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domingo, 26 de agosto de 2018

O livro de Jó dentro do projeto redentor

Porque eu sei que o meu Redentor vive e por fim se levantará sobre a terra. Depois, revestido este meu corpo da minha pele, em minha carne verei a Deus.” (Jó.19.25-26)

Em Eclesiastes 7.16, Salomão chama a atenção do leitor com uma advertência aparentemente estranha: “Não sejas demasiadamente justo”. Como pecadores poderiam ser demasiadamente justos (Rm.3.10-18)? E caso fosse possível um pecador ser demasiadamente justo, seria isso ruim? Alguns, por não compreenderem essa advertência, chegam a afirmar que um pouco de injustiça faz bem ao homem, levando o homem ao pecado. O que, então, Salomão quis dizer com isso?

A melhor forma de compreender esse versículo é observando o livro de Jó. Nesse livro, o autor nos apresenta um personagem real (Ez.14.14,20; Tg.5.11) que era “demasiadamente justo”, “porque este pretendia ser mais justo do que Deus” (Jó 32.2). O livro, portanto, aborda um tema fundamental para a história redentora: a justificação, que decorre da misericórdia e graça divinas. O autor nos mostra como Deus conduz Jó e seus três amigos da concepção de uma justiça própria para o reconhecimento de sua natureza pecadora em busca de uma justificação divina (Jó.32.2//42.6). Um paralelo interessante do livro encontra-se na parábola do publicano e o fariseu (Lc.18.9-14), contada por Jesus:

Propôs também esta parábola a alguns que confiavam em si mesmos, por se considerarem justos, e desprezavam os outros:  10 Dois homens subiram ao templo com o propósito de orar: um, fariseu, e o outro, publicano.  11 O fariseu, posto em pé, orava de si para si mesmo, desta forma: Ó Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros, nem ainda como este publicano;  12 jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de tudo quanto ganho.  13 O publicano, estando em pé, longe, não ousava nem ainda levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, sê propício a mim, pecador!  14 Digo-vos que este desceu justificado para sua casa, e não aquele; porque todo o que se exalta será humilhado; mas o que se humilha será exaltado. (Lc.18.9-14)

Qual o problema do fariseu da parábola de Jesus? Por acaso não seria bom viver uma vida íntegra, fugindo de tudo o que é pecado? Por acaso seria ruim não roubar nem ser injusto com as pessoas nem se prostituir? Seria errado jejuar com frequência e ser fiel em dizimar a Deus, reconhecendo, assim, que todas as dádivas vêm do Senhor? Com certeza, Jesus não está condenando as boas práticas do fariseu. O problema dele encontra-se na autojustificação, ou seja, em ser “demasiadamente justo” a seus próprios olhos como se a aparente justiça fosse suficiente para satisfazer a perfeita justiça de Deus. Sua justiça, então, afasta-o da graça divina, pois confiando em si mesmo, despreza a necessidade de receber a justiça que provém do Senhor.

Tendo em vista as características da vida de Jó, ele provavelmente foi contemporâneo de Abraão ou viveu em geração próxima a ele. Todavia, possivelmente o livro foi escrito no mesmo período dos demais livros sapienciais (talvez Salomão seja seu autor), por causa das semelhanças literárias e temáticas. Conforme o livro, temos a impressão que Jó exerce os três ofícios: profeta, sacerdote e líder do clã (Jó.1.5) de modo semelhante aos patriarcas chamados de profetas (Gn.20.7), responsáveis por mediar entre a família a Deus como sacerdotes (Gn.35.1-7) que lideraram a família como reis de um clã (Gn.18.19). Considerando os dois tempos a que pertencem o livro de Jó (do personagem e de seu autor), o assunto por ele abordado foi importante tanto nos dias dos patriarcas quanto nos dias dos reis e profetas de Israel, assim como permanece fundamental para nossos dias.

Por serem “demasiadamente justos” aos seus próprios olhos, tanto Jó quanto seus três amigos pecam contra Deus sem perceberem. Nos capítulos 3 a 31 ocorrem uma série de diálogos entre os quatro personagens (Jó, Elifaz, Bildade e Zofar) terminando com as palavras de Jó que se justifica diante de todos (Jó.26-31). Jó não se considera merecedor de males e termina por afirmar-se mais justo do que Deus, como se o Senhor estivesse retribuindo injustamente, dando-lhe sofrimentos não merecidos. Por outro lado, os três amigos de Jó, que também se acham justos aos próprios olhos, condenam Jó de algum suposto sério pecado mesmo não tendo nenhuma razão pra isso. Por essa razão, o debate segue sem qualquer progresso, pois a justiça própria dos personagens cegou o entendimento deles.

Diante da ideia vigente de que o homem pudesse merecer ser recompensado por Deus, o livro de Jó demonstra que nem mesmo o mais justo dos homens perante a sociedade pode justificar-se diante do Senhor, por considerar-se justo aos seus próprios olhos. Deus ensina para Jó que todas as bênçãos divinas decorrem de sua graça superabundante, pois todos os homens são pecadores perante seus olhos santos. Portanto, o Senhor corrige a visão que Jó e seus amigos tinham acerca do homem e de sua relação com Deus, apontando, então, para a necessidade da misericórdia e graça divinas.

De modo poético, o livro de Jó trata temas fundamentais da história redentora cooperando para o entendimento da manifestação da misericórdia e graça divinas frente à natureza caída de todo homem (Jó.42.6), demonstrando que não há justo algum diante de Deus (Jó.32.1-3). O livro também lança luz sobre a atuação de Satanás no mundo, como acusador do homem (Jó.1-2), e consola os leitores apresentando a “perseverança dos santos”, ou seja, a garantia divina de que seus filhos não desistirão da caminhada junto ao Senhor, pois não serão abandonados jamais (Jó.1.11; 2.13 // Jó.42.7-17). Além desses temas, o autor aborda a origem divina da sabedoria que não se encontra em ser justo aos próprios olhos nem em julgar o mundo por sua aparência (Jó.28.13-28; 32.8-9). Portanto, o livro cumpre importante papel dentro da revelação da obra redentora do Senhor.

O livro começa contando as virtudes de Jó, “homem íntegro e reto, temente a Deus e que se desviava do mal” (Jó.1.1), que em tudo era abençoado pelo Senhor “de maneira que este homem era o maior de todos os do Oriente” (Jó.1.3). Diante do viver e do bem-estar de Jó, Satanás intenta contra sua vida incitando o Senhor contra ele, a fim de provar que a fidelidade do homem está atrelada a seu bem-estar, de modo que ao perder este também deixaria seu temor a Deus. Ou seja, Satanás deseja provar que os justos só guardam a fidelidade enquanto são abençoados pelo Senhor. Todavia, Jó demonstra que seu amor à justiça não estava condicionado ao bem-estar, fazendo cair por terra a teoria de Satanás, revelando em seu lugar a “perseverança dos santos”.

Apesar de mostrar a fidelidade de Jó, o objetivo do livro não é exaltar a justiça de um homem, mas demonstrar que mesmo o mais justo dos homens de uma geração é um pecador diante de Deus, carente de sua graça e misericórdia. Jó, no entanto, era justo a seus próprios olhos e, portanto, reivindica em todos os seus diálogos com os três amigos: Elifaz, Bildade e Zofar, os benefícios dessa suposta justiça, pois não se via merecedor de qualquer mal. Desse modo, o livro trata da natureza exclusivamente graciosa dos benefícios divinos concedidos aos pecadores, a começar com a justificação. Ou seja, em Jó, “não há justo, nem um sequer” (Rm.3.10), “pois todos pecaram e carecem da glória Deus” (Rm.3.23).

Jó não percebe que sua justiça não provinha da graça divina, mas de uma autoconfiança equivocada. Também, seus três amigos não atentaram que, ao condenarem Jó sem qualquer prova, mostravam confiar numa suposta justiça própria, não sendo, então, diferentes do próprio Jó que se autojustificava. O problema das palavras de Jó e seus três amigos encontra-se no fundamento delas: a procedência da justiça de um homem de Deus. Por isso, eles conseguem dizer coisas certas, mas aplicando-as erroneamente quer ao outro quer a si mesmos.

Para resolver esse problema, ocorre, no capítulo 32, a chegada de um novo personagem: Eliú. Seu nome significa: “Meu Deus é Ele” ou “Ele é meu Deus”. Eliú é mais novo que os demais personagens, fator que contribui para transmitir o ensino de que a sabedoria não decorria da idade (experiência), mas do Senhor (Jó.32.6-9). Portanto, nem Jó nem seus três amigos deveriam se gloriar naquilo que conheciam. A presença de Eliú é fundamental para entendermos o livro, pois Eliú não pretende condenar Jó, como os três amigos, nem favorecer sua justiça própria, como Jó o fazia. Eliú, então, aponta o problema central do livro:

Cessaram aqueles três homens de responder a Jó no tocante ao se ter ele por justo aos seus próprios olhos.  2 Então, se acendeu a ira de Eliú, filho de Baraquel, o buzita, da família de Rão; acendeu-se a sua ira contra Jó, porque este pretendia ser mais justo do que Deus.  3 Também a sua ira se acendeu contra os três amigos, porque, mesmo não achando eles o que responder, condenavam a Jó. (Jó.32.1-3)

Satanás aparece como acusador inicial do livro, afirmando que Jó blasfemaria do Senhor caso fosse angustiado (Jó.1.11; 2.4). Depois disso, Satanás desaparece e não volta a aparecer no livro. Contudo, é interessante observar que o papel de acusador volta a aparecer por boca dos três amigos de Jó que não cansam de acusar Jó de algum suposto pecado, mesmo sem prova alguma. Por isso, semelhante ao apóstolo Pedro (Mt.16.23), os três amigos (Elifaz, Bildade e Zofar) são repreendidos por Deus (Jó.42.7), pois não foram instrumentos do Senhor para ajudar Jó a encontrar a misericórdia e a graça de Deus, mas se portaram como instrumentos malignos para condenar Jó (Jó.32.3).

Eliú não deixa de repreender Jó, bem como os três amigos, todavia sua repreensão não provém de acusações injustas (Jó.32.21), pois ele mesmo sabia ser de igual natureza: “Eis que diante de Deus sou como tu és; também eu sou formado do barro. Por isso, não te inspiro terror, nem será pesada sobre ti a minha mão.” (Jó.33.6-7). Eliú repreende Jó não por algum suposto pecado, mas por se achar “demasiadamente justo”, até mesmo mais justo do que Deus (Jó.33.9-10; 34.5-6; 35.2), e, também, repreende os três amigos por serem pesados a Jó (Jó.33.7), desprezando-o. A seguinte frase de Eliú, deve ser compreendida dentro desse propósito: “Eis que Deus é mui grande; contudo, a ninguém despreza; é grande na força da sua compreensão” (Jó.36.5). Além disso, em todo tempo Eliú glorifica a Deus apontando para sua misericórdia, graça e justiça, de modo a atrair tanto Jó quantos os três amigos a reconhecerem que não procederam corretamente diante do Senhor: “Ao Todo-Poderoso, não o podemos alcançar; ele é grande em poder, porém não perverte o juízo e a plenitude da justiça. Por isso, os homens o temem; ele não olha para os que se julgam sábios.” (Jó.37.23-24).

Após Eliú se calar, Deus fala a Jó “do meio de um redemoinho” (Jó.38.1). Suas palavras iniciais são repreendedoras, pois Jó se queixara, sem entendimento, do Senhor (Jó.38.2). Então, nos capítulos 38 a 41, Deus faz diversas perguntas relacionadas a seus atos criativos, evocando, portanto, o conhecimento de Gênesis 1 e 2, mas indo além daquilo que fora revelado lá. O propósito de Deus é mostrar que Jó e seus três amigos não possuíam entendimento sobre todas as coisas como pensavam, pois eram incapazes de responder a Deus e nem sequer conheciam a si mesmos. Por isso, durante o monólogo de Deus, todos permanecem calados, transmitindo a ideia de que ninguém era capaz de responder às perguntas do Senhor. Jó e seus três amigos tanto eram “demasiadamente justos” como, também, “exageradamente sábios” (Ec.7.16) a seus próprios olhos.

Deus lhes revela o conhecimento de sua grandeza e glória e, por meio deste, Jó é conduzido ao conhecimento de si mesmo. Seu senso de autojustiça desaparece diante da grandeza do Senhor e findas as palavras de Deus, Jó reconhece seu pecado, sua autojustificação, sua ignorância. É diante da luz do Senhor que Jó vê a si mesmo como de fato ele era: um pequeno e limitado pecador dependente da graça e misericórdia de Deus e que havia sido agraciado com tantos benefícios não-merecidos por um longo tempo. Portanto, por pior que fosse seu estado naquele encontro com Deus, sua humilde resposta dada ao Senhor revela a nova vida de Jó:

Então, respondeu Jó ao SENHOR:  2 Bem sei que tudo podes, e nenhum dos teus planos pode ser frustrado.  3 Quem é aquele, como disseste, que sem conhecimento encobre o conselho? Na verdade, falei do que não entendia; coisas maravilhosas demais para mim, coisas que eu não conhecia.  4 Escuta-me, pois, havias dito, e eu falarei; eu te perguntarei, e tu me ensinarás.  5 Eu te conhecia só de ouvir, mas agora os meus olhos te veem.  6 Por isso, me abomino e me arrependo no pó e na cinza. (Jó.42.1-6)

O conhecimento de Deus faz de Jó um novo homem que não mais confia em sua “sabedoria” nem muito menos em sua “justiça própria”, mas que se compreende como um pecador indigno de qualquer benefício proveniente de Deus e que, portanto, precisava da misericórdia e da graça do Senhor. Portanto, mesmo que não houvessem mais palavras no livro, o ultimo estado de Jó já seria melhor do que o primeiro, pois sua relação com Deus não era mais a mesma (Jó.42.5); seu coração não era mais o mesmo. Desse modo, a aquisição da nova vida superava em muito o valor de todas as coisas que Jó havia perdido.

O ponto culminante do livro é a conversão de Jó que reconhece sua miséria perante a glória de Deus. Mas, o Senhor ainda revela sua misericórdia e graça nos últimos versículos do livro:

Tendo o SENHOR falado estas palavras a Jó, o SENHOR disse também a Elifaz, o temanita: A minha ira se acendeu contra ti e contra os teus dois amigos; porque não dissestes de mim o que era reto, como o meu servo Jó.  8 Tomai, pois, sete novilhos e sete carneiros, e ide ao meu servo Jó, e oferecei holocaustos por vós. O meu servo Jó orará por vós; porque dele aceitarei a intercessão, para que eu não vos trate segundo a vossa loucura; porque vós não dissestes de mim o que era reto, como o meu servo Jó.  9 Então, foram Elifaz, o temanita, e Bildade, o suíta, e Zofar, o naamatita, e fizeram como o SENHOR lhes ordenara; e o SENHOR aceitou a oração de Jó. (Jó.42.7-9)

Antes que Deus manifeste sua grandiosa misericórdia, a ira do Senhor se acende contra os três amigos de Jó, pois não reconheceram seus pecados; já que, à semelhança dele, também se achavam justos aos próprios olhos, razão para o condenarem sem qualquer piedade (Jó.32.3). Todavia, diferente da postura dos três amigos que condenaram Jó sem compaixão, Deus revela sua misericórdia por meio do sacrifício que seria oferecido junto à intercessão de Jó que deveria, portanto, perdoá-los. A misericórdia do Senhor é derramada sobre os três amigos por meio do derramar do sangue do cordeiro partilhado em sincera confissão. Nisto, eles deveriam se gloriar: em ser Deus misericordioso para com aqueles que se achegam a Ele, pois dispõe de um cordeiro perfeito para os substituir (representado nas 7 novilhas e 7 carneiros).

A bondade do Senhor não finda com suas misericórdias, ou seja, em não dar a merecida punição para os três amigos. Tendo Jó orado por seus amigos, Deus manifestou, ainda, sua graça sobre ele, abençoando-o sobre medida, de modo que “abençoou o Senhor o último estado de Jó mais do que o primeiro” (Jó.42.12). Deus revela que sua graça superabunda onde abundou o pecado, manifestando-se bondoso para aquele que confessara seus pecados e reconhecera sua dependência do Senhor:

Mudou o SENHOR a sorte de Jó, quando este orava pelos seus amigos; e o SENHOR deu-lhe o dobro de tudo o que antes possuíra.  11 Então, vieram a ele todos os seus irmãos, e todas as suas irmãs, e todos quantos dantes o conheceram, e comeram com ele em sua casa, e se condoeram dele, e o consolaram de todo o mal que o SENHOR lhe havia enviado; cada um lhe deu dinheiro e um anel de ouro.  12 Assim, abençoou o SENHOR o último estado de Jó mais do que o primeiro (Jó.42.10-12)

O livro mostra o quanto Deus se agrada daqueles que reconhecem a natureza pecadora e buscam na graça divina a justiça necessária para adentrarem à presença do Senhor, conforme disse Jesus: “Digo-vos que, assim, haverá maior júbilo no céu por um pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento.” (Lc.15.7). Em contrapartida, nem mesmo o mais “justo” dos homens pode gloriar-se diante do Senhor ou exigir dEle qualquer benefício que seja, principalmente no que diz respeito à salvação.

O livro de Jó nos revela quão danosa é a autojustificação tanto para o sujeito quanto para aqueles que estão ao seu redor. Fazer aquilo que é justo não é suficiente para satisfazer a justiça do Senhor, mesmo que atraia elogios da sociedade. Portanto, a autojustificação engana o coração “desesperadamente corrupto” (Jr.17.9) do pecador, fazendo-o achar-se justo aos olhos de Deus, privando o homem da graciosa justificação proveniente de Cristo. Além disso, aquele que é justo a seus próprios olhos não avalia que sua natureza caída, tão carente da misericórdia e graça do Senhor, é semelhante à natureza caída de todos os demais homens. Por essa razão, o justo a seus próprios olhos despreza aqueles que estão a seu redor, incapaz de ver que possui a mesma natureza do outro.

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