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quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Os conceitos de CARNE e ESPÍRITO no paralelo entre Ezequiel e João

O que é nascido da carne é carne; e o que é nascido do Espírito é espírito.” (Jo.3.6)

Brasil é de fato um país de todos. Encontramos em nosso país, pessoas de diversas culturas, pois recebemos, praticamente, gente do mundo todo, ajudando a formar um país com ampla diversidade cultural. Mas, por mais bonito que seja ver a hospitalidade de nosso povo, o brasileiro herdou algumas características negativas por meio dessa miscigenação. A falta de identidade e patriotismo são duas dessas características negativas, observadas na conduta do brasileiro no dia a dia, no trânsito, no uso dos recursos públicos, na política, no trabalho etc. Contudo, outra característica bastante negativa tem afetado de perto os cristãos em nosso país. Muitas igrejas já se dividiram por razões tolas, muitos cristãos brigam por causa dessa característica: “o misticismo brasileiro”.
Boa parte dos cristãos brasileiros possuem conceitos místicos e supersticiosos sobre diversos assuntos: bebida, comida, roupas, dinheiro, trabalho, estudo etc. Dentre esses assuntos, devem ser incluídos os conceitos de “carne” e “espírito”, por meio dos quais os cristãos expurgam da igreja muitas práticas comuns e adotam outras especificamente evangelicais. Os termos são ricos em significados, e, por isso, devem ser analisados cuidadosamente, caso queiramos compreender o ensino bíblico sobre o assunto. Geralmente, o termo “carne” possui uma conotação pejorativa, como sinônimo de “maligno”, tornando-se, assim, antônimo do termo “espírito” atribuído ao que é celestial e bom. Contudo, será que são esses seus significados na Palavra de Deus?
A língua é um rio caudaloso, longo e largo, que nunca se detém em seu curso[1]. Ela se move fluentemente junto às gerações e toma as formas mais variadas de acordo com o tempo-cultura. A realidade da língua existe através de significante e significado[2] sendo arbitrários, ou seja, não possuindo uma relação lógica[3]. Ambos, significado e significante, evoluem tanto sincronicamente como diacronicamente[4] o que significa que se deve ter muito cuidado nas análises etimológicas das palavras para não incorrer no erro de atribuir valores há muito tempo substituídos sem uma relação necessariamente lógica em sua evolução diacrônica. A melhor forma de se atribuir significado ao significante é compreendendo-o semanticamente em tempo e espaço contextual, entendendo, também, a história evolutiva natural do termo no meio sócio-cultural.
O livro de Ezequiel foi escrito dentro do exílio babilônico[5], por volta de 593-573 a.C. Em Ezequiel temos uma literatura profética recheada de visões sobre Deus e Israel[6]. Durante o exílio na Babilônia os judeus exilados receberam uma influência da cultura local, incluindo a língua aramaica, perceptível nos livros de Daniel e Esdras[7]. Por outro lado, os fiéis se enrijeceram para não serem contaminados pelo paganismo local, preservando tanto a Escritura quanto a prática dela.
Posteriormente, o evangelho de João foi escrito num período de heresias precursoras do gnosticismo[8], escrito por volta de 80-85 d.C., O evangelho de João contém marcas judaico-cristãs de um autor que cita o Antigo Testamento a partir dos ensinamentos de Cristo, compreendendo o verdadeiro sentido dos textos que apontam para Jesus. João foi criado, provavelmente, em Cafarnaum, norte do Mar da Galiléia (chamado também de Genesaré ou Lago Tiberíades), onde fora chamado por Jesus[9]. Encontramos ainda, certo conhecimento da cultura helênica encontrada na língua grega utilizada para registrar o evangelho, e, também, seu combate contra pré-gnósticos que perturbavam a igreja de Jesus.[10]
O que une textos tão distantes em língua, tempo, lugar e até cultura é sua característica divina e seu mitte literário-temático. Portanto, entendendo que os textos fazem parte de uma unidade, analisaremos no presente artigo, os termos basár (carne) e ruáh (Espírito), encontrados em Ezequiel 36.26, em paralelo aos termos sárks (carne) e pnêuma (Espírito), presentes em João 3.6, a fim de identificarmos seus reais significados locais, para uma melhor aplicação para a vida presente da igreja.

OS TERMOS EM EZEQUIEL 36.26
Há uma presença marcante do termo ruáh no livro do profeta Ezequiel. Das 389 vezes em que aparece o termo no Antigo Testamento[11], 52 vezes ocorre no livro de Ezequiel, representando 13% do total. As 52 ocorrências do termo estão espalhadas pelo livro (1:4, 12, 20f; 2:2; 3:12, 14, 24; 5:2, 10, 12; 8:3; 10:17; 11:1, 5, 19, 24; 12:14; 13:3, 11, 13; 17:10, 21; 18:31; 19:12; 20:32; 21:12; 27:26; 36:26; 37:1, 5, 8, 14; 39:29; 42:16; 43:5), contudo os capítulos 36 e 37 concentram 20% delas. Em Ezequiel 36, a verdadeira aliança entre Deus e o Seu povo só é praticável por meio do ruáh que é o possibilitador da comunhão entre o homem e Deus, o agente responsável pela vida (Ez.37.6,8-10,14; Sl.146.4), regeneração do ser humano (Ez.36.27) e o autor das visões do profeta do Senhor[12].
O termo basár ocorre menos vezes no Antigo Testamento, especialmente em Ezequiel. O termo ocorre 22 vezes no livro contabilizando 8% de um total de 273 vezes em que aparece no Antigo Testamento[13]. Sua primeira ocorrência diz respeito ao material da constituição humana: carne (Gn.2.21). Após a queda, o termo ganha ambivalência, pois a carne, material humano, está contaminada com o pecado (Gn.6.3).
Nos dias do profeta Ezequiel, Deus foi glorificado entre as nações por meio do juízo merecido[14], trazido a todos os povos e principalmente sobre Jerusalém[15]. Agora, o Senhor dos Exércitos será outra vez glorificado por meio de uma tremenda salvação, pois de ossos secos, Deus formará um povo forte e fiel com lêv basár e ruáh chadásh [coração de carne e espírito novo] (Ez.37.1-14; 36.25-27). Quanto maior fosse a ruína espiritual do povo, maior seria a glória tributado ao NOME DO SENHOR quando restaurados (Ez.20.9,14,22; 36.21,22,23,32; 39.25; 43.7).
A ação que parecia ser unicamente externa e ritualística na consciência cauterizada dos judeus, aprofunda-se para o interior do povo em seu âmbito nacional, numa macro transformação; e, também, se dirige para a micro criação, o homem, onde o problema estava presente no interior de cada indivíduo. Para que o problema fosse solucionado definitivamente, era preciso mais do que uma atitude externa, era necessário mudar a razão primária de toda a rebeldia do povo, o coração. Somente Deus poderia realizar toda essa obra regenerativa no interior da nação e indivíduos. É diante deste contexto de necessidade sócio-espiritual do povo que compreenderemos os termos basár e ruáh.
No capítulo 37, Deus coloca Ezequiel diante de um vale de ossos secos. O povo de Deus estava sendo comparado àquele amontoado de ossos sem vida, secos, vazios, informes, estáticos e inúteis. O termo étsem (osso) se refere à parte do corpo humano que se uni ao basár (carne) para formar o corpo inteiro. Étsem necessita de basár reciprocamente de forma que somente os dois juntos formam o corpo completo. Deus pergunta a Ezequiel (Ez.37.3) se os ossos podem ter vida outra vez. Após Ezequiel profetizar, havia corpos compostos de ossos e carnes, mas estavam sem vida. Desta forma, étsem e basár se completam e representam partes sem vida do corpo humano. Em nenhuma dessas partes se encontra a vida que Deus requer do homem para este tenha comunhão com seu Criador.
Voltamos nossos olhos para Ezequiel 36.26 e encontramos a caricatura de vidas secas, mortas, como corpos expostos em terra árida. À semelhança da profecia sobre o vale de ossos secos, Deus dará carne nova para aquelas vidas, representada aqui por lêv chadásh e lêv basár (coração novo e coração de carne). Este novo coração de carne, não mais de pedra, já apresenta a restauração parcial do povo, mas ainda lhes falta vida. Nem em étsem nem em basár há vida, apenas matéria formada, organizada, completa. Por isso, Deus sopraria o ruáh responsável por dar real vida tanto física e externa, quanto espiritual e interna (Ez.36.27), possibilitando a restauração da nação e do indivíduo, capacitando-o para observar e guardar a Lei, a fim de que o povo de Deus não fosse mais castigado com o juízo divino que estava sofrendo no exílio. Ruáh representa uma vida plena, completa concedida por Deus numa ligação intima entre o Criador e sua criatura feita à sua imagem e semelhança. Deus restauraria Israel tanto socialmente quanto moral e espiritualmente, pondo-lhe carne nos ossos e soprando-lhes o fôlego de vida plena, física e espiritual.

OS TERMOS EM JOÃO 3.6
Em diálogo com um dos fariseus chamado Nicodemos (homem temente a Deus e interessado nas Palavras de Jesus), Cristo faz um paralelo entre carne “sárks” e espírito “pnêuma” (João 3.6). Isaac Edward Salkinson e Christian David Ginsburg, na tradução do Novo Testamento Grego para o Hebraico, traduzem os termos acima por basár e ruáh, correlatos hebraicos que revelam a fragilidade humana e o sopro vivificador de Deus, respectivamente. O termo basár, conforme H. Walter Wolff, nunca é atribuído a Deus no Antigo Testamento[16], sendo atribuído somente a animais ou ao homem designando a matéria, carne ou corpo, em sua estrutura fraca e frágil. No entanto, ruáh refere-se mais a Deus[17] ou apresenta a vida humana em sua força vital que vem do próprio Criador (Jó.34.14).
Em João, ambos os termos são referidos ao homem como partes necessárias à vida do povo de Deus. Aqueles que são apenas carne, corpo, sárks, carecem do espírito, pois nasceram apenas em matéria; e os que possuem o pnêuma de Deus não estão isentos da carne, o corpo, mesmo sendo espirituais.
Jesus compreende o ser humano de forma integral, conforme é possível se ver, também, na citação dos dois grandes mandamentos (Mt.22.36-40), em seu ministério (Jo.6.1-11), em sua vida (Mc.2.16), em seus ensinos gerais (Lc.12.22-31). Jesus não compreende a vida de forma dual e sim unitária onde a vida é indivisível servindo em um único propósito de glorificar a Deus (Lc.10.27). Por isso, seu ministério trouxe restauração integral às pessoas (Mt.11.5) e sua escatologia, revelada ao apóstolo João, aponta para uma criação completamente restaurada por ocasião de sua vinda (Ap.21-22), pois tudo que há, fora criado para o louvor do Senhor (Mt.26.29).
Com os filósofos gregos, encontramos um dualismo predominante. Os termos sárks e pnêuma se referem à matéria inferior e má (mundo dos homens) e à dimensão perfeita e superior (mundo dos deuses), respectivamente. Essa concepção dualista está presente na cultura, filosofia e religiões greco-romanas e influenciou diversos estudiosos da Escritura Sagrada no decorrer dos séculos da era cristã. Tal concepção não corresponde ao conceito bíblico sobre a natureza do homem e o Ser de Cristo, Filho de Deus, pois anula a integridade do ser humano criado à imagem de Deus. Pela graça e providência divinas, o contexto cultural-filosófico do primeiro século I não contaminou a teologia do Novo Testamento. Por essa razão, os autores neotestamentários combateram veementemente doutrinas protognósticas que entravam nas igrejas por meio de falsos profetas itinerantes[18].
Jesus mostra para Nicodemos que mesmo estando ele vivo em sua carne, não usufruiria do Reino Messiânico até que recebesse o sopro do Espírito, a fim de possuir vida espiritual. Israel nos dias de Jesus não estava muito diferente, em seu estado espiritual, da realidade de Israel nos dias de Ezequiel. O povo carecia do sopro do pnêuma de Deus, para que obtivesse uma nova vida capacitada para guardar os mandamentos e estatutos em seu novo coração (Ez.36.27//Gl.5.22,23). Sem perceber, Israel vivia uma religiosidade precaria, confiando em seu sistema ritualístico, em seu templo, em suas tradições.
João registra as Palavras de Jesus na língua grega (mesmo que Jesus tenha falado, provavelmente, em aramaico[19]), dando aos termos sárks e pnêuma uma concepção arraigada na Escritura Sagrado do Antigo Testamento. Os termos são desnudos da concepção dualista da filosofia grega que muito influenciou os falsos profetas no meio cristão, durante os primeiros séculos da história da igreja cristã. Uma concepção judaica é impressa nos termo, de forma que a etimologia dos mesmos não diz respeito a seus reais significados dentro da literatura joanina. Os termos não se opõem entre si, mas se complementam para formar um todo de vida ideal concedida por Deus ao homem.
Jesus diz a Nicodemos que este precisava ter mais que uma religiosidade, que nem mesmo o permitia compreender a Palavra de Deus em seu real significado. Ele precisava receber, na simplicidade em que o Reino de Deus veio ao mundo, o novo nascimento, o nascimento espiritual, a fim de ser, realmente, nova criatura, e desfrutar do Reino Messiânico trazido por Jesus, o Cristo, de forma plena e integral.

Portanto, quando comparamos os termos presentes nas duas referências, vemos que carne não significa algo ruim, ou mau, mas a vida humana, mesmo em sua fragilidade e incapacidade de viver para Deus. Aquele que vem da carne é apenas carne, e mesmo que esteja vivo falta-lhe o elemento necessário para identificá-lo com a dimensão espiritual e possibilitar um relacionamento com Deus. Enquanto o indivíduo não nascer, também, do Espírito estará incompleto e carente da presença relacional de Deus (Rm.3.23). Os termos basár e ruáh se completam para formar uma vida plena capaz de desfrutar das duas dimensões, física e espiritual, de forma abundante. De forma semelhante, sárks e pnêuma aparecem para apresentar a necessidade da matéria ser completada pelo sopro do Senhor, o Espírito Santo, a fim de ter real vida perante Deus. A vida humana só encontra sua completude na união perfeita entre ambos os termos através do nascer do alto, o novo nascimento, que dá início à vida eterna do homem criado para Deus.
A correta compreensão dos termos abordados acima, conforme as Escrituras Sagradas, deve produzir reflexão sobre a prática do que é realmente bom e o que é verdadeiramente ruim. Diversos elementos sociais e naturais considerados pecaminosos devem ser revistos, considerando que a vida humana não é má, nem as relações sociais são pecaminosas. Brincar, praticar esportes, comer, beber etc. são exemplos de práticas cotidianas sadias que devem ser consideradas à luz do conceito bíblico de CARNE e ESPÍRITO. Enquanto isso, muitos reais pecados têm sido tolerados, e até incentivados nos meios cristãos, pela aparência de espiritualidade que lhes é dada: a competitividade no uso de dons e talentos, por exemplo. O cristão é um ser humano completo, pois tanto desfruta da beleza da vida natural, criada por Deus, quanto usufrui de sua dimensão espiritual, se relacionando holisticamente com Deus, com os irmãos em Cristo Jesus e com o restante do cosmo físico-celestial. São esses que herdaram a vida eterna e que formam o povo que viverá para sempre em um novo céu e nova terra.




[1] BAGNO, Marcos. Preconceito Linguístico. São Paulo: Edições Loyola, 2000, p.10.
[2] SAUSSURE, Ferdinand. Curso de Lingüística Geral. São Paulo: Editora Cultrix, 1910, p.119
[3] Ibid, p.81.
[4] Ibid, p.112-116.
[5] LASOR, William S.; HUBBARD, David A.; BUSH, Frederic W. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Editora Vida Nova, 1999, p.386-389.
[6] BERGANT, Dianne; KARRIS, Robert J. Comentário Bíblico. São Paulo: Editora Loyola, 2001 V. 2, p.67,68.
[7] JÚNIOR, Isaías Lobão Pereira. A Linguagem do Antigo Testamento.
[8] CARSON, D. A.; MOO, Douglas J.; MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Editora Vida Nova, 1997, p.191.
[9] AHARONI, Yohanan; AVI-YONAH, Michael; RAINEY, Anson F.; SAFRAI, Ze’en, Atlas Bíblico. Rio de Janeiro: CPAD, 1999, p.170,172
[10] CARSON, 1997, p.191
[11] WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2007, p.67
[12] WILSON, Robert R. Profecia e Sociedade no Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 256
[13] Ibid, p.57
[14] Ibid, p. 257
[15] BERGANT, 2001, p.82,83
[16] WOLFF, 2007, p.57
[17] Ibid, p.67
[18] HALE, Braodus David. Introdução ao Estudo do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2001, p.413-415
[19] TENNEY, Merrill C. O Novo Testamento: Sua origem e análise. São Paulo: Vida Nova, 1998, p.83,84

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