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segunda-feira, 19 de setembro de 2016

A redenção da arte

Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus” (1Co.10.31)

A Europa possui marcas do cristianismo espalhadas por todos os lugares. As construções, pinturas, utensílios domésticos, culinária, móveis, leis e modo como os trabalhos são executados estão impregnados de arte. Não é difícil, mesmo para quem olha de relance, observar que há um toque artístico em tudo, agradando até os olhares mais críticos. Há beleza nas paredes, nas casas, nas ruas, nas fazendas, pois todas essas obras foram talhadas por mãos de quem desejava transmitir beleza, refletindo nossa imagem e semelhança de Deus que tudo fez com perfeição.

Portanto, a arte fazia parte do cotidiano cristão, não em museus, mas nas casas das pessoas, nas oficinas, nas lojas, no campo, como manifestação estética, desenvolvida por pessoas capacitadas para expressar visualmente o “belo” de forma clara, excelente e objetiva, relacionada com o cotidiano da sociedade, a fim de que o homem apreciasse a beleza das obras divinas presentes no ser humano, na sociedade e na criação em geral.

Com o fim do reinado cristão no mundo (término da Idade Média), o homem rejeitou pouco a pouco toda a cosmovisão cristã, mudando o referente de sua vida para o próprio ser humano. As grandes contribuições do cristianismo foram abandonadas com o fim de se retornar ao paganismo clássico Greco-Romano. Com esse retorno, a arte foi expulsa da vida diária das pessoas e transformada numa religião de iluminados e privilegiados, com o fim de ser apreciada em templos chamados de Museus; “definida como uma atividade que manifesta a estética visual, desenvolvida por artistas que se baseiam em suas próprias emoções”. Desta forma, a arte também deixou de ser objetiva e tornou-se uma expressão do subjetivismo humano, confusa e sem beleza.

A mudança de referente ocorreu lentamente a partir do século XIV, com a insatisfação pública contra a igreja da época, que de fato precisava de uma grande reforma. Iniciou-se um processo de libertação do “jugo” da igreja e estabelecimento da autonomia do homem, a fim de alcançar plena liberdade para ser, pensar e fazer o que quiser. O espírito humanista se espalhou na Europa, ganhando força aos poucos, resgatando o paganismo ao tornar o homem “a medida de todas as coisas”, expressão do sofista Protágoras (487 – 420 a.C.) expressa no desenho denominado “Homem Vitruviano” (1490 d.C.) de Leonardo da Vinci. Conforme Rookmaaker, “no iluminismo (século 18, a Idade da Razão), o movimento ganhou força e avançou. A arte tornou-se “belas artes” e as artes manuais foram postas de lado, como algo inferior.[1]” Desta forma, a arte começou sua jornada rumo ao subjetivismo (expressão de sentimentos do artista), separada das demais ciências, e o artista foi desassociado da vida objetiva cotidiana.

Com a arte associada à genialidade somente, desassociada da vida cotidiana, tendo como propósito expressar a subjetividade de alguém, os artistas perderam valor para o dia a dia da sociedade (associados apenas ao lazer e contemplação) e suas obras tornaram-se confusas, incapazes de conduzir o homem à importância da arte realizada com técnica, dedicação e excelência para o dia a dia das pessoas, a fim de atrair a apreciação das pessoas para um bom trabalho adornado de beleza. Hoje, dificilmente um trabalhador comum se considerará um artista no desempenho de seu serviço, pois a arte foi banida da vida objetiva.

Criaram-se dois tipos de artistas: o genial que costuma alcançar as classes mais prósperas que, praticamente, precisam de um curso para entender a subjetividade de seus artistas; e o artista popular que faz da arte uma meio, normalmente relacionado ao turismo e comércio, com o objetivo de conseguir dinheiro. Desta forma, a arte perdeu sua beleza objetiva e universal, servindo apenas de instrumento para a avareza daqueles que fazem dela um meio de enriquecer. A arte, portanto, deixou de ter fim na própria arte para glorificar a Deus com a excelência do que é feito.

Em 2013, estive no Museu Oscar Niemeyer (Museu do Olho), em Curitiba. Dentre as “obras de artes” presentes, deparei-me com “garranchos”, frutos do subjetivismo de seus “artistas”. Para compreendê-las, o público precisa fazer um “curso especial” ou “se tornar adepto a algum tipo de religião exotérica que transporte o homem para o mais profundo subjetivismo”. Tais “garranchos” não eram bonitos nem claros, e quem os admirasse deveria ser comparado aos súditos da fábula “A roupa nova do rei” (Hans Christian, 1837). Nesse simples exemplo, note-se que a arte perdeu, completamente, seu valor para a cultura, pois tanto encontra-se enclausurada em museu, longe do cotidiano das pessoas, quanto está totalmente desassociada à objetividade da vida, tornando-se uma mera expressão do subjetivismo de cada “artista” que tenta expressar ao público seus sentimentos e impressões tão confusos quanto suas obras.

E como o cristianismo compreende a arte? No cristianismo, Deus é o referente da arte, o referente da beleza. Sabemos o que é o amor e somos capazes de amar porque Deus é amor; sabemos o que é justiça e somos capazes de ser justos porque Deus é justo; sabemos o que é bondade e somos capazes de ser bons porque Deus é bom; sabemos o que é longanimidade e somos capazes de ser longânimes porque Deus é longânime. Desta forma, tudo o que é santo e belo tem em Deus sua referencia, e somos capazes de praticá-los porque Deus nos fez à sua imagem e semelhança (Gn.1.26). Da mesma forma, a beleza expressa pela arte só é possível porque Deus é belo (Sl.27.4; 29.2; 96.9), faz tudo com beleza (Sl.104.24) e nos fez capazes de produzir artisticamente (Gn.4.20-22).

Por conseguinte, a criação foi produzida com beleza de forma a expressar a sabedoria, poder e glória de Deus (Sl.148; Pv.3.19; Jr.32.18-19). Desta forma, o universo material e imaterial, visível e invisível é objetivo, ou seja, real, concreto, definido, conhecível e compreensível. Sendo assim, a arte divina é objetiva e envolve a realidade física e espiritual como um todo. Por isso, a única forma de conceituar “belo” é tendo um referente objetivo e absoluto, e o ser humano, apesar de fazer parte do universo objetivo criado por Deus, é um ser cheio de subjetivismo e imperfeições, de forma que o homem não pode ser referencial de “belo”. O que é o “belo”, então? Belo é tudo que reflete a beleza de Deus, seus atributos, suas obras.

Ao retirar Deus do centro da vida pessoal e social, tornando o homem o referencial para todas as esferas da vida privadas e públicas (política, ciência, economia e arte como nova categoria), então a arte tornou-se subjetiva tendo como propósito expressar a subjetividade de seus artistas, ou seja, suas impressões e sentimentos pessoais que podem ou não estar em acordo com a realidade. Contudo, o subjetivismo não conduz o ser humano para nada além de si mesmo, portanto, não pode ensinar nada além de si mesmo. Assim como o mundo considerou a religião uma esfera subjetiva (em oposição à ciência como esfera objetiva) a arte tornou-se uma espécie de “religião irreligiosa” (Rookmaaker).

A cultura pós-moderna é completamente subjetiva, pois faz leitura do mundo a partir do subjetivismo do ser humano. A cosmovisão subjetiva do mundo não é capaz de oferecer conceitos objetivos sobre a realidade, pois não passa de uma leitura fugaz, embaçada e imperfeita a partir das sensações humanas. Com a cultura relativizada, o conceito de “belo” também foi relativizado. Por isso, garranchos, imoralidade e literatura inapropriada passaram a ser apreciados por muitos como se fossem arte. O problema está na mudança de referente que deixou de ser Deus, santo, imutável, perfeito, justo e bom, e passou a ser o homem pecador, passageiro, imperfeito, injusto e mau. O “belo”, então, tornou-se aquilo que agrada a subjetividade do homem, mudando de pessoa para pessoa, produzido à imagem e semelhança do homem pecador.

Se a arte humanista não produz o “belo”, o que ela faz, então? A arte pós-moderna transmite apenas o subjetivismo corrompido do ser humano. Há beleza técnica foi substituída por inspiração; há beleza visual foi substituída pela abstração; há beleza racional foi substituída pela emoção; há beleza cotidiana foi substituída por amostras. Desta forma, a arte está desaparecendo das cidades. Muitas das “obras” de nossos dias não podem ser chamadas de arte, pois não há beleza nelas em nenhum aspecto (técnica, excelência, razão, propósito, clareza). O que o mundo está chamando de arte pós-moderna é apenas um conjunto de “garranchos” sem sentido, sem razão e sem propósito, feito por quem é incapaz de fazer algo “belo”, algo que perpetue-se na história humana, porque o referente para toda produção artística foi retirado da sociedade.

Desta forma, para que a arte seja restaurada é preciso desconstruir o subjetivismo de nossos dias. Frases comuns como: “gosto não se discute”, veiculam o subjetivismo pós-moderno, desprovido de referencial absoluto. Quando a realidade é lida a partir do subjetivismo humano, torna-se confusa para o homem e impossível de ser conhecida. Sem um referente objetivo e absoluto não haveria “belo”, pois a beleza não poderia ser definida objetivamente. E sem arte, o pedreiro trabalha de qualquer jeito com o único fim de ganhar seu dinheiro. Por isso, não deixa marcas que causem admiração da sociedade. Sem arte, o serviço é mal oferecido, a comida não tem cor, os móveis são apenas objetos necessários e os artistas populares tornam-se utilitaristas, dentro de um mercado voltado para o turismo.

A arte deve ser redimida em Cristo! A arte glorifica a Deus não apenas porque expressa bons sentimentos de seus artistas, mas por ser uma expressão objetiva do “belo”, fazendo parte do dia a dia da sociedade, presente em todo trabalho manual feito com técnica e excelência para agradar as pessoas, mostrando amor e dedicação, engrandecendo a Deus com um serviço bem feito. Encontramos esta arte em diversas profissões descritas nas Escrituras Sagradas (Ex.28:3,11; 30:25; 31.3,6; 35.26,31,35; 36.1; 1Rs.7:2; 1Cr.28:21; Dan 1:17; At.17:29; 18:3; Ap.18:22). Nesses textos, Deus é glorificado na excelência do que é feito, pois Ele é a fonte da beleza e da capacidade para produzir com arte, a fim de que a glória de Deus seja expressa nas obras humanas. A arte humana é uma imitação do poder criativo do Criador, e tudo que fazemos como imitação de Deus glorifica Deus que nos fez para sermos seus imitadores (Mt.5.48; Lc.6.36; 1Co.11.1; ). O trabalho desenvolvido com excelência, com arte, é reflexo da grandeza das obras de Deus, e, por isso, deixa marcas eternas na sociedade, glorificando a Deus.

Além disso, um trabalho artístico agrada ao próximo, feito a imagem de Deus. O homem possui a noção de beleza arraigada em seu coração (Rm.2.15), por isso tanto sabe apreciar o que é verdadeiramente belo quanto é capaz de produzir belas obras. O trabalho desenvolvido para servir ao próximo deve ser preparado com arte, a fim de que agrade àquele que está sendo servido. Desta forma, o trabalho feito com arte manifesta prazer em servir ao outro com excelência e amor. Para isso, o cristão deve trazer a arte para seu trabalho cotidiano, a fim de que haja beleza em suas obras, oferecendo o melhor para o próximo quer seja uma comida, uma casa, um móvel, um utensílio, uma pintura, uma escultura ou outra coisa qualquer. Um trabalho feito com arte, marca a história humana e reflete a beleza da glória de Deus, pois tudo que é bom provém dEle.

Cristo convoca todo cristão a produzir com arte em seu dia a dia, pois “precisamos muito de uma arte que seja saudável e boa, e que as pessoas entendam. Se os cristãos fizerem esse tipo de trabalho, talvez não alcancem grande fama, mas muitos amarão suas obras. E muitos conseguirão ganhar a vida assim. Portanto, não há razão para autopiedade. Há uma contribuição a ser feita em uma época que é, de maneira geral, explicitamente anticristã. [2]




[1] ROOKMAAKER H. R. A arte não precisa de justificativa. Viçosa:Ultimato, 2010, p.14.
[2] Ibid, p.10.

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