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sexta-feira, 10 de abril de 2020

Páscoa: distinção entre história e celebração

Quando, pois, Jesus tomou o vinagre, disse: Está consumado! E, inclinando a cabeça, rendeu o espírito” (Jo.19.30)

As ruas estão praticamente desertas, hoje. Quase tudo fechado. Contudo, diferente dos demais dias desse mês, a razão não é a pandemia do Coronavírus. Dessa vez, as famílias estão em casa porque em uma sexta-feira que antecede a Páscoa judaica, o Cordeiro de Deus, por meio do qual o universo fora criado (Jo.1.1-5; Hb.1.1-4), foi entregue para morrer em uma cruz, assumindo a culpa dos pecadores, a fim de dar a vida eterna a “todo o que nele crê” (Jo.3.16,36). Um dia de tão forte significado e emoções que o universo inteiro sentiu a morte do Filho de Deus, como nos descreve o evangelho de Mateus, o que melhor detalha o evento da morte de Cristo:

45 Desde a hora sexta até à hora nona, houve trevas sobre toda a terra […]50 E Jesus, clamando outra vez com grande voz, entregou o espírito.  51 Eis que o véu do santuário se rasgou em duas partes de alto a baixo; tremeu a terra, fenderam-se as rochas;  52 abriram-se os sepulcros, e muitos corpos de santos, que dormiam, ressuscitaram;  53 e, saindo dos sepulcros depois da ressurreição de Jesus, entraram na cidade santa e apareceram a muitos. (Mt.27.45,50-53)

Mas, qual seria a verdadeira natureza desse dia para o cristianismo, à luz da Escritura Sagrada? Para respondermos essa pergunta, precisamos distinguir entre a natureza histórica de uma data e a natureza ritual de um dia religioso. Essa distinção é fundamental, tendo em vista que a cristandade tem vivido uma crise de identidade tão grande que há, em seu meio, desde grupos que se assemelham ao judaísmo farisaico dos dias de Jesus até aqueles que vivem um completo liberalismo teórico e prático. Então, os cristãos interessados em um cristianismo puro e simples (sem o peso de tradições forjadas pela mente humana ao mesmo tempo em que seja bem fundamentado na Verdade e piedade do Evangelho) precisam saber como agir em dias como esses.

Diferente de muitas outras religiões, o cristianismo, como sequência natural do judaísmo, é uma religião fundamentalmente histórica. A Palavra de Deus não é um manual de como viver bem, apenas, mas o registro histórico de todos os eventos que fazem parte da história redentora. Sem a historicidade dos eventos redentores, o cristianismo não passaria de mais uma religião filosófica (comum entre os orientais) ou tipo “paz e amor” (como os hippies). Seus eventos históricos não devem ser compreendidos como metafóricos, alegóricos, simbólicos ou figurados. Essa é uma das razões de se afirmar que a criação do mundo se deu em seis dias literais, tendo em vista que a criação do universo é o primeiro evento histórico da história redentora. Substituir a literalidade dos seis dias por tempos simbólicos torna a criação em um evento indefinido sem valor histórico para a história redentora, abrindo um perigosíssimo precedente para a anulação da historicidade de todos os demais eventos: queda, dilúvio, chamado de Abraão etc.

Por seu caráter histórico, o cristianismo está repleto de datas importantes que marcaram a trajetória da história redentora desde a criação do universo (Gênesis) até a revelação do ultimo livro da Escritura Sagrada: Apocalipse. Assim como a história de uma pessoa é parte da formação de seu caráter e competências, sendo importante tanto para ela quanto para as pessoas a seu redor, também todos os eventos históricos da história redentora são fundamentais para a formação dos cristãos, pois formam a identidade do cristianismo. Portanto, todo cristão precisa conhecer como Deus revelou Seu SER e Suas obras no curso da história humana, como nos diz o autor de Hebreus:

Ora, a fé é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não veem.  2 Pois, pela fé, os antigos obtiveram bom testemunho.  3 Pela fé, entendemos que foi o universo formado pela palavra de Deus, de maneira que o visível veio a existir das coisas que não aparecem. […] 6 De fato, sem fé é impossível agradar a Deus, porquanto é necessário que aquele que se aproxima de Deus creia que ele existe e que se torna galardoador dos que o buscam. (Hb.11.1-3,6)

A fé de cada geração de homens e mulheres de Deus estava relacionada a algum evento histórico. Adão e Eva criam no Deus Criador que fez o universo em seis dias e prometeu o nascimento do redentor que pisaria a cabeça da serpente (Gn.1-2; 3.15). Essa promessa acompanhou o povo de Deus através das gerações. Noé, também, cria no Deus Criador de tudo o que existe e acreditou tanto na Palavra de juízo quanto na promessa de salvação através da arca. Seus filhos foram ensinados a crer no Deus Criador, Provedor, Juiz e Salvador. Mais à frente, os personagens que Deus chama (Abraão, Isaque e Jacó) são ensinados a crer tanto naquilo que já havia sido revelado sobre o SER de Deus e suas obras quanto naquilo que o Senhor prometia para o futuro. Em ambos os casos, a fé dos personagens estava depositada sobre ações de Deus na história (passado, presente e futuro). Por isso, Moisés registrou a Palavra de Deus e os filhos de Israel foram ensinados a crer no Deus que se revelou por atos históricos redentores, como o êxodo.

Tendo em vista a grande importância da história para a fé cristã, as famílias precisam conhecer as “datas” importantes da história da redenção. Cada uma delas nos ensina algo sobre o SER de Deus e suas obras. Alguns desses eventos não tem um dia certo, mas todos eles ocorreram no tempo e no espaço da história humana e possuem importante significado histórico:

1.  No princípio, Deus criou todas as coisas em seis dias e fez o homem e a mulher no sexto dia (Gn.1-2).
2.  O homem e a mulher desobedeceram a Deus quando estavam no paraíso e foram expulsos para viver em um mundo caído (Gn.3).
3.  Deus manifestou seu ódio ao pecado e seu justo juízo ao castigar os pecadores por meio do dilúvio, enquanto mostrava suas ternas misericórdias e graça salvando a família de Noé (Gn.6-9).
4.  Deus mostrou sua fidelidade ao plano redentor prometido a Adão e Eva chamando Abrão para ser o pai da descendência do Messias prometido, pelo qual as famílias dos povos seriam abençoadas (Gn.12-24).
5.  Deus revelou seu grande poder para destruir os inimigos de seu povo humilhando o Egito e seus deuses por meio das dez pragas (Ex.1-15) e engrandeceu sua misericórdia e sua graça libertando seu povo da escravidão egípcia (Ex.12).

É nesse ponto que chegamos à Páscoa judaica, uma data importantíssima para a história redentora e que deveria ser celebrada até a chegada do Verdadeiro Cordeiro Pascoal (Cristo Jesus), pois a celebração dessa data a tornaria primordial e inesquecível dentro do judaísmo (Ex.12.14). Devemos observar, ainda, que Deus não ordenou a celebração dos eventos históricos anteriores. Ou seja, não há um dia para se celebrar a criação de todas as coisas; outro dia para se celebrar a promessa de salvação para Adão e Eva; não há uma data para se celebrar a redenção de Noé e sua família por ocasião do dilúvio; também não existe uma data para se celebrar o chamado de Deus a Abrão. Todos esses eventos são importantíssimos para a história redentora, mas não há uma ordenança, com o fim de que o povo de Deus os celebre no decurso dos anos, assim como fora ordenada, ao povo de Israel, a celebração da Páscoa, o livramento da morte por meio do sacrifício de cordeiros substitutivos. É por causa, principalmente, da ordenança da celebração desse evento que Paulo escreve as seguintes palavras:

23 Mas, antes que viesse a fé, estávamos sob a tutela da lei e nela encerrados, para essa fé que, de futuro, haveria de revelar-se.  24 De maneira que a lei nos serviu de aio para nos conduzir a Cristo, a fim de que fôssemos justificados por fé.  25 Mas, tendo vindo a fé, já não permanecemos subordinados ao aio.  26 Pois todos vós sois filhos de Deus mediante a fé em Cristo Jesus;  27 porque todos quantos fostes batizados em Cristo de Cristo vos revestistes.  28 Dessarte, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus.  29 E, se sois de Cristo, também sois descendentes de Abraão e herdeiros segundo a promessa. [...] 3 Assim, também nós, quando éramos menores, estávamos servilmente sujeitos aos rudimentos do mundo;  4 vindo, porém, a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei [...] 9 mas agora que conheceis a Deus ou, antes, sendo conhecidos por Deus, como estais voltando, outra vez, aos rudimentos fracos e pobres, aos quais, de novo, quereis ainda escravizar-vos?  10 Guardais dias, e meses, e tempos, e anos.  11 Receio de vós tenha eu trabalhado em vão para convosco. (Gl.3.23-29; 4.3-4, 9-11)

As celebrações ordenadas no Antigo Testamento (conferir texto sobre os ritos de Israel: https://voxscripturae.blogspot.com/2019/04/cristo-nossa-celebracao_17.html) tinham propósitos determinados e todos eles apontavam para a chegada do Filho de Deus, o Messias prometido desde a queda de Adão e Eva (Gn.3.15). Todo israelita era obrigado a celebrar as três festas instituídas por Deus, sob a pena de ser expulso do povo, caso desobedecesse. Não eram celebrações opcionais, mas ordenanças divinas:

Deuteronômio 16.16  Três vezes no ano, todo varão entre ti aparecerá perante o SENHOR, teu Deus, no lugar que escolher, na Festa dos Pães Asmos, e na Festa das Semanas, e na Festa dos Tabernáculos; porém não aparecerá de mãos vazias perante o SENHOR
Números 9.13  se um homem achar-se limpo, e não estiver de caminho, e deixar de celebrar a Páscoa, essa alma será eliminada do seu povo, porquanto não apresentou a oferta do SENHOR, a seu tempo; tal homem levará sobre si o seu pecado

Portanto, vimos até o momento que muitos são os eventos históricos importantíssimos, mas boa parte deles não é celebrado; nem é necessário que os celebremos. Todavia, alguns poucos eventos históricos que marcaram a vida de Israel foram ordenados com propósito bastante específico: lembrar da promessa redentora e seu futuro cumprimento (Encarnação do Filho de Deus, morte do Cordeiro de Deus e advento do Espírito Santo). Nesse ponto, já temos uma distinção entre eventos históricos importantes e datas religiosas celebradas. Todavia, ainda estamos tratando dentro de um contexto judaico, já que as três festas ordenadas no Antigo Testamento (Festa da Páscoa, Festa do Tabernáculo e Festa de Pentecostes) foram instituídas para a nação de Israel, exclusivamente.

O Messias prometido e lembrado em cada celebração já chegou. O que fazer, então? Como já dissemos, é sobre isso que Paulo está tratando em sua carta aos Gálatas. Conforme o texto de Gálatas, agora é preciso crer em Cristo tendo entendido que todos os ritos cumpriram seus papeis com a chegada do cumpridor (Cristo). Todas as celebrações judaicas caducaram, por isso não estamos mais “subordinados ao aio” (Gl.3.25). Por essa razão, o apóstolo questiona os gálatas em tom corretivo e duro: “como estais voltando, outra vez, aos rudimentos fracos e pobres, aos quais, de novo, quereis ainda escravizar-vos? Guardais dias, e meses, e tempos, e anos. Receio de vós tenha eu trabalhado em vão para convosco” (Gl.4.9-11). Os cristãos não deveriam viver de sombras, ritos de celebração que apontavam para o cumprimento da promessa redentora, pois o redentor já chegou e cumpriu cabalmente todas as profecias.

Isso significa que as datas importantes deixaram de ser importantes? Obviamente, NÃO! A criação do universo, o dilúvio, o chamado de Abrão, o êxodo de Israel, a promessa do sucessor de Davi, a construção do Templo, o cativeiro de Judá etc. são importantes eventos da história redentora nos quais Deus revelou seu SER e suas obras. Foi por essa jornada que Deus quis se revelar e cumprir a promessa de redenção. Todos os eventos importantes da história redentora devem ser conhecidos pelas famílias e transmitidos de pais para filhos, pois neles Deus revela seu amor, sua graça, seu perdão, sua justiça, seu poder, sua misericórdia, seu reino, sua glória, seu decreto, sua santidade etc. Nessa sexta-feira que precede a Páscoa judaica, os cristãos podem, e devem, ensinar a seus filhos a importância história do evento tanto tipológico (a libertação de Israel) quanto o final (a morte do Verdadeiro Cordeiro Pascoal). Desse modo, a fé dos filhos será depositada nos reais eventos redentores operados por Deus ao longo da história da redenção.

Ao apresentar os eventos históricos, os pais não apenas devem dizer o que aconteceu naquela data ou momento. Todos os eventos são adornados por uma ampla revelação sobre o SER de Deus e suas obras, de modo que os pais devem estar cientes do que Deus revelou sobre si mesmo e sobre sua obra redentora com aquele determinado evento que está sendo partilhado. Caso isso não aconteça, a família corre o sério risco de viver apenas uma religião tradicionalista, ou seja, que conhece as “datas importantes”, mas não consegue interpretá-las nem se mostra capaz de aplicar à própria vida tudo aquilo que Deus quis revelar naquele determinado momento da história redentora. Ou seja, Deus quer que o conheçamos, não apenas que decoremos aquilo que Ele fez ao longo da história. Por isso, após Jesus ter feito muitos milagres e pregado largamente sobre o Reino de Deus, voltou-se para os discípulos, a fim de questioná-los sobre o que aprenderam: “Indo Jesus para os lados de Cesaréia de Filipe, perguntou a seus discípulos: Quem diz o povo ser o Filho do Homem? E eles responderam: Uns dizem: João Batista; outros: Elias; e outros: Jeremias ou algum dos profetas. Mas vós, continuou ele, quem dizeis que eu sou?” (Mt.16.13-15).

Portanto, chame sua esposa e filhos e lhes ensine o que aconteceu na sexta-feira que antecede a Páscoa judaica. Fale sobre a morte do Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (Jo.1.29). Ensine-lhes ainda que este não é um dia santo ou sagrado e que não precisamos celebrá-lo ano após ano, pois Jesus cumpriu na cruz do Calvário todos os ritos proféticos e trouxe para seu povo uma religião pura e simples que pode ser praticada por qualquer pessoa de qualquer nação por meio da legítima fé nEle. Fale ainda sobre o que significa ser discípulo do Senhor Jesus, chamando sua família a uma vida cristã simples, mas piedosa em que “já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse viver que, agora, tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim” (Gl.2.20), pois Cristo disse “a seus discípulos: Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me” (Mt.16.24).

Todavia, isso não significa que essas datas devam ser celebradas. A celebração de datas importantes é uma instituição que cabe somente a Deus. Somente o Senhor, em sua Santa Palavra, pode instituir a forma como seu povo deve adorá-lo. Por isso, os cultos de Israel foram minunciosamente ordenados por Deus no Antigo Testamento; e quando feitos de modo errado, Deus manifestou seu juízo, indicando o caminho que o povo deveria percorrer para uma adoração agradável a Ele (conferir 2 Samuel 6; 1Crônicas 13 e 15.11-28, além do livro de Malaquias). Dias santos, calendário litúrgico e celebrações de datas como a Páscoa são tradições não instituídas por Deus. Logo, não podem ser impostas sobre a igreja, pois caso isso aconteça (e tem acontecido) aqueles que impõe tais tradições estão arrogando para si o status de Deus, colocando pesos sobre os ombros da noiva de Cristo, como Jesus protestou contra os fariseus de seus dias: “Atam fardos pesados e difíceis de carregar e os põem sobre os ombros dos homens” (Mt.23.4).

Por mais bonita que seja a aparência de piedade de certas práticas religiosas não instituídas por Deus, elas não devem ser impostas sobre a igreja. Cristo já veio trazendo a plena liberdade para sua igreja que é convocada a viver uma fé racional (Rm.12.1-2) e simples, centrada somente na pessoa de Cristo Jesus e movida unicamente pelo Espírito Santo e pela Palavra de Deus, a fim de que exista em todo tempo para a glória do Senhor. Todas as doutrinas do cristianismo são explicáveis e encontram suas explicações no decurso da revelação que se deu na história humana: a Palavra de Deus. E para que o cristão carregue marcas visíveis de sua fé, foi-lhe dado (apenas) dois sacramentos: o Batismo e a Ceia do Senhor. Por meio deles, somos conduzidos ao longo trajeto da história redentora, ao que Deus fez em nós e por nós e ao que ainda nos aguarda no tempo vindouro.

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