“Desperta, ó tu que dormes, levanta-te de entre os mortos, e Cristo te iluminará” (Ef.5.14)
Por que, após 504 anos em que Martinho Lutero afixou as 95 teses na porta da igreja de Wittemberg, em protesto contra os abusos da liderança religiosa de seus dias, ainda relembramos a Reforma Protestante? Ou seja, qual seria a importância desse evento histórico para a igreja do século XXI? Talvez, não devêssemos esquecer um pouco o passado e dar mais ênfase ao presente?
A lembrança anual desse evento histórico importante possui uma mensagem significativa: A igreja de Cristo não pode dormir enquanto espera a volta de seu Senhor Jesus (Mt.25.1-13). Ou seja, lembrar a Reforma Protestante não deve ser um simples saudosismo, mas uma reflexão sobre os princípios teóricos-práticos erguidos pelos reformadores e como estes princípios devem ser aplicados em cada geração, tendo em vista que a igreja precisa estar sempre vigilante (Mt.24.42). Assim, a Reforma sempre será mais que um evento histórico, será uma lição divina para sua igreja de todas as gerações, à semelhança da festa de Purim (Et.9.12-32) que relembra a providência de Deus para a salvação do povo judeu (Rm.9.4-5), nos dias do rei Assuero (486-465 a.C.).
Quase 1500 anos haviam se passado desde a morte e ressurreição de Cristo “e, tardando o noivo, foram todas tomadas de sono e adormeceram” (Mt.25.5). A hora parecia avançada, a impressão de que o sol estava se pondo, as pálpebras tornaram-se pesadas, o corpo mostrou-se cansado e a mente começou a relaxar. O sono tomou conta da igreja que adormeceu adornada pelo conforto que lhe transmitia uma sensação de segurança e, assim, tornou-se presa fácil das perspicazes e afiadas garras do pecado que a transportou por caminhos tortuosos, em uma carruagem ornada com ouro e muita ostentação. Seu destino ignorado era a destruição.
Quando a Reforma Protestante ocorreu, a igreja de Cristo estava dormindo em sono profundo, afinal sua ascensão com a queda do Império Romano lhe possibilitou o domínio sobre os povos, sobretudo ocidentais. Com o tempo, a instituição eclesiástica enriqueceu e, como de costume, se perdeu na luxúria, qual criança frente a uma mesa de doces e salgados. Então, muitos cristãos baixaram a guarda. Esqueceram-se que a luta cristã vai além das fronteiras, pois reside, sobretudo, em seu próprio coração. Assim, deixaram que os fundamentos da casa fossem minados pouco a pouco até que o prédio todo estivesse ameaçado de ruir.
Jesus havia falado sobre o perigo de dormir quando o mal se aproxima. No Getsêmani, Jesus orava se preparando para sua jornada até a cruz (Mt.26.36-46). Todavia, os discípulos que haviam sido chamados para orarem não resistiram ao cansaço e se entregaram ao sono, afinal tudo parecia tão calmo naquela noite: “E, voltando para os discípulos, achou-os dormindo; e disse a Pedro: Então, nem uma hora pudestes vós vigiar comigo? Vigiai e orai, para que não entreis em tentação; o espírito, na verdade, está pronto, mas a carne é fraca.” (Mt.26.40-41). Jesus estava sozinho, pois ninguém foi capaz de vigiar com Ele durante aquela noite angustiante (Lc.22.44).
Na brisa suave do lugar, na calmaria de uma noite aparentemente tranquila, após um dia de celebração pascoal com muita comida e bebida (Mt.26.17-21), os discípulos despreocupados baixaram a guarda. Então, quando o inimigo apareceu e prendeu a Jesus (Mt.26.47-56), cada um dos apóstolos fugiu sem saber o que fazer nem para onde ir. Estavam despreparados para aquela noite tão marcante. Dormiram quando deveriam estar vigilantes, então o inimigo os alcançou de surpresa, sem que eles estivessem prontos para resistir.
A displicência de Pedro custou-lhe uma grande amargura (Lc.22.62). Enquanto Jesus era interrogado e maltratado, Pedro não teve forças suficientes para defender seu mestre. Acovardado, Simão negou a Cristo três vezes (Mt.26.69-75), quando deveria ter sido fiel testemunha de tudo o que havia visto e ouvido (1Jo.1.1-3), lutando como bom soldado de Deus (2Tm.2.3-4). O gostoso sono no Getsêmani teve um alto preço: a capacidade de lutar contra a fraqueza da carne, “contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestes” (Ef.6.12), em um mundo hostil que jaz no maligno (1Jo.5.19). Então, Pedro perdeu a batalha e voltou envergonhado e desnorteado para casa, pois negara o Cristo, o Filho do Deus vivo.
Posteriormente, o apóstolo Pedro experimentou outra decaída, ainda que de menor expressão. Em Gálatas, o apóstolo Paulo nos conta que precisou exortar Pedro diante da igreja, porque ele “se tornara repreensível” (Gl.2.11). O impetuoso apóstolo baixara a guarda novamente como quem relaxa em ambiente seguro e se deixou levar pelo exclusivismo de cristãos judeus (Gl.2.12-14), preterindo os gentios que haviam crido em Jesus e que deveriam ser alvo de igual amor e atenção. Foi necessário acordar Pedro mais uma vez, pois a sonolência retardou os sentidos e entorpeceu sua mente e seu coração.
Apesar dos maus momentos, os apóstolos aprenderam a importante lição ensinada por Cristo: “Vigiai, pois, a todo tempo, orando, para que possais escapar de todas estas coisas que têm de suceder e estar em pé na presença do Filho do Homem” (Lc.21.36). Desse modo, Pedro, em sua primeira carta, exorta os irmãos, dizendo: “Sede sóbrios e vigilantes. O diabo, vosso adversário, anda em derredor, como leão que ruge procurando alguém para devorar” (1Pe.5.8). O apóstolo aprendera a importância de estar sempre vigilante e não queria que outros cristãos cometessem os mesmos erros, pois nem a carne nem o diabo nem o mundo oferecem tréguas para o cristão.
Assim como Pedro, a cristandade já sofreu vários danos por ter negligenciado a necessária vigilância. O cristianismo já esteve imerso em degradação espiritual, doutrinária e moral. Os sutis, mas perigosos, textos apócrifos e pseudoepígrafos dos primeiros séculos da era cristã são uma expressão das ameaças que atacavam a igreja. Sem o devido cuidado, muitos cristãos se deixaram enganar por esses textos criando uma crendice popular que cresceu dando forma a variados desvios doutrinários, dentre os quais se encontra o ensino da perpétua virgindade de Maria (conferir texto: De onde vem a falsa compreensão sobre Maria, disponível em voxscripturae.blogspot.com).
Nesses períodos críticos, Deus levanta homens para acordar a igreja erguendo-a outra vez para o combate. Esses homens lutaram contra os males de sua própria geração, ajudando o cristianismo a reagir e seguir a jornada rumo a eternidade: Justino o mártir (100-165 d.C.), Irineu de Lyon (130-195 d.C.), Nicolau de Mira (270-343 d.C.) João Crisóstomo (344-407 d.C.), Agostinho de Hipona (354-430 d.C.), Leão I (440-461 d.C.), Gregório I (590-604 d.C.), Gregório VII de Hildebrando (1020-1085 d.C.), Tomás de Aquino (1225-1274 d.C.), John Wycliffe (1328-1384 d.C.), Jan Hus (1373-1415 d.C.), Martinho Lutero (1483-1546 d.C.) e outros mais.
Mas, novas ameaças aparecem a cada nova geração e a igreja não pode dormir diante delas. Abusos pastorais, políticos, econômicos, morais e doutrinários de lideranças religiosas continuam acontecendo no meio da cristandade e causando muitos danos à espiritualidade dos verdadeiros cristãos. O feminismo tem se mostrado uma forte ameaça destruindo a mente e o coração tanto de mulheres quanto de homens e, consequentemente, deteriorando muitas famílias, uma das causas do alto índice de divórcios dentro do cristianismo. A depravação homossexual (ideologia de gênero) tem adentrado pouco a pouco aos portões da igreja visível, transformando Jerusalém em Sodoma e Gomorra. A corrida do ouro do movimento “pop star gospel” está transformando pecadores quaisquer em bezerros de ouro para ignorantes.
Portanto, há um propósito muito maior do que o mero saudosismo quando a igreja olha para o passado. Paulo nos ensina a olhar para trás com o objetivo de aprender (1Co.10.1-10): “Estas coisas lhes sobrevieram como exemplos e foram escritas para advertência nossa, de nós outros sobre quem os fins dos séculos têm chegado” (1Co.10.11). Na história, encontramos as grandiosas e poderosas obras de Deus, mas, também, nos deparamos com os erros e acertos da cristandade. E, por meio do passado, Deus chama a atenção da igreja para que lhe seja fiel no tempo presente.
Sendo assim, também devemos olhar para o passado para despertar a igreja do presente. Precisamos mostrar, aos cristãos de nossos dias, os perigos sofridos por gerações de cristãos que dormiram frente às ameaças doutrinárias e morais de seus dias. Mas, também, devemos fortalecer a igreja do presente animando-a com os poderosos exemplos daqueles que lutaram bravamente, pois estavam vigilantes e, assim, foram instrumentos de Deus para combater todos os males sofridos pela cristandade de seus dias. Então, bradamos aos cristãos de nossos dias: “Desperta, ó tu que dormes, levanta-te de entre os mortos, e Cristo te iluminará” (Ef.5.14).
E você consegue me ouvir atentamente? Está dormindo ou está vigilante? Erga o estandarte do Reino de Deus, embrace o escudo da fé, ponha o capacete da salvação e tome a espada do Espírito em suas mãos, pois a trombeta já soou e o inimigo se põe em posição de batalha. Não podemos deixar que a igreja de Jesus caia em mãos erradas, não podemos deixar que ela durma o sono da morte. É preciso estar atento e pronto para combater o bom combate do Senhor (2Tm.4.7), como lutaram os reformadores, como fez o apóstolo Paulo: “Tomai também o capacete da salvação e a espada do Espírito, que é a palavra de Deus; com toda oração e súplica, orando em todo tempo no Espírito e para isto vigiando com toda perseverança e súplica por todos os santos” (Ef.6.17-18).
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