“O que é nascido da carne é carne; e o que é
nascido do Espírito é espírito.” (Jo.3.6)
Brasil é de fato um país de todos. Encontramos em nosso país, pessoas de
diversas culturas, pois recebemos, praticamente, gente do mundo todo, ajudando a formar um país com ampla diversidade cultural. Mas, por mais bonito que seja ver a hospitalidade de
nosso povo, o brasileiro herdou algumas características negativas por meio
dessa miscigenação. A falta de identidade e patriotismo são duas dessas
características negativas, observadas na conduta do brasileiro no dia a dia, no
trânsito, no uso dos recursos públicos, na política, no trabalho etc. Contudo,
outra característica bastante negativa tem afetado de perto os
cristãos em nosso país. Muitas igrejas já se dividiram por razões tolas, muitos
cristãos brigam por causa dessa característica: “o misticismo brasileiro”.
Boa parte dos cristãos brasileiros possuem conceitos místicos e supersticiosos
sobre diversos assuntos: bebida, comida, roupas, dinheiro, trabalho, estudo etc. Dentre esses assuntos, devem ser incluídos os conceitos de “carne” e “espírito”,
por meio dos quais os cristãos expurgam da igreja muitas práticas comuns e
adotam outras especificamente evangelicais. Os termos são ricos em significados, e, por isso, devem ser analisados cuidadosamente, caso queiramos compreender o
ensino bíblico sobre o assunto. Geralmente, o termo “carne” possui uma
conotação pejorativa, como sinônimo de “maligno”, tornando-se, assim, antônimo
do termo “espírito” atribuído ao que é celestial e bom. Contudo, será que são
esses seus significados na Palavra de Deus?
“A língua é um rio caudaloso, longo
e largo, que nunca se detém em seu curso”[1]. Ela se
move fluentemente junto às gerações e toma as formas mais variadas de acordo
com o tempo-cultura. A realidade da língua existe através de significante e
significado[2]
sendo arbitrários, ou seja, não possuindo uma relação lógica[3]. Ambos,
significado e significante, evoluem tanto sincronicamente como diacronicamente[4] o que
significa que se deve ter muito cuidado nas análises etimológicas das palavras
para não incorrer no erro de atribuir valores há muito tempo substituídos sem
uma relação necessariamente lógica em sua evolução diacrônica. A melhor forma
de se atribuir significado ao significante é compreendendo-o semanticamente em
tempo e espaço contextual, entendendo, também, a história evolutiva natural do
termo no meio sócio-cultural.
O livro de Ezequiel foi escrito dentro do exílio babilônico[5], por
volta de 593-573 a .C.
Em Ezequiel temos uma literatura profética recheada de visões sobre Deus e
Israel[6]. Durante
o exílio na Babilônia os judeus exilados receberam uma influência da cultura
local, incluindo a língua aramaica, perceptível nos livros de Daniel e Esdras[7]. Por
outro lado, os fiéis se enrijeceram para não serem contaminados pelo paganismo
local, preservando tanto a Escritura quanto a prática dela.
Posteriormente, o evangelho de João foi escrito num período de heresias
precursoras do gnosticismo[8], escrito
por volta de 80-85 d.C., O evangelho de João contém marcas judaico-cristãs de
um autor que cita o Antigo Testamento a partir dos ensinamentos de Cristo,
compreendendo o verdadeiro sentido dos textos que apontam para Jesus. João foi
criado, provavelmente, em Cafarnaum, norte do Mar da Galiléia (chamado também
de Genesaré ou Lago Tiberíades), onde fora chamado por Jesus[9].
Encontramos ainda, certo conhecimento da cultura helênica encontrada na língua
grega utilizada para registrar o evangelho, e, também, seu combate contra
pré-gnósticos que perturbavam a igreja de Jesus.[10]
O que une textos tão distantes em língua, tempo, lugar e até cultura é
sua característica divina e seu mitte
literário-temático. Portanto, entendendo que os textos fazem parte de uma
unidade, analisaremos no presente artigo, os termos basár (carne) e ruáh
(Espírito), encontrados em Ezequiel 36.26, em paralelo aos termos sárks (carne) e pnêuma (Espírito), presentes em João 3.6, a fim de identificarmos seus reais significados locais, para uma melhor aplicação para a vida presente
da igreja.
OS TERMOS EM EZEQUIEL 36.26
Há uma presença marcante do termo ruáh
no livro do profeta Ezequiel. Das 389 vezes em que aparece o termo no Antigo
Testamento[11],
52 vezes ocorre no livro de Ezequiel, representando 13% do total. As 52
ocorrências do termo estão espalhadas pelo livro (1:4, 12, 20f; 2:2; 3:12, 14,
24; 5:2, 10, 12; 8:3; 10:17; 11:1, 5, 19, 24; 12:14; 13:3, 11, 13; 17:10, 21;
18:31; 19:12; 20:32; 21:12; 27:26; 36:26; 37:1, 5, 8, 14; 39:29; 42:16; 43:5),
contudo os capítulos 36 e 37 concentram 20% delas. Em Ezequiel 36, a verdadeira
aliança entre Deus e o Seu povo só é praticável por meio do ruáh que é o possibilitador da comunhão
entre o homem e Deus, o agente responsável pela vida (Ez.37.6,8-10,14; Sl.146.4),
regeneração do ser humano (Ez.36.27) e o autor das visões do profeta do Senhor[12].
O termo basár ocorre menos vezes no Antigo Testamento, especialmente em Ezequiel. O termo
ocorre 22 vezes no livro contabilizando 8% de um total de 273 vezes em que
aparece no Antigo Testamento[13]. Sua
primeira ocorrência diz respeito ao material da constituição humana: carne
(Gn.2.21). Após a queda, o termo ganha ambivalência, pois a carne, material
humano, está contaminada com o pecado (Gn.6.3).
Nos dias do profeta Ezequiel, Deus foi glorificado entre as nações por
meio do juízo merecido[14],
trazido a todos os povos e principalmente sobre Jerusalém[15]. Agora,
o Senhor dos Exércitos será outra vez glorificado por meio de uma tremenda
salvação, pois de ossos secos, Deus formará um povo forte e fiel com lêv basár e ruáh chadásh [coração de carne e espírito novo] (Ez.37.1-14;
36.25-27). Quanto maior fosse a ruína espiritual do povo, maior seria a glória
tributado ao NOME DO SENHOR quando restaurados (Ez.20.9,14,22; 36.21,22,23,32;
39.25; 43.7).
A ação que parecia ser unicamente externa e ritualística na consciência
cauterizada dos judeus, aprofunda-se para o interior do povo em seu âmbito
nacional, numa macro transformação; e, também, se dirige para a micro criação,
o homem, onde o problema estava presente no interior de cada indivíduo. Para
que o problema fosse solucionado definitivamente, era preciso mais do que uma atitude
externa, era necessário mudar a razão primária de toda a rebeldia do povo, o
coração. Somente Deus poderia realizar toda essa obra regenerativa no interior
da nação e indivíduos. É diante deste contexto de necessidade sócio-espiritual do
povo que compreenderemos os termos basár
e ruáh.
No capítulo 37, Deus coloca Ezequiel diante de um vale de ossos secos. O
povo de Deus estava sendo comparado àquele amontoado de ossos sem vida, secos,
vazios, informes, estáticos e inúteis. O termo étsem (osso) se refere à
parte do corpo humano que se uni ao basár
(carne) para formar o corpo inteiro. Étsem
necessita de basár reciprocamente de
forma que somente os dois juntos formam o corpo completo. Deus pergunta a
Ezequiel (Ez.37.3) se os ossos podem ter vida outra vez. Após Ezequiel
profetizar, havia corpos compostos de ossos e carnes, mas estavam sem vida.
Desta forma, étsem e basár se completam e representam partes
sem vida do corpo humano. Em nenhuma dessas partes se encontra a vida que Deus
requer do homem para este tenha comunhão com seu Criador.
Voltamos nossos olhos para Ezequiel 36.26 e encontramos a caricatura de
vidas secas, mortas, como corpos expostos em terra árida. À semelhança da
profecia sobre o vale de ossos secos, Deus dará carne nova para aquelas vidas,
representada aqui por lêv chadásh e lêv basár (coração novo e coração de
carne). Este novo coração de carne, não mais de pedra, já apresenta a
restauração parcial do povo, mas ainda lhes falta vida. Nem em étsem nem em basár há vida, apenas matéria formada, organizada, completa. Por isso, Deus sopraria o ruáh responsável por
dar real vida tanto física e externa, quanto espiritual e interna (Ez.36.27),
possibilitando a restauração da nação e do indivíduo, capacitando-o para
observar e guardar a Lei, a fim de que o povo de Deus não fosse mais castigado
com o juízo divino que estava sofrendo no exílio. Ruáh representa uma vida plena, completa concedida por Deus numa
ligação intima entre o Criador e sua criatura feita à sua imagem e semelhança.
Deus restauraria Israel tanto socialmente quanto moral e espiritualmente, pondo-lhe
carne nos ossos e soprando-lhes o fôlego de vida plena, física e espiritual.
OS TERMOS EM JOÃO 3.6
Em diálogo com um dos fariseus chamado Nicodemos (homem temente a Deus e
interessado nas Palavras de Jesus), Cristo faz um paralelo entre carne “sárks” e espírito “pnêuma” (João 3.6). Isaac Edward Salkinson e Christian David
Ginsburg, na tradução do Novo Testamento Grego para o Hebraico, traduzem os
termos acima por basár e ruáh, correlatos hebraicos que revelam a
fragilidade humana e o sopro vivificador de Deus, respectivamente. O termo basár, conforme H. Walter Wolff, nunca é
atribuído a Deus no Antigo Testamento[16], sendo
atribuído somente a animais ou ao homem designando a matéria, carne ou corpo,
em sua estrutura fraca e frágil. No entanto, ruáh refere-se mais a Deus[17] ou
apresenta a vida humana em sua força vital que vem do próprio Criador
(Jó.34.14).
Em João, ambos os termos são referidos ao homem como partes necessárias à
vida do povo de Deus. Aqueles que são apenas carne, corpo, sárks, carecem do
espírito, pois nasceram apenas em matéria; e os que possuem o pnêuma de Deus não estão isentos da
carne, o corpo, mesmo sendo espirituais.
Jesus compreende o ser humano de forma integral, conforme é possível se
ver, também, na citação dos dois grandes mandamentos (Mt.22.36-40), em seu
ministério (Jo.6.1-11), em sua vida (Mc.2.16), em seus ensinos gerais (Lc.12.22-31).
Jesus não compreende a vida de forma dual e sim unitária onde a vida é
indivisível servindo em um único propósito de glorificar a Deus (Lc.10.27). Por
isso, seu ministério trouxe restauração integral às pessoas (Mt.11.5) e sua
escatologia, revelada ao apóstolo João, aponta para uma criação completamente
restaurada por ocasião de sua vinda (Ap.21-22), pois tudo que há, fora criado
para o louvor do Senhor (Mt.26.29).
Com os filósofos gregos, encontramos um dualismo predominante.
Os termos sárks e pnêuma se referem à matéria inferior e
má (mundo dos homens) e à dimensão perfeita e superior (mundo dos deuses),
respectivamente. Essa concepção dualista está presente na cultura, filosofia e
religiões greco-romanas e influenciou diversos estudiosos da Escritura Sagrada
no decorrer dos séculos da era cristã. Tal concepção não corresponde ao conceito bíblico sobre a natureza do homem e o Ser de Cristo, Filho de Deus, pois anula a
integridade do ser humano criado à imagem de Deus. Pela graça e providência
divinas, o contexto cultural-filosófico do primeiro século I não contaminou a
teologia do Novo Testamento. Por essa razão, os autores neotestamentários
combateram veementemente doutrinas protognósticas que entravam nas igrejas por
meio de falsos profetas itinerantes[18].
Jesus mostra para Nicodemos que mesmo estando ele vivo em sua carne, não
usufruiria do Reino Messiânico até que recebesse o sopro do Espírito, a fim de
possuir vida espiritual. Israel nos dias de Jesus não estava muito diferente,
em seu estado espiritual, da realidade de Israel nos dias de Ezequiel. O povo
carecia do sopro do pnêuma de Deus, para
que obtivesse uma nova vida capacitada para guardar os mandamentos e estatutos
em seu novo coração (Ez.36.27//Gl.5.22,23). Sem perceber, Israel vivia uma
religiosidade precaria, confiando em seu sistema ritualístico, em seu templo,
em suas tradições.
João registra as Palavras de Jesus na língua grega (mesmo que Jesus tenha
falado, provavelmente, em aramaico[19]), dando
aos termos sárks e pnêuma uma concepção arraigada na
Escritura Sagrado do Antigo Testamento. Os termos são desnudos da concepção
dualista da filosofia grega que muito influenciou os falsos profetas no meio
cristão, durante os primeiros séculos da história da igreja cristã. Uma
concepção judaica é impressa nos termo, de forma que a etimologia dos mesmos
não diz respeito a seus reais significados dentro da literatura joanina. Os termos não se opõem
entre si, mas se complementam para formar um todo de vida ideal concedida por Deus ao
homem.
Jesus diz a Nicodemos que este precisava ter mais que uma religiosidade, que
nem mesmo o permitia compreender a Palavra de Deus em seu real significado. Ele
precisava receber, na simplicidade em que o Reino de Deus veio ao mundo, o novo
nascimento, o nascimento espiritual, a fim de ser, realmente, nova criatura, e
desfrutar do Reino Messiânico trazido por Jesus, o Cristo, de forma plena e
integral.
Portanto, quando comparamos os termos presentes nas duas referências,
vemos que carne não significa algo ruim, ou mau, mas a vida humana, mesmo em
sua fragilidade e incapacidade de viver para Deus. Aquele que vem da carne é
apenas carne, e mesmo que esteja vivo falta-lhe o elemento necessário para
identificá-lo com a dimensão espiritual e possibilitar um relacionamento com
Deus. Enquanto o indivíduo não nascer, também, do Espírito estará incompleto e
carente da presença relacional de Deus (Rm.3.23). Os termos basár e ruáh se completam
para formar uma vida plena capaz de desfrutar das duas dimensões, física e
espiritual, de forma abundante. De forma semelhante, sárks e pnêuma aparecem
para apresentar a necessidade da matéria ser completada pelo sopro do Senhor, o
Espírito Santo, a fim de ter real vida perante Deus. A vida humana só encontra
sua completude na união perfeita entre ambos os termos através do nascer do
alto, o novo nascimento, que dá início à vida eterna do homem criado para Deus.
A correta compreensão dos termos abordados acima, conforme as Escrituras
Sagradas, deve produzir reflexão sobre a prática do que é realmente bom e o que
é verdadeiramente ruim. Diversos elementos sociais e naturais considerados pecaminosos
devem ser revistos, considerando que a vida humana não é má, nem as relações
sociais são pecaminosas. Brincar, praticar esportes, comer, beber etc. são
exemplos de práticas cotidianas sadias que devem ser consideradas à luz do
conceito bíblico de CARNE e ESPÍRITO. Enquanto isso, muitos reais pecados têm
sido tolerados, e até incentivados nos meios cristãos, pela aparência de
espiritualidade que lhes é dada: a competitividade no uso de dons e talentos,
por exemplo. O cristão é um ser humano completo, pois tanto desfruta da beleza
da vida natural, criada por Deus, quanto usufrui de sua dimensão espiritual, se
relacionando holisticamente com Deus, com os irmãos em Cristo Jesus e com o
restante do cosmo físico-celestial. São esses que herdaram a vida eterna e que
formam o povo que viverá para sempre em um novo céu e nova terra.
[1]
BAGNO, Marcos. Preconceito Linguístico.
São Paulo: Edições Loyola, 2000, p.10.
[2]
SAUSSURE, Ferdinand. Curso de
Lingüística Geral. São Paulo: Editora Cultrix, 1910, p.119
[3] Ibid, p.81.
[4] Ibid, p.112-116.
[5]
LASOR, William S.; HUBBARD, David A.; BUSH, Frederic W. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Editora Vida Nova,
1999, p.386-389.
[6]
BERGANT, Dianne; KARRIS, Robert J. Comentário
Bíblico. São Paulo: Editora Loyola, 2001 V. 2, p.67,68.
[7]
JÚNIOR, Isaías Lobão Pereira. A
Linguagem do Antigo Testamento.
[8] CARSON, D. A.; MOO, Douglas J.;
MORRIS, Leon. Introdução ao Novo
Testamento. São Paulo: Editora Vida Nova, 1997, p.191.
[9] AHARONI, Yohanan; AVI-YONAH,
Michael; RAINEY, Anson F.; SAFRAI, Ze’en, Atlas
Bíblico. Rio de Janeiro: CPAD, 1999, p.170,172
[10] CARSON, 1997, p.191
[12]
WILSON, Robert R. Profecia e Sociedade
no Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 256
[13]
Ibid, p.57
[14]
Ibid, p. 257
[15] BERGANT, 2001, p.82,83
[16] WOLFF, 2007, p.57
[17]
Ibid, p.67
[18]
HALE, Braodus David. Introdução ao
Estudo do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2001, p.413-415
[19]
TENNEY, Merrill C. O Novo Testamento:
Sua origem e análise. São Paulo: Vida Nova, 1998, p.83,84
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