“SENHOR,
como tem crescido o número dos meus adversários!” (Sl.3.1)
Os Salmos de Davi têm
servido de inspiração para um incontável número de pessoas que, nas aflições,
recorrem a Deus como última esperança. Provavelmente, você que lê este texto já
deve ter chorado diante do Senhor orando algum dos salmos de Davi, identificando-se
com as palavras do salmista. Muitos desses salmos (Sl.3-7; 13; 17; 22; 25-31;
35; 40 etc.) cantam os clamores de Davi quando este recorria ao Senhor, pedindo
livramento diante das perseguições sofridas.
Alguns elementos desses
salmos davídicos ajudam a criar uma relação entre o texto e o leitor: 1) Davi revela-se
um homem igual a qualquer outro homem, ou seja, não foi um herói sobrecomum,
não fez proezas extraordinárias, à nossa semelhança; 2) os erros de Davi são expostos,
revelando que o grande amor incondicional de Deus é a razão para jamais
abandoná-lo, confortando-nos em nossas quedas; 3) Davi mostra fraqueza,
necessidades, angústia diante dos problemas sofridos, razão para se humilhar
diante de Deus na esperança de ser socorrido, lembrando-nos de nossas próprias
fraquezas. Lendo tanto a vida de Davi quanto seus cânticos, encontramos um
homem igual a nós, que nos motiva a buscar a Deus da mesma forma como ele
buscou, na esperança de sermos atendidos assim como o Senhor o atendeu.
Portanto, Davi foi um
homem comum em termos de natureza humana, assim como todos nós o somos. Mesmo
tendo sido o principal rei de Israel, Davi não fez qualquer proeza como fizeram
os profetas do passado (Moisés, Josué, Samuel) e do futuro (Elias, Elizeu). Todavia,
o filho de Jessé foi escolhido para uma missão especial que torna especial sua
história. Além de ter sido o rei de Israel, Davi possui dois papéis
fundamentais dentro da história redentora: Em primeiro lugar, Davi é um tipo de
Cristo. Ou seja, características da vida de Davi (amor, fidelidade, zelo,
coragem, sofrimento etc.) têm o propósito de apontar para Cristo, incluindo seu
ofício real. Em segundo lugar, Davi foi um dos progenitores de Jesus, de forma
que Cristo herdou a realeza “humana” de Davi, seu pai, o rei de Israel. Ou
seja, a conservação da vida de Davi estava intimamente ligada à preservação do
plano de trazer à luz o Filho de Deus, filho de Davi.
Mas, em que tudo isso é
importante para a compreensão dos salmos de clamor de Davi? O coração do clamor
de Davi nesses salmos não é sua vida pessoal, mas o que ela representa para a
história redentora. O filho de Jessé não estava sofrendo por questões
particulares ou por problemas cotidianos. Seu sofrimento está intimamente
relacionado com Cristo, tendo em vista que Davi foi herdeiro da promessa
redentora de Deus (2Sm.7), que terminou por trazer-lhe muitas angústias, não
apenas alegrias. Mais que orações de um sofredor, que promovem profunda
simpatia/empatia em nosso coração, os salmos de Davi nos contam quão penosa foi
a história da salvação, quão grande foi a dor de parto sofrida pelo povo de
Deus para dar à luz ao Messias (Gn.3.16).
Caso não reflitamos sobre
a real causa para todos os problemas sobrevindos ao salmista Davi, à luz da
história redentora, corremos o risco de olhar para o filho de Jessé apenas como
um pecador e mau pai que tinha problemas e inimigos. As “lições” sobre a vida
de Davi não passarão de mensagens morais soltas e desconexas do grande projeto
redentor de Deus. A chave para a compreensão do propósito da revelação dos
salmos de clamores de Davi é Cristo, seu filho, pois Ele é o propósito final de
toda a história redentora, também da história de Davi.
Davi, portanto, não está
cantando situações corriqueiras da vida, apenas, mesmo que diversas necessidades
básicas da vida tenham aparecido também. No entanto, o coração do problema
sofrido por Davi, em praticamente todos os salmos em que ele invoca o Senhor
pedindo por justiça, socorro, livramento e proteção, é a perseguição injusta
que lhe sobrevinha da parte de inimigos os mais variados que queriam dar cabo
da vida dele, com o propósito de interferir na salvação prometida desde os dias
de Adão e Eva (Gn.3.15; 49.8-12).
O propósito de Deus não
se encerrava no reinado de Davi. Deus o escolheu para ser progenitor do Filho
de Deus de modo que o Messias prometido seria chamado: filho de Davi. A partir
dessa promessa (2Sm.7), revelação do projeto redentor, todas as forças inimigas
se voltaram contra este homem de Deus, a fim de impedir o cumprimento do plano
divino: inimigos estrangeiros guerrearam contra Davi (2Sm.8-10); tentações lhe
sobrevieram (2Sm.11); crises familiares procuraram desestruturar a vida de Davi
(2Sm.13-14); e, até um de seus filhos tentou tomar o trono a força, intentando
matar o próprio pai (2Sm.15-18). Tudo isso, para tentar impedir que Deus
cumprisse sua promessa feita a Davi: seu filho sentará para sempre no trono (2Sm.7).
Tudo isso aconteceu com
Davi, porque ele fora escolhido para dar seguimento ao cumprimento da promessa
redentora. Davi seria o pai do grande Rei de Israel, o Messias redentor, o
Salvador do homem pecador. Portanto, eliminar Davi seria uma forma de impedir o
cumprimento da promessa divina, à semelhança de como Herodes tentou matar Jesus
(Mt.2.16-18//Ap.12). Olhando para o capítulo 12 de Apocalipse, entendemos
melhor a razão de aparecerem tantos inimigos do povo de Deus no decurso de toda
a história redentora: Satanás esteve ocupado tentando impedir que a redenção
fosse concretizada. O problema em questão não era realmente Davi, mas aquilo
que Deus realizaria por meio dele: o advento de Cristo.
Observe que a partir da
compreensão completa do papel da vida de Davi dentro do projeto redentor,
podemos entender melhor a importância de seus clamores revelados nos salmos,
pois está em questão o projeto redentor de Deus. Por isso, também, os clamores
de Davi podem ser considerados messiânicos. Ou seja, por boca de Davi, ouvimos
Cristo clamando ao Pai, a fim de que o ajude a cumprir sua missão derrotando os
inimigos: o pecado, a morte e o diabo (Ef.2.1-10; Ap.5.5). As lutas que Davi
enfrentou servem, em parte, para tipificar as batalhas travadas por Cristo até
sua vitória final sobre os inimigos de Deus. Ou seja, já em Davi podemos ver
que o preço da redenção foi bastante alto e custou muito sofrimento, angústia,
perseguição e até morte.
Davi, então, não está
apenas chorando problemas comuns da vida. O valente rei de Israel precisava que
Deus o ajudasse, pois todos os inimigos do Senhor investiam contra ele,
fazendo-o questionar: “Até quando
acometereis vós a um homem, todos vós, para o derribardes, como se fosse uma
parede pendida ou um muro prestes a cair?” (Sl.62.3). Mais do que a vida de
um grande homem de Deus, as ameaças sofridas por Davi ameaçavam o projeto
redentor do Senhor. Portanto, em livrar Davi da morte, dando-lhe vitória sobre
seus muitos adversários, o Senhor estava preservando sua promessa e livrando
todo seu povo da condenação eterna, pois assegurava o cumprimento da promessa
redentora.
É dentro da mesma
história redentora que devemos compreender nossas vidas hoje. A forma correta
de aplicarmos os salmos de clamores de Davi é relacionando-o a nosso papel
dentro da história da salvação. Deus também tem um plano dentro da redenção
para seus filhos de todas as gerações e isso inclui todo verdadeiro filho de
Deus por meio de Cristo. É esse plano divino, em Cristo, que explica o fato do
mundo nos odiar, de aparecerem tantas provações e tentações em nossas vidas, e
a razão dos cristãos serem como ovelhas indo para o matadouro (Rm.8.36).
Compreendendo isso, Paulo
diz que “a nossa luta não é contra o
sangue e a carne, e sim contra os principados e potestades, contra os
dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas
regiões celestes” (Ef.6.12). Portanto, a Escritura convida você a olhar
mais atentamente para sua vida dentro do projeto redentor, a fim de que seu
clamor não se limite às circunstancialidades aparentemente desconexas do
projeto redentor de Deus. Sua vida faz parte de algo muito maior e mesmo que
você não queira estará em harmonia com todo o plano divino.
Então, os salmos de Davi
nos motivam a orar como a igreja orou, demonstrando pleno entendimento sobre o
caráter da vida cristã dentro do plano maior, a redenção cósmica:
Ouvindo isto,
unânimes, levantaram a voz a Deus e disseram: Tu, Soberano Senhor, que fizeste
o céu, a terra, o mar e tudo o que neles há;
25 que disseste por intermédio do Espírito Santo, por boca de
Davi, nosso pai, teu servo: Por que se enfureceram os gentios, e os povos
imaginaram coisas vãs? 26
Levantaram-se os reis da terra, e as autoridades ajuntaram-se à uma contra o
Senhor e contra o seu Ungido; 27
porque verdadeiramente se ajuntaram nesta cidade contra o teu santo Servo
Jesus, ao qual ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos, com gentios e gente de
Israel, 28 para fazerem tudo
o que a tua mão e o teu propósito predeterminaram; 29 agora, Senhor, olha para as
suas ameaças e concede aos teus servos que anunciem com toda a intrepidez a tua
palavra, 30 enquanto estendes
a mão para fazer curas, sinais e prodígios por intermédio do nome do teu santo
Servo Jesus. (Atos 4.24-30)
A primeira geração de
cristãos compreendeu que toda inimizade contra a igreja tinha relação direta com
Deus, ou seja, era uma reação contrária à realeza de Cristo, o Salvador. Portanto,
clame a Deus como Davi clamou, peça a Deus como a igreja orou, pedindo que o
Senhor a ajudasse na luta contra os inimigos da cruz de Cristo, fazendo-a forte
nas fraquezas, pronta para as batalhas, firme nas tribulações e fiel em todo
momento, a fim de que Cristo seja glorificado por meio das vitórias do povo de
Deus contra os adversários. Assim, suas orações contemplarão muito mais do que
necessidades momentâneas e seus clamores serão verdadeiras guerras travadas
contra o império das trevas.
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