“Quando,
pois, Jesus tomou o vinagre, disse: Está consumado! E, inclinando a cabeça,
rendeu o espírito” (Jo.19.30)
As ruas estão praticamente desertas, hoje. Quase tudo
fechado. Contudo, diferente dos demais dias desse mês, a razão não é a pandemia
do Coronavírus. Dessa vez, as famílias estão em casa porque em uma sexta-feira
que antecede a Páscoa judaica, o Cordeiro de Deus, por meio do qual o universo
fora criado (Jo.1.1-5; Hb.1.1-4), foi entregue para morrer em uma cruz,
assumindo a culpa dos pecadores, a fim de dar a vida eterna a “todo o que
nele crê” (Jo.3.16,36). Um dia de tão forte significado e emoções que o
universo inteiro sentiu a morte do Filho de Deus, como nos descreve o evangelho
de Mateus, o que melhor detalha o evento da morte de Cristo:
45 Desde a hora
sexta até à hora nona, houve trevas sobre toda a terra […]50 E
Jesus, clamando outra vez com grande voz, entregou o espírito. 51 Eis que o véu do santuário se
rasgou em duas partes de alto a baixo; tremeu a terra, fenderam-se as
rochas; 52 abriram-se os
sepulcros, e muitos corpos de santos, que dormiam, ressuscitaram; 53 e, saindo dos sepulcros depois
da ressurreição de Jesus, entraram na cidade santa e apareceram a muitos.
(Mt.27.45,50-53)
Mas, qual seria a verdadeira natureza desse dia para o
cristianismo, à luz da Escritura Sagrada? Para respondermos essa pergunta,
precisamos distinguir entre a natureza histórica de uma data e a natureza
ritual de um dia religioso. Essa distinção é fundamental, tendo em vista que a cristandade
tem vivido uma crise de identidade tão grande que há, em seu meio, desde grupos
que se assemelham ao judaísmo farisaico dos dias de Jesus até aqueles que vivem
um completo liberalismo teórico e prático. Então, os cristãos interessados em
um cristianismo puro e simples (sem o peso de tradições forjadas pela mente
humana ao mesmo tempo em que seja bem fundamentado na Verdade e piedade do
Evangelho) precisam saber como agir em dias como esses.
Diferente de muitas outras religiões, o cristianismo, como
sequência natural do judaísmo, é uma religião fundamentalmente histórica. A Palavra
de Deus não é um manual de como viver bem, apenas, mas o registro histórico de
todos os eventos que fazem parte da história redentora. Sem a historicidade dos
eventos redentores, o cristianismo não passaria de mais uma religião filosófica
(comum entre os orientais) ou tipo “paz e amor” (como os hippies). Seus eventos
históricos não devem ser compreendidos como metafóricos, alegóricos, simbólicos
ou figurados. Essa é uma das razões de se afirmar que a criação do mundo se deu
em seis dias literais, tendo em vista que a criação do universo é o primeiro evento
histórico da história redentora. Substituir a literalidade dos seis dias por
tempos simbólicos torna a criação em um evento indefinido sem valor histórico
para a história redentora, abrindo um perigosíssimo precedente para a anulação
da historicidade de todos os demais eventos: queda, dilúvio, chamado de Abraão
etc.
Por seu caráter histórico, o cristianismo está repleto de datas
importantes que marcaram a trajetória da história redentora desde a criação do
universo (Gênesis) até a revelação do ultimo livro da Escritura Sagrada:
Apocalipse. Assim como a história de uma pessoa é parte da formação de seu
caráter e competências, sendo importante tanto para ela quanto para as pessoas
a seu redor, também todos os eventos históricos da história redentora são fundamentais
para a formação dos cristãos, pois formam a identidade do cristianismo.
Portanto, todo cristão precisa conhecer como Deus revelou Seu SER e Suas obras
no curso da história humana, como nos diz o autor de Hebreus:
Ora, a fé é a
certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não veem. 2 Pois, pela fé, os antigos
obtiveram bom testemunho. 3
Pela fé, entendemos que foi o universo formado pela palavra de Deus, de maneira
que o visível veio a existir das coisas que não aparecem. […] 6 De
fato, sem fé é impossível agradar a Deus, porquanto é necessário que aquele que
se aproxima de Deus creia que ele existe e que se torna galardoador dos que o
buscam. (Hb.11.1-3,6)
A fé de cada geração de homens e mulheres de Deus estava
relacionada a algum evento histórico. Adão e Eva criam no Deus Criador que fez
o universo em seis dias e prometeu o nascimento do redentor que pisaria a
cabeça da serpente (Gn.1-2; 3.15). Essa promessa acompanhou o povo de Deus
através das gerações. Noé, também, cria no Deus Criador de tudo o que existe e
acreditou tanto na Palavra de juízo quanto na promessa de salvação através da
arca. Seus filhos foram ensinados a crer no Deus Criador, Provedor, Juiz e
Salvador. Mais à frente, os personagens que Deus chama (Abraão, Isaque e Jacó)
são ensinados a crer tanto naquilo que já havia sido revelado sobre o SER de Deus
e suas obras quanto naquilo que o Senhor prometia para o futuro. Em ambos os
casos, a fé dos personagens estava depositada sobre ações de Deus na história
(passado, presente e futuro). Por isso, Moisés registrou a Palavra de Deus e os
filhos de Israel foram ensinados a crer no Deus que se revelou por atos
históricos redentores, como o êxodo.
Tendo em vista a grande importância da história para a fé
cristã, as famílias precisam conhecer as “datas” importantes da história da
redenção. Cada uma delas nos ensina algo sobre o SER de Deus e suas obras. Alguns
desses eventos não tem um dia certo, mas todos eles ocorreram no tempo e no
espaço da história humana e possuem importante significado histórico:
1. No princípio, Deus criou todas as
coisas em seis dias e fez o homem e a mulher no sexto dia (Gn.1-2).
2. O homem e a mulher desobedeceram a
Deus quando estavam no paraíso e foram expulsos para viver em um mundo caído
(Gn.3).
3. Deus manifestou seu ódio ao pecado e
seu justo juízo ao castigar os pecadores por meio do dilúvio, enquanto mostrava
suas ternas misericórdias e graça salvando a família de Noé (Gn.6-9).
4. Deus mostrou sua fidelidade ao plano
redentor prometido a Adão e Eva chamando Abrão para ser o pai da descendência
do Messias prometido, pelo qual as famílias dos povos seriam abençoadas (Gn.12-24).
5. Deus revelou seu grande poder para
destruir os inimigos de seu povo humilhando o Egito e seus deuses por meio das
dez pragas (Ex.1-15) e engrandeceu sua misericórdia e sua graça libertando seu
povo da escravidão egípcia (Ex.12).
É nesse ponto que chegamos à Páscoa judaica, uma data
importantíssima para a história redentora e que deveria ser celebrada até a
chegada do Verdadeiro Cordeiro Pascoal (Cristo Jesus), pois a celebração dessa
data a tornaria primordial e inesquecível dentro do judaísmo (Ex.12.14). Devemos
observar, ainda, que Deus não ordenou a celebração dos eventos históricos
anteriores. Ou seja, não há um dia para se celebrar a criação de todas as coisas;
outro dia para se celebrar a promessa de salvação para Adão e Eva; não há uma
data para se celebrar a redenção de Noé e sua família por ocasião do dilúvio;
também não existe uma data para se celebrar o chamado de Deus a Abrão. Todos
esses eventos são importantíssimos para a história redentora, mas não há uma ordenança,
com o fim de que o povo de Deus os celebre no decurso dos anos, assim como fora
ordenada, ao povo de Israel, a celebração da Páscoa, o livramento da morte por
meio do sacrifício de cordeiros substitutivos. É por causa, principalmente, da
ordenança da celebração desse evento que Paulo escreve as seguintes palavras:
23 Mas, antes que
viesse a fé, estávamos sob a tutela da lei e nela encerrados, para essa fé que,
de futuro, haveria de revelar-se. 24
De maneira que a lei nos serviu de aio para nos conduzir a Cristo, a fim de que
fôssemos justificados por fé. 25
Mas, tendo vindo a fé, já não permanecemos subordinados ao aio. 26 Pois todos vós sois filhos de
Deus mediante a fé em Cristo Jesus; 27
porque todos quantos fostes batizados em Cristo de Cristo vos revestistes. 28 Dessarte, não pode haver judeu
nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois
um em Cristo Jesus. 29 E, se
sois de Cristo, também sois descendentes de Abraão e herdeiros segundo a
promessa. [...] 3 Assim, também nós, quando éramos menores,
estávamos servilmente sujeitos aos rudimentos do mundo; 4 vindo, porém, a plenitude do
tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei [...] 9
mas agora que conheceis a Deus ou, antes, sendo conhecidos por Deus, como
estais voltando, outra vez, aos rudimentos fracos e pobres, aos quais, de novo,
quereis ainda escravizar-vos? 10
Guardais dias, e meses, e tempos, e anos.
11 Receio de vós tenha eu trabalhado em vão para convosco. (Gl.3.23-29;
4.3-4, 9-11)
As celebrações ordenadas no Antigo Testamento (conferir
texto sobre os ritos de Israel: https://voxscripturae.blogspot.com/2019/04/cristo-nossa-celebracao_17.html)
tinham propósitos determinados e todos eles apontavam para a chegada do Filho
de Deus, o Messias prometido desde a queda de Adão e Eva (Gn.3.15). Todo
israelita era obrigado a celebrar as três festas instituídas por Deus, sob a
pena de ser expulso do povo, caso desobedecesse. Não eram celebrações
opcionais, mas ordenanças divinas:
Deuteronômio 16.16
Três vezes no ano, todo varão entre
ti aparecerá perante o SENHOR, teu Deus, no lugar que escolher, na Festa dos
Pães Asmos, e na Festa das Semanas, e na Festa dos Tabernáculos; porém não
aparecerá de mãos vazias perante o SENHOR
Números 9.13 se um homem achar-se limpo, e não estiver de caminho,
e deixar de celebrar a Páscoa, essa alma será eliminada do seu povo, porquanto
não apresentou a oferta do SENHOR, a seu tempo; tal homem levará sobre si o seu
pecado
Portanto, vimos até o momento que muitos são os eventos
históricos importantíssimos, mas boa parte deles não é celebrado; nem é necessário
que os celebremos. Todavia, alguns poucos eventos históricos que marcaram a
vida de Israel foram ordenados com propósito bastante específico: lembrar da
promessa redentora e seu futuro cumprimento (Encarnação do Filho de Deus, morte
do Cordeiro de Deus e advento do Espírito Santo). Nesse ponto, já temos uma
distinção entre eventos históricos importantes e datas religiosas celebradas.
Todavia, ainda estamos tratando dentro de um contexto judaico, já que as três
festas ordenadas no Antigo Testamento (Festa da Páscoa, Festa do Tabernáculo e
Festa de Pentecostes) foram instituídas para a nação de Israel, exclusivamente.
O Messias prometido e lembrado em cada celebração já chegou.
O que fazer, então? Como já dissemos, é sobre isso que Paulo está tratando em
sua carta aos Gálatas. Conforme o texto de Gálatas, agora é preciso crer em
Cristo tendo entendido que todos os ritos cumpriram seus papeis com a chegada
do cumpridor (Cristo). Todas as celebrações judaicas caducaram, por isso não estamos
mais “subordinados ao aio” (Gl.3.25). Por essa razão, o apóstolo questiona
os gálatas em tom corretivo e duro: “como estais voltando, outra vez, aos
rudimentos fracos e pobres, aos quais, de novo, quereis ainda escravizar-vos? Guardais
dias, e meses, e tempos, e anos. Receio de vós tenha eu trabalhado em vão para
convosco” (Gl.4.9-11). Os cristãos não deveriam viver de sombras, ritos de
celebração que apontavam para o cumprimento da promessa redentora, pois o redentor
já chegou e cumpriu cabalmente todas as profecias.
Isso significa que as datas importantes deixaram de ser
importantes? Obviamente, NÃO! A criação do universo, o dilúvio, o chamado de
Abrão, o êxodo de Israel, a promessa do sucessor de Davi, a construção do
Templo, o cativeiro de Judá etc. são importantes eventos da história redentora nos
quais Deus revelou seu SER e suas obras. Foi por essa jornada que Deus quis se
revelar e cumprir a promessa de redenção. Todos os eventos importantes da história
redentora devem ser conhecidos pelas famílias e transmitidos de pais para
filhos, pois neles Deus revela seu amor, sua graça, seu perdão, sua justiça, seu
poder, sua misericórdia, seu reino, sua glória, seu decreto, sua santidade etc.
Nessa sexta-feira que precede a Páscoa judaica, os cristãos podem, e devem,
ensinar a seus filhos a importância história do evento tanto tipológico (a
libertação de Israel) quanto o final (a morte do Verdadeiro Cordeiro Pascoal).
Desse modo, a fé dos filhos será depositada nos reais eventos redentores
operados por Deus ao longo da história da redenção.
Ao apresentar os eventos históricos, os pais não apenas
devem dizer o que aconteceu naquela data ou momento. Todos os eventos são
adornados por uma ampla revelação sobre o SER de Deus e suas obras, de modo que
os pais devem estar cientes do que Deus revelou sobre si mesmo e sobre sua obra
redentora com aquele determinado evento que está sendo partilhado. Caso isso
não aconteça, a família corre o sério risco de viver apenas uma religião
tradicionalista, ou seja, que conhece as “datas importantes”, mas não consegue interpretá-las
nem se mostra capaz de aplicar à própria vida tudo aquilo que Deus quis revelar
naquele determinado momento da história redentora. Ou seja, Deus quer que o
conheçamos, não apenas que decoremos aquilo que Ele fez ao longo da história.
Por isso, após Jesus ter feito muitos milagres e pregado largamente sobre o
Reino de Deus, voltou-se para os discípulos, a fim de questioná-los sobre o que
aprenderam: “Indo Jesus para os lados de Cesaréia de Filipe, perguntou a
seus discípulos: Quem diz o povo ser o Filho do Homem? E eles responderam: Uns
dizem: João Batista; outros: Elias; e outros: Jeremias ou algum dos profetas. Mas
vós, continuou ele, quem dizeis que eu sou?” (Mt.16.13-15).
Portanto, chame sua esposa e filhos e lhes ensine o que
aconteceu na sexta-feira que antecede a Páscoa judaica. Fale sobre a morte do Cordeiro
de Deus que tira o pecado do mundo (Jo.1.29). Ensine-lhes ainda que este não é
um dia santo ou sagrado e que não precisamos celebrá-lo ano após ano, pois Jesus
cumpriu na cruz do Calvário todos os ritos proféticos e trouxe para seu povo
uma religião pura e simples que pode ser praticada por qualquer pessoa de qualquer
nação por meio da legítima fé nEle. Fale ainda sobre o que significa ser discípulo
do Senhor Jesus, chamando sua família a uma vida cristã simples, mas piedosa em
que “já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse viver que, agora,
tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se
entregou por mim” (Gl.2.20), pois Cristo disse “a seus discípulos: Se
alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me” (Mt.16.24).
Todavia, isso não significa que essas datas devam ser
celebradas. A celebração de datas importantes é uma instituição que cabe
somente a Deus. Somente o Senhor, em sua Santa Palavra, pode instituir a forma
como seu povo deve adorá-lo. Por isso, os cultos de Israel foram minunciosamente
ordenados por Deus no Antigo Testamento; e quando feitos de modo errado, Deus
manifestou seu juízo, indicando o caminho que o povo deveria percorrer para uma
adoração agradável a Ele (conferir 2 Samuel 6; 1Crônicas 13 e 15.11-28, além do
livro de Malaquias). Dias santos, calendário litúrgico e celebrações de datas
como a Páscoa são tradições não instituídas por Deus. Logo, não podem ser
impostas sobre a igreja, pois caso isso aconteça (e tem acontecido) aqueles que
impõe tais tradições estão arrogando para si o status de Deus, colocando pesos
sobre os ombros da noiva de Cristo, como Jesus protestou contra os fariseus de
seus dias: “Atam fardos pesados e difíceis de carregar e os põem sobre os
ombros dos homens” (Mt.23.4).
Por mais bonita que seja a aparência de piedade de certas
práticas religiosas não instituídas por Deus, elas não devem ser impostas sobre
a igreja. Cristo já veio trazendo a plena liberdade para sua igreja que é
convocada a viver uma fé racional (Rm.12.1-2) e simples, centrada somente na pessoa
de Cristo Jesus e movida unicamente pelo Espírito Santo e pela Palavra de Deus,
a fim de que exista em todo tempo para a glória do Senhor. Todas as doutrinas
do cristianismo são explicáveis e encontram suas explicações no decurso da
revelação que se deu na história humana: a Palavra de Deus. E para que o
cristão carregue marcas visíveis de sua fé, foi-lhe dado (apenas) dois sacramentos:
o Batismo e a Ceia do Senhor. Por meio deles, somos conduzidos ao longo trajeto
da história redentora, ao que Deus fez em nós e por nós e ao que ainda nos
aguarda no tempo vindouro.
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