando-se mais que relatos dos feitos dos pecadores. Em Lucas, a história redentora não está restrita ao povo judeu, nem mesmo aos reinos deste mundo. O cosmo inteiro faz parte da obra salvífica, participando discretamente da jornada do redentor de toda a criação. Desse modo, uma estrela anuncia o momento e o lugar do nascimento do Messias, indicando que Aquele frágil menino era a esperança de toda a criação (Mt.2.9-10), fazendo-nos refletir que, por essa razão, no passado, o sol e a lua pararam para possibilitar a vitória de Israel sobre os inimigos de Deus (Js.10).


A preparação para o advento do Filho de Deus aconteceu “nos dias de Herodes, rei da Judeia” (Lc.1.5). Nesse tempo, Deus revelou ao sacerdote Zacarias que seu filho seria o precursor do Messias prometido. O momento fora testemunhado por uma multidão não contada, o povo que aguardava Zacarias queimar o incenso no santuário do Senhor (Lc.1.9). A presença de muitas testemunhas em todo o decurso da narrativa dos fatos históricos é proposital, visando mostrar a fidedignidade de tudo o que é dito pelo evangelista. Com tantas testemunhas, ninguém poderia dizer que os eventos não aconteceram, ou que os evangelistas inventaram algo. Assim como os apóstolos estavam vivos na ocasião da escrita do evangelho de Lucas, também boa parte das testemunhas dos eventos, citadas pelo médico amado, estava viva e poderia testemunhar sobre a veracidade de todas as informações. 


Portanto, qualquer pessoa interessada em confirmar a veracidade das informações sobre a aparição do anjo Gabriel e a revelação do nascimento de João Batista poderia recorrer à multidão dos dias em que governava o rei Herodes, e que oferecia sacrifícios em Jerusalém naqueles dias. A narrativa sobre o nascimento profético de João Batista é finalizada com o canto profético de Zacarias que proferiu suas palavras no dia da circuncisão de seu filho. O momento, que era especial para toda família judia, foi adornado de maior significação, pois naquele dia cumpriu-se a palavra do anjo Gabriel, e Zacarias louvou a Deus, pois teve sua língua desimpedida perante todos os presentes na cerimônia (Lc.1.58-59), então “sucedeu que todos os seus vizinhos ficaram possuídos de temor, e por toda a região montanhosa da Judéia foram divulgadas estas coisas” (Lc.1.65).


Se o apontamento histórico do nascimento do precursor do Messias era importante para o projeto redentor, quão maior a relevância do registro do dia em que o Filho de Deus nasceu entre os homens. Lucas nos conta o ano exato em que Cristo nasceu, com sua localização:


Lucas 2:1-8  Naqueles dias, foi publicado um decreto de César Augusto, convocando toda a população do império para recensear-se.  2 Este, o primeiro recenseamento, foi feito quando Quirino era governador da Síria.  3 Todos iam alistar-se, cada um à sua própria cidade.  4 José também subiu da Galiléia, da cidade de Nazaré, para a Judéia, à cidade de Davi, chamada Belém, por ser ele da casa e família de Davi,  5 a fim de alistar-se com Maria, sua esposa, que estava grávida.  6 Estando eles ali, aconteceu completarem-se-lhe os dias,  7 e ela deu à luz o seu filho primogênito, enfaixou-o e o deitou numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria.  8 Havia, naquela mesma região, pastores que viviam nos campos e guardavam o seu rebanho durante as vigílias da noite


Por causa dessa informação, foi possível dividir a história humana em dois períodos: Antes de Cristo e Depois de Cristo. Essa divisão é, dentre todas, a mais significativa, pois a Palavra de Deus nos revela que o advento de Cristo inaugurou os últimos dias da história humana, uma contagem regressiva para o dia do juízo final (Is.2.2; Dn.2.28; 10.14; Os.3.5; Mq.4.1; At.2.17; 2Tm.3.1; Hb.1.2; 2Pe.3.3). E mesmo que tal divisão não contemple todas as mudanças da história, pois a Idade Antiga perdurou até a queda do Império Romano (476 d.C), nenhum evento histórico pode ser considerado mais importante para a humanidade do que o advento do Filho de Deus ao mundo, a encarnação do Verbo Criador, com sua morte, ressurreição e ascensão. É por meio de Lucas que tomamos o conhecimento de que Jesus começou seu ministério aos trinta anos de Idade (Lc.3.23), possibilitando a conclusão de que Cristo morreu e ressuscitou aos trinta e três anos, ou seja, três páscoas depois (João 2.23; 6.4; 12.1).


Ainda que Lucas tenha visto a importância de situar o nascimento de Cristo no espaço-tempo, não significa que o mais magnífico evento cósmico tenha ocorrido envolto de aclames e pompas, como seria digno a um Rei. A narrativa do nascimento do Filho de Deus é marcada por solidão, simplicidade e humildade. Mais que filho de Abraão e filho de Davi (Mt.1.1), nasceu em Belém o Filho de Deus, mas as trombetas não convocaram o mundo para contemplar o momento. E a despeito das revelações gloriosas indicando o local exato do nascimento do Messias (Mt.2.9-11; Lc.2.10-12), apenas alguns magos estrangeiros (Mt.2.1) e poucos desprezados pastores vieram do campo para assistir ao advento. Enquanto César Augusto, Herodes e Quirino sentavam-se em seus tronos (Lc.1.5; 2.1-2), o Filho de Deus foi posto em uma manjedoura, pois não havia lugar para Ele na hospedaria (Lc.2.7).


Aprouve a Deus não revelar, a nenhum grande deste mundo nem poderoso dentre os homens, o nascimento de seu Filho. Não há reis nem governadores no momento natalício; nem mesmo o sumo sacerdote e os principais rabinos foram convidados a participar daquele tão esperado e glorioso dia que havia sido profetizado desde o Éden (Gn.3.15). Contudo, Deus revela seu apreço gracioso aos pequenos e desprezados, simples e humildes deste mundo, como posteriormente o apóstolo Paulo afirma:


1 Coríntios 1.26-29 Irmãos, reparai, pois, na vossa vocação; visto que não foram chamados muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de nobre nascimento;  27 pelo contrário, Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes;  28 e Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são;  29 a fim de que ninguém se vanglorie na presença de Deus.


Em Lucas, é possível vermos o imensurável contraste entre o mundo visível e a realidade invisível a respeito do tratamento dado ao nascimento de Cristo. Aquele grandioso evento cósmico envolvia toda a realidade existente, tudo o que fora criado por Deus, nos céus e na terra. Mas, enquanto seres celestiais se alegravam sobremaneira com o nascimento do Filho de Deus, reis e poderosos dentre os filhos dos homens ignoravam o advento divino. Conforme Lucas, “apareceu com o anjo uma multidão da milícia celestial, louvando a Deus e dizendo: Glória a Deus nas maiores alturas, e paz na terra entre os homens, a quem ele quer bem” (Lc.2.13-14), porém Herodes, ao saber do nascimento do Rei dos judeus, ignorou o evento fazendo pouco caso da notícia, pois não fizera questão de comparecer ao nascimento do Filho de Deus (Mt.2.1-8), desprezando o Herdeiro de todo o universo. Assim, Cristo esteve solitário em seu nascimento, desprezado pelos homens a quem veio salvar graciosamente.


Aquele que transcende o tempo e o espaço, o Criador de todas as coisas, encarnou tornando-se parte da história humana. O Filho de Deus tornou-se realmente um de nós, limitado ao tempo e ao espaço, de modo a sujeitar-se à necessidade de desenvolvimento humano, como todos os homens estão sujeitos. Lucas relata que João Batista “crescia e se fortalecia em espírito” (Lc.1.80) e, logo em seguida, atribui as mesmas palavras a Cristo Jesus: “crescia o menino e se fortalecia, enchendo-se de sabedoria; e a graça de Deus estava sobre ele.” (Lc.2.40,52). Deus entra na história humana para percorrer a jornada de um homem, assistido pelo cosmo animado: anjos, demônios, homens e demais seres vivos, e por todo o universo inanimado. O Eterno torna-se mortal, o Invisível manifesta-se em matéria e forma aos olhos de todos, o transcendente adquire limites, sujeitando-se aos rudimentos da época. Tudo isso, para manifestar a imensidão de sua graça e amor, salvando aquilo que Ele mesmo criou.


Os detalhes apresentados por Lucas nos conduzem a refletir no uso que Deus faz da simples vida cotidiana, manifestando, assim, o extraordinário de modo tão ordinário. É no trabalho comum de Zacarias que o anjo anuncia o nascimento milagroso de João Batista. Para isso, Zacarias deveria ir para casa amar sua mulher, a fim de que dessa relação de amor se cumprisse a Palavra do Senhor proferida pelo anjo Gabriel (Lc.1.13,23). A singeleza da íntima relação conjugal é instrumento para o operar extraordinário de Deus, cumprindo as antigas profecias de Isaías (Is.40.1-11). Mais adiante, tendo concebido do Espírito Santo, Maria visita sua parente Isabel, que estava grávida a mais de seis meses, e, nesse comum gesto amoroso, o Espírito de Deus fala por sua serva proclamando profeticamente a salvação de Israel (Lc.1.46-56). Hábitos comuns e simples do dia a dia do povo do Senhor são o cenário para a manifestação do extraordinário. E mesmo sem que os homens se deem conta, suas ações tornam-se instrumentos para o cumprimento da vontade divina, pois o “decreto de César Augusto, convocando toda a população do império para recensear-se” (Lc.2.1) colocou José e Maria no lugar exato em que Jesus deveria nascer: Belém de Judá (Lc.2.4). Assim, o ordinário e o extraordinário se unem para dar à luz a redenção divina de toda a criação de Deus.


Esse operar extraordinário de Deus por meio daquilo que é mais ordinário na criação enaltece a simples vida comum do ser humano. Os pecadores amam a glória e os homens buscam o sobrenatural. Que valor tem o simples e o comum? Que glória há em ser um bom esposo ou uma boa esposa, um pai cuidadoso ou uma mãe dedicada? A sociedade é motivada a desejar os grandes feitos de heróis, marginalizando a vida comum ao status da simplicidade plebeia camponesa. Todavia, Lucas nos mostra que Deus opera naquilo que é simples e cotidiano, na vida comum do lar, na intimidade de um casal temente a Deus, no nascimento de uma criança esperada por seus pais, nas decisões daqueles que governam sobre todo um povo, na amabilidade de relações fraternas sinceras e abençoadoras. A vida comum ganha caras molduras que revelam o valor de sua beleza, convidando os expectadores a apreciar o simples cotidiano, vendo nele o ambiente para a manifestação das grandes obras extraordinárias de Deus, pelas quais Ele manifesta seu amor, bondade, graça e misericórdia.


Paulo contempla bem a beleza da vida simples e comum, vendo nela o encontro do ordinário com o extraordinário. Em Efésios 5.22 a 6.9, o apóstolo faz menção daquilo que era mais cotidiano para a vida: a relação conjugal, a relação paterna e a relação trabalhista. Nessas três relações simples e comuns, Paulo mostra a presença divina unindo o ordinário ao extraordinário. Conforme o apóstolo, o casamento é uma expressão da relação entre Cristo e a igreja, comunicando a beleza da submissão da noiva de Cristo e o amor do Filho de Deus por seu povo (Ef.5.22-33). Quando os cônjuges vivenciam seus papeis em pleno acordo com a vontade divina, tornam-se instrumentos e beneficiários das bênçãos do Senhor testemunhando o amor e o cuidado de Deus. Não é diferente com a relação entre pais e filhos. Nessa relação, a bênção de Deus é comunicada tanto por promessa quanto por educação (Ef.6.1-4). Os pais são instrumentos para a santificação de seus filhos, transmitindo-lhes a sabedoria divina por meio do ensino da Palavra de Deus, encorajando todo homem a ouvir, confiar e obedecer aos ensinamentos divinos (Pv.3.5). Por fim, o apóstolo aponta para a beleza do serviço a Deus promovido através do trabalho mais simples de um escravo (Ef.6.5-9). A sinceridade e a humildade de um servo manifestam a graciosa bondade de Deus para com os homens enquanto a piedade dos senhores de escravos revela o cuidado divino para com todos, grandes e pequenos. Nisso tudo, vemos o ordinário servindo ao extraordinário manifestando um cosmo alvo da providência de Deus. 


Em Lucas, Deus opera na história humana através de elementos simples e cotidianos, fazendo parte dela de modo tanto ordinário quanto extraordinário: “Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu; o governo está sobre os seus ombros; e o seu nome será: Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz” (Is.9.6). O evangelista nos revela como o Espírito de Deus operou extraordinariamente em uma mulher simples chamada Maria para que ela dessa à luz ao Filho de Deus de modo ordinário. Assim, a singeleza da vida comum do povo de Deus é instrumento para a manifestação das grandes obras do Senhor, como uma simples brisa suave soprada toda manhã anunciando o cuidado divino sobre sua criação, na qual presenciou, Elias, a glória divina: "Disse-lhe Deus: Sai e põe-te neste monte perante o SENHOR. Eis que passava o SENHOR; e um grande e forte vento fendia os montes e despedaçava as penhas diante do SENHOR, porém o SENHOR não estava no vento; depois do vento, um terremoto, mas o SENHOR não estava no terremoto; depois do terremoto, um fogo, mas o SENHOR não estava no fogo; e, depois do fogo, um cicio tranqüilo e suave. Ouvindo-o Elias, envolveu o rosto no seu manto e, saindo, pôs-se à entrada da caverna. Eis que lhe veio uma voz e lhe disse: Que fazes aqui, Elias?" (1Rs.19.11-13).

Nenhum comentário:

Postar um comentário