“Vaidade de vaidades, diz o pregador; vaidade de vaidades, tudo é
vaidade” (Ec 1.2)
Não é incomum ser analisado a
partir da aparência. Ao entrar num estabelecimento comercial, somos um cliente
em potencial, ou seja, uma fonte de lucro. E quanto maior o lucro, melhor! Por
essa razão, em diversos ramos do comércio, a aparência dará pistas desse
potencial (marca da camisa, tipo de perfume, modelo do carro etc). Todavia,
esse fenômeno não se restringe ao mundo do comércio. Até mesmo em ambientes sem
fins lucrativos, o homem tem recebido o valor de suas posses. O melhor exemplo
para isso encontramos no tratamento diferenciado dentro de igrejas em que não
só as pessoas tentam exibir vaidade quanto valorizam aquelas que o fazem,
atribuindo-lhes o valor de suas posses.
Em outras
palavras, seu valor encontra-se naquilo que possui. A ontologia do ser humano
foi reduzida a uma análise econômica, substituindo o “ser” pelo “ter” como
qualificador da existência e balizador das relações sociais. É nesse contexto
sócio filosófico que podemos compreender o tratamento das variadas classes
sociais. Por isso, o médico não olha no rosto de seu “cliente” enquanto está
atendendo; negócios firmados por meio da palavra são facilmente quebrados;
casamentos começam e terminam com a mesma velocidade, multiplicando-se o número
de divórcios; pessoas com boas posses conseguem manipular algumas igrejas
locais, ditando as regras; vendedores procuram vender o mais caro sem se
importarem com o bem-estar do comprador; e as pessoas ficam endividadas com o
fim de manter um status social aparente, pois querem ser bem-aceitas pela sociedade.
Portanto, o homem deixou de “ser” e a sociedade perdeu seu valor.
O INÍCIO DO PROCESSO DE DESVALORIZAÇÃO
No século XIV, o movimento
renascentista deu início ao processo de inauguração de uma nova era da
história. Sua grande bandeira chama-se HUMANISMO. O humanismo não é
completamente homogêneo, mas seu caráter mais básico é a valorização do ser
humano. Por isso, encontramos personagens da reforma protestante que são
identificados como humanistas. Ou seja, inicialmente, o humanismo aparece como
contraposição ao ascetismo do cristianismo vigente que passou a tratar a vida
como um grande pecado, levando o homem a uma vida de penitências, esquecendo-se
do que disse Paulo:
Ora, o Espírito afirma expressamente que, nos últimos
tempos, alguns apostatarão da fé, por obedecerem a espíritos enganadores e a
ensinos de demônios, 2 pela hipocrisia dos que falam mentiras e que
têm cauterizada a própria consciência, 3 que proíbem o casamento e
exigem abstinência de alimentos que Deus criou para serem recebidos, com ações
de graças, pelos fiéis e por quantos conhecem plenamente a verdade; 4
pois tudo que Deus criou é bom, e, recebido com ações de graças, nada é
recusável, 5 porque, pela palavra de Deus e pela oração, é
santificado. (1Tm 4.1-5)
Todavia, o humanismo pagão vai
muito além de uma tentativa de contrapor a desvalorização do homem como
resposta ao abandono dos cuidados para com o homem na sociedade. O humanismo
pagão tem sua melhor expressão no antropocentrismo, ou seja, na ideia de que o
homem é o centro do universo. A insatisfação contra a forma como o cristianismo
se apresentava nos dias do final da Idade Média levou o homem para outro
extremo: a rejeição do divino. Aos poucos, a sorrateira voz réptil ecoava mais
forte formando o espírito moderno anticristão, incutindo na alma da sociedade o
ideal de autonomia do divino, motivando o homem a ser “como Deus” (Gn 3.5).
Mas, para que o homem pudesse ser
o centro do universo seria preciso tirar Aquele que está no centro do cosmo.
Por essa razão, o processo de “empoderamento” do ser humano contemplou a
tentativa de “assassinato” de Deus. Podemos retratar esse fenômeno por meio de
um acontecimento comum entre os povos antigos. Muitas rebeliões e tomadas de
poder registradas pela história ocorreram nesses moldes: pessoas descontentes
com o rei, planejavam destroná-lo pela força assassinando-o, pois enquanto ele
estivesse no trono não seria possível colocar outro em seu lugar.
Semelhantemente, o homem articulou o “destronamento” de Deus por meio de uma
guerra cultural envolvendo ideias e práticas que reprimissem o ideal de vida
cristã revelado pela Palavra de Deus.
O fim da Idade Média que durou sugestivos mil anos
deu início à Idade Moderna. As filosofias deste período gradativamente aparecem
como contraposições ao cristianismo numa tentativa progressiva e clara de
proclamar a independência do homem em relação a Deus. A relação dos primeiros
filósofos da modernidade com o teísmo aponta para a influência do cristianismo
sobre o pensamento do homem. Mas, tal influência não durou muito e pouco a
pouco as ideias do homem moderno humanista apresentam-se como indisposição
consciente e rebelde contra Deus na tentativa de destroná-lo, conforme se
expressa Nietzsche: “Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos!”[1].
Mas, o que parecia ser o triunfo do homem sobre Deus, revelou-se como suicídio,
pois ao tentar matá-lo o tiro saiu pela
culatra.
O TIRO SAIU PELA CULATRA
Com o advento do racionalismo, o
homem se apresenta autoconfiante como se todas as coisas pudessem ser
explicadas pela razão pura e simples. Unida ao empirismo (conhecimento
experiencial) a razão humana se vê como única responsável pelo destino do mundo
que considera ter iniciado uma nova era de desenvolvimento rumo à perfeição. A
autoconfiança levou o homem a pensar ser possível construir um paraíso
civilizado a partir da educação racional, pois Deus não mais interferiria no
rumo da humanidade. Sem Deus, a sociedade se viu livre para construir seu
futuro conforme sua própria vontade.
Contudo, sem Deus, o homem se viu
diante de um grande dilema existencial: Qual a causa e o propósito da vida? Em
sua filosofia existencialista, Sartre chama a existência de “absurda”[2],
pois não parece haver nem causa nem propósito. O homem tornou-se um peregrino a
vagar em um imenso espaço cósmico, buscando a felicidade enquanto foge da dor.
As atitudes humanas passaram a nortear-se por essa incansável e insaciável fuga
da angústia na tentativa de encontrar momentaneamente satisfações que tragam
algum sentido à vida humana. Desse modo, o tiro que deveria ter atingido o
coração de Deus saiu pela culatra e fez um grande rombo no peito do ser humano
deixando nele um vazio imensurável, desprovendo-o de valor absoluto e
permanente.
A desvalorização do homem trouxe
implicações para todas as esferas do indivíduo e, consequentemente, da
sociedade. Paralelamente, a vida pacata do homem do campo foi substituída pelo
frenesi das cidades cada vez maiores e a antiga busca pela subsistência
necessária deu lugar à corrida do ouro com vistas a preencher o vazio deixado
no peito do homem sem Deus. O rápido desenvolvimento da tecnologia não só
revelou a capacidade criativa do homem, mas, também, sua necessidade de dar
significado à existência, já que tudo que lhe restou foi o tempo entre o
nascimento e a morte. Portanto, surgiu a necessidade de se tirar o melhor
proveito possível desse tempo, que tão rapidamente passa, levando a sociedade a
pensar apenas no aqui e agora.
Tal pensamento trouxe diversos
problemas pessoais, sociais e ambientais. Sem refletir nas implicações de suas
ações para o futuro do indivíduo, da sociedade e do meio ambiente em que vive,
o homem se deixou levar por sua ambição tirando maior proveito possível de tudo
a seu redor, quer a natureza quer o ser humano. A exploração da natureza trouxe
prejuízos ambientais quase irremediáveis e a mercantilização do homem pelo
homem trouxe à sociedade diversas doenças psicossociais, tais como a depressão
considerada o mal do século XX. A busca “racional” pelo preenchimento do vazio
do coração levou o homem às duas grandes guerras mundiais, dando fim ao ideal
modernista comprovadamente equivocado.
Então, doente, sem sentido para a
vida, sem causa nem propósito, o homem retorna, como o filho pródigo (Lc
15.11-32), a buscar Deus na religião. Porém, como a geração que saíra do Egito,
esse homem trouxe consigo todas as mazelas adquiridas na modernidade. Sua
autoconfiança e desvalorização ontológica e, consequentemente, moral
permaneceram como marcas de uma sociedade, agora, pós-moderna. O homem
reconhece sua necessidade do divino, mas não consegue negar a si mesmo, tomar a
cruz e seguir (Mt 16.24). A vida utilitarista do homem pós-moderno faz da
religião mais uma esfera de sua vida, de modo que não consegue ver a vida
cristã como uma nova vida que abrange todas as esferas individuais e sociais,
estando acima delas ao mesmo tempo em que se relaciona com elas, o tempo
inteiro. Dessa maneira, o cristianismo pós-moderno caracteriza-se como religião
dualista, em que a fé está relegada ao foro íntimo do indivíduo que reconhece
sua necessidade de preencher o vazio do coração por meio da religião sem abrir
mão de seu desejo de viver segundo sua vontade.
A RESTAURAÇÃO DA HUMANIDADE
O que fazer, então? O cristianismo
da era pós-moderna tem um grande desafio diante de si. Esse desafio não começa
com a evangelização das pessoas que estão fora da igreja, mas com a educação
(discipulado) daquelas que estão dentro dela. A visão distorcida sobre o
cristianismo tem movido muitas igrejas locais a fazerem do evangelismo um meio
para filiar pessoas à membresia local, como se torná-las membro da igreja fosse
resolver o problema da sociedade. Por essa razão, os recursos utilizados pela
cristandade pós-moderna também se apresentam como ferramentas utilitaristas,
levando a igreja a moldar-se ao mundo, com o fim de atrair o maior número
possível de prosélitos.
O mundo carece de um cristianismo
holístico que trabalhe conscientemente em todas as esferas da sociedade
submetendo todo conhecimento à Palavra de Deus. Não se trata de fazer
prosélitos de uma denominação cristã, mas de reconduzir o homem para o Criador,
a fim de resgatar seu valor por meio de sua relação com Deus. Portanto, essa
ampla missão exige uma presença ativa dos cristãos em sua relação cotidiana com
a sociedade. O combate ao relativismo e pluralismo que fragmentaram e diluíram
a sociedade não se dará dentro das igrejas locais, apenas, mas no contato com o
mundo, mostrando para o homem pós-moderno que sua doença psicossocial tem causa
e cura, a fim de que, dissociando-o das causas que o levaram ao vazio
ontológico, encontre a cura por meio do verdadeiro conhecimento de seu “ser” em
Deus.
Para isso, a igreja não pode se
envergonhar do Evangelho de Cristo, “poder
de Deus para a salvação” (Rm 1.16) e transformação da sociedade. Desde o
vazio do homem (indivíduo) aos mais sérios problemas das políticas sociais, a
solução está no resgate do valor da humanidade em Deus e, por conseguinte, na
valorização da sociedade. Não fazemos melhores médicos com melhores
universidades, apenas, mas com a forma correta de ver quem é aquele que precisa
de cuidados médicos; não acabamos com a violência das cidades aumentando apenas
o número de policiais, mas com uma educação familiar abrangente e correta; não
mudamos as relações trabalhistas acrescentando sindicatos ou aumentando o
número de leis, mas corrigindo o olhar do homem sobre si mesmo, a fim de que
não faça do outro um instrumento em benefício próprio.
Por isso, a luta cristã não é
meramente social, mas profundamente ontológica, pois não é possível mudar a
sociedade sem corrigir primeiro sua visão sobre o “ser” humano. Então,
preguemos Cristo ao mundo; ensinemos Cristo às crianças; anunciemos Cristo aos
mais diversos cidadãos; mostremos Cristo nas relações acadêmicas e
trabalhistas; apresentemos Cristo para o homem perdido e vazio de coração. Isso
deverá envolver o modo de vida de cada cristão, confirmando por meio de seu
testemunho diário que Cristo é a solução para toda e qualquer sociedade não
importando sua cultura nem estágio de distanciamento de Deus.
O resultado dessa árdua missão
pode não ser colhido de imediato, mas poderá ser desfrutado pelas gerações seguintes,
glorificando a Deus na construção de sociedades mais parecidas com o Reino de
Deus, constituído de “justiça, e paz e
alegria no Espírito Santo” (Rm 14.17). Portanto, coloque as pessoas e a
sociedade em oração diante do Senhor. Mas, não reduza seu papel nessa grande
missão apenas à oração, pois, ainda que Deus seja o agente ativo de toda
transformação, o Senhor responsabilizou a igreja fazendo-a sal da terra e luz
do mundo (Mt 5.13-16).
[1]
NIETZSCHE, F. A gaia ciência. São
Paulo: Companhia das letras, 2001, p.129
[2] SARTRE,
J. P. O ser e o nada: ensaio de
ontologia fenomenológica. 15 ed. Petrópolis: Vozes, 2007.
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