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quarta-feira, 26 de setembro de 2018

A revalorização do ser e da sociedade

Vaidade de vaidades, diz o pregador; vaidade de vaidades, tudo é vaidade” (Ec 1.2)
Não é incomum ser analisado a partir da aparência. Ao entrar num estabelecimento comercial, somos um cliente em potencial, ou seja, uma fonte de lucro. E quanto maior o lucro, melhor! Por essa razão, em diversos ramos do comércio, a aparência dará pistas desse potencial (marca da camisa, tipo de perfume, modelo do carro etc). Todavia, esse fenômeno não se restringe ao mundo do comércio. Até mesmo em ambientes sem fins lucrativos, o homem tem recebido o valor de suas posses. O melhor exemplo para isso encontramos no tratamento diferenciado dentro de igrejas em que não só as pessoas tentam exibir vaidade quanto valorizam aquelas que o fazem, atribuindo-lhes o valor de suas posses.
Em outras palavras, seu valor encontra-se naquilo que possui. A ontologia do ser humano foi reduzida a uma análise econômica, substituindo o “ser” pelo “ter” como qualificador da existência e balizador das relações sociais. É nesse contexto sócio filosófico que podemos compreender o tratamento das variadas classes sociais. Por isso, o médico não olha no rosto de seu “cliente” enquanto está atendendo; negócios firmados por meio da palavra são facilmente quebrados; casamentos começam e terminam com a mesma velocidade, multiplicando-se o número de divórcios; pessoas com boas posses conseguem manipular algumas igrejas locais, ditando as regras; vendedores procuram vender o mais caro sem se importarem com o bem-estar do comprador; e as pessoas ficam endividadas com o fim de manter um status social aparente, pois querem ser bem-aceitas pela sociedade. Portanto, o homem deixou de “ser” e a sociedade perdeu seu valor.

O INÍCIO DO PROCESSO DE DESVALORIZAÇÃO

No século XIV, o movimento renascentista deu início ao processo de inauguração de uma nova era da história. Sua grande bandeira chama-se HUMANISMO. O humanismo não é completamente homogêneo, mas seu caráter mais básico é a valorização do ser humano. Por isso, encontramos personagens da reforma protestante que são identificados como humanistas. Ou seja, inicialmente, o humanismo aparece como contraposição ao ascetismo do cristianismo vigente que passou a tratar a vida como um grande pecado, levando o homem a uma vida de penitências, esquecendo-se do que disse Paulo:
Ora, o Espírito afirma expressamente que, nos últimos tempos, alguns apostatarão da fé, por obedecerem a espíritos enganadores e a ensinos de demônios, 2 pela hipocrisia dos que falam mentiras e que têm cauterizada a própria consciência, 3 que proíbem o casamento e exigem abstinência de alimentos que Deus criou para serem recebidos, com ações de graças, pelos fiéis e por quantos conhecem plenamente a verdade; 4 pois tudo que Deus criou é bom, e, recebido com ações de graças, nada é recusável, 5 porque, pela palavra de Deus e pela oração, é santificado. (1Tm 4.1-5)
Todavia, o humanismo pagão vai muito além de uma tentativa de contrapor a desvalorização do homem como resposta ao abandono dos cuidados para com o homem na sociedade. O humanismo pagão tem sua melhor expressão no antropocentrismo, ou seja, na ideia de que o homem é o centro do universo. A insatisfação contra a forma como o cristianismo se apresentava nos dias do final da Idade Média levou o homem para outro extremo: a rejeição do divino. Aos poucos, a sorrateira voz réptil ecoava mais forte formando o espírito moderno anticristão, incutindo na alma da sociedade o ideal de autonomia do divino, motivando o homem a ser “como Deus” (Gn 3.5).
Mas, para que o homem pudesse ser o centro do universo seria preciso tirar Aquele que está no centro do cosmo. Por essa razão, o processo de “empoderamento” do ser humano contemplou a tentativa de “assassinato” de Deus. Podemos retratar esse fenômeno por meio de um acontecimento comum entre os povos antigos. Muitas rebeliões e tomadas de poder registradas pela história ocorreram nesses moldes: pessoas descontentes com o rei, planejavam destroná-lo pela força assassinando-o, pois enquanto ele estivesse no trono não seria possível colocar outro em seu lugar. Semelhantemente, o homem articulou o “destronamento” de Deus por meio de uma guerra cultural envolvendo ideias e práticas que reprimissem o ideal de vida cristã revelado pela Palavra de Deus.
O fim da Idade Média que durou sugestivos mil anos deu início à Idade Moderna. As filosofias deste período gradativamente aparecem como contraposições ao cristianismo numa tentativa progressiva e clara de proclamar a independência do homem em relação a Deus. A relação dos primeiros filósofos da modernidade com o teísmo aponta para a influência do cristianismo sobre o pensamento do homem. Mas, tal influência não durou muito e pouco a pouco as ideias do homem moderno humanista apresentam-se como indisposição consciente e rebelde contra Deus na tentativa de destroná-lo, conforme se expressa Nietzsche: “Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos!”[1]. Mas, o que parecia ser o triunfo do homem sobre Deus, revelou-se como suicídio, pois ao tentar matá-lo o tiro saiu pela culatra.

O TIRO SAIU PELA CULATRA

Com o advento do racionalismo, o homem se apresenta autoconfiante como se todas as coisas pudessem ser explicadas pela razão pura e simples. Unida ao empirismo (conhecimento experiencial) a razão humana se vê como única responsável pelo destino do mundo que considera ter iniciado uma nova era de desenvolvimento rumo à perfeição. A autoconfiança levou o homem a pensar ser possível construir um paraíso civilizado a partir da educação racional, pois Deus não mais interferiria no rumo da humanidade. Sem Deus, a sociedade se viu livre para construir seu futuro conforme sua própria vontade.
Contudo, sem Deus, o homem se viu diante de um grande dilema existencial: Qual a causa e o propósito da vida? Em sua filosofia existencialista, Sartre chama a existência de “absurda”[2], pois não parece haver nem causa nem propósito. O homem tornou-se um peregrino a vagar em um imenso espaço cósmico, buscando a felicidade enquanto foge da dor. As atitudes humanas passaram a nortear-se por essa incansável e insaciável fuga da angústia na tentativa de encontrar momentaneamente satisfações que tragam algum sentido à vida humana. Desse modo, o tiro que deveria ter atingido o coração de Deus saiu pela culatra e fez um grande rombo no peito do ser humano deixando nele um vazio imensurável, desprovendo-o de valor absoluto e permanente.
A desvalorização do homem trouxe implicações para todas as esferas do indivíduo e, consequentemente, da sociedade. Paralelamente, a vida pacata do homem do campo foi substituída pelo frenesi das cidades cada vez maiores e a antiga busca pela subsistência necessária deu lugar à corrida do ouro com vistas a preencher o vazio deixado no peito do homem sem Deus. O rápido desenvolvimento da tecnologia não só revelou a capacidade criativa do homem, mas, também, sua necessidade de dar significado à existência, já que tudo que lhe restou foi o tempo entre o nascimento e a morte. Portanto, surgiu a necessidade de se tirar o melhor proveito possível desse tempo, que tão rapidamente passa, levando a sociedade a pensar apenas no aqui e agora.
Tal pensamento trouxe diversos problemas pessoais, sociais e ambientais. Sem refletir nas implicações de suas ações para o futuro do indivíduo, da sociedade e do meio ambiente em que vive, o homem se deixou levar por sua ambição tirando maior proveito possível de tudo a seu redor, quer a natureza quer o ser humano. A exploração da natureza trouxe prejuízos ambientais quase irremediáveis e a mercantilização do homem pelo homem trouxe à sociedade diversas doenças psicossociais, tais como a depressão considerada o mal do século XX. A busca “racional” pelo preenchimento do vazio do coração levou o homem às duas grandes guerras mundiais, dando fim ao ideal modernista comprovadamente equivocado.
Então, doente, sem sentido para a vida, sem causa nem propósito, o homem retorna, como o filho pródigo (Lc 15.11-32), a buscar Deus na religião. Porém, como a geração que saíra do Egito, esse homem trouxe consigo todas as mazelas adquiridas na modernidade. Sua autoconfiança e desvalorização ontológica e, consequentemente, moral permaneceram como marcas de uma sociedade, agora, pós-moderna. O homem reconhece sua necessidade do divino, mas não consegue negar a si mesmo, tomar a cruz e seguir (Mt 16.24). A vida utilitarista do homem pós-moderno faz da religião mais uma esfera de sua vida, de modo que não consegue ver a vida cristã como uma nova vida que abrange todas as esferas individuais e sociais, estando acima delas ao mesmo tempo em que se relaciona com elas, o tempo inteiro. Dessa maneira, o cristianismo pós-moderno caracteriza-se como religião dualista, em que a fé está relegada ao foro íntimo do indivíduo que reconhece sua necessidade de preencher o vazio do coração por meio da religião sem abrir mão de seu desejo de viver segundo sua vontade.

A RESTAURAÇÃO DA HUMANIDADE

O que fazer, então? O cristianismo da era pós-moderna tem um grande desafio diante de si. Esse desafio não começa com a evangelização das pessoas que estão fora da igreja, mas com a educação (discipulado) daquelas que estão dentro dela. A visão distorcida sobre o cristianismo tem movido muitas igrejas locais a fazerem do evangelismo um meio para filiar pessoas à membresia local, como se torná-las membro da igreja fosse resolver o problema da sociedade. Por essa razão, os recursos utilizados pela cristandade pós-moderna também se apresentam como ferramentas utilitaristas, levando a igreja a moldar-se ao mundo, com o fim de atrair o maior número possível de prosélitos.
O mundo carece de um cristianismo holístico que trabalhe conscientemente em todas as esferas da sociedade submetendo todo conhecimento à Palavra de Deus. Não se trata de fazer prosélitos de uma denominação cristã, mas de reconduzir o homem para o Criador, a fim de resgatar seu valor por meio de sua relação com Deus. Portanto, essa ampla missão exige uma presença ativa dos cristãos em sua relação cotidiana com a sociedade. O combate ao relativismo e pluralismo que fragmentaram e diluíram a sociedade não se dará dentro das igrejas locais, apenas, mas no contato com o mundo, mostrando para o homem pós-moderno que sua doença psicossocial tem causa e cura, a fim de que, dissociando-o das causas que o levaram ao vazio ontológico, encontre a cura por meio do verdadeiro conhecimento de seu “ser” em Deus.
Para isso, a igreja não pode se envergonhar do Evangelho de Cristo, “poder de Deus para a salvação” (Rm 1.16) e transformação da sociedade. Desde o vazio do homem (indivíduo) aos mais sérios problemas das políticas sociais, a solução está no resgate do valor da humanidade em Deus e, por conseguinte, na valorização da sociedade. Não fazemos melhores médicos com melhores universidades, apenas, mas com a forma correta de ver quem é aquele que precisa de cuidados médicos; não acabamos com a violência das cidades aumentando apenas o número de policiais, mas com uma educação familiar abrangente e correta; não mudamos as relações trabalhistas acrescentando sindicatos ou aumentando o número de leis, mas corrigindo o olhar do homem sobre si mesmo, a fim de que não faça do outro um instrumento em benefício próprio.
Por isso, a luta cristã não é meramente social, mas profundamente ontológica, pois não é possível mudar a sociedade sem corrigir primeiro sua visão sobre o “ser” humano. Então, preguemos Cristo ao mundo; ensinemos Cristo às crianças; anunciemos Cristo aos mais diversos cidadãos; mostremos Cristo nas relações acadêmicas e trabalhistas; apresentemos Cristo para o homem perdido e vazio de coração. Isso deverá envolver o modo de vida de cada cristão, confirmando por meio de seu testemunho diário que Cristo é a solução para toda e qualquer sociedade não importando sua cultura nem estágio de distanciamento de Deus.
O resultado dessa árdua missão pode não ser colhido de imediato, mas poderá ser desfrutado pelas gerações seguintes, glorificando a Deus na construção de sociedades mais parecidas com o Reino de Deus, constituído de “justiça, e paz e alegria no Espírito Santo” (Rm 14.17). Portanto, coloque as pessoas e a sociedade em oração diante do Senhor. Mas, não reduza seu papel nessa grande missão apenas à oração, pois, ainda que Deus seja o agente ativo de toda transformação, o Senhor responsabilizou a igreja fazendo-a sal da terra e luz do mundo (Mt 5.13-16).


[1] NIETZSCHE, F. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das letras, 2001, p.129
[2] SARTRE, J. P. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. 15 ed. Petrópolis: Vozes, 2007.

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