“não como escravo; antes, muito acima de
escravo, como irmão caríssimo, especialmente de mim e, com maior razão, de ti,
quer na carne, quer no Senhor.” (Fm.16)
Em 13 de maio de 1888, num domingo, a princesa Isabel sancionou a lei nº
3.353, concedendo liberdade aos escravos no Brasil. Neste dia, ocorreu,
oficialmente, a abolição da escravatura que fora chamada de lei Áurea. Uma nova
etapa iniciava-se no Brasil, legalmente e aparentemente melhor. O Brasil deixa
de ter uma característica político-econômica comum ao primeiro século: o uso da
mão de obra escrava e o tratamento opressor com um grupo social considerado
inferior (escravos), tratado como mero objeto de posse de seus donos. No
entanto, sabemos que a abolição não acabou com o sistema opressor político-econômico,
marcado pelo pecado, que tem governado o país.
Ainda que não haja mais escravos, sentido mais literal da palavra, no
sistema político-econômico do país, o relacionamento chefe-funcionário carece
de princípios bíblicos, a fim de ser saudável para ambas as partes, mantendo a
dignidade de ambos e a produtividade necessária para cada um. Paulo já havia
dado instruções por meio da carta aos Efésios quanto à forma como os chefes
crentes devem tratar seus funcionários (Ef.6.9), e quanto ao modo como os
funcionários cristãos devem se submeter às autoridades tanto crentes quanto não
cristãs (Ef.6.5-8). Em Filemom, Paulo demonstra os efeitos restauradores da
conversão, pois aquele que era considerado inferior, e “inútil”, por ser
escravo (Fm.11) é tratado com a dignidade de um irmão “caríssimo” (Fm.16), útil
para a obra missionária (Fm.13). Por meio de Cristo, a igualdade ontológica é restaurada, e não somente Filemom, mas, também, a igreja que se reunia
na casa de Arquipo deveriam saber como proceder diante de tais circunstâncias.
Além disso, Paulo ensina que o propósito de levar o evangelho ao mundo tem
primazia sobre os interesses pessoais.
O apóstolo começa a carta fazendo menção de sua prisão. Em vez de fazer
uso do termo (escravo) como faz costumeiramente em suas cartas (Rm.1.1; 2
Co.4.5; Gl.1.10; Fp.1.1; Tt.1.1), ele o substitui por prisioneiro. Também, faz referência
a suas algemas nos versículos 10 e 13 para referir-se à sua prisão. É
interessante a substituição dos termos, pois Paulo está se dirigindo para um
dono de escravos, acerca de um escravo fugitivo sobre o qual o apóstolo deseja
que seja liberto para servir ao Senhor de todos, Jesus. Paulo não é um escravo
nesta carta, provavelmente para mostrar sua liberdade alcançada em Cristo. Paulo é um
prisioneiro que está sofrendo por causa dos homens que o aprisionaram, tentando
impedir o avanço do evangelho do Senhor Jesus.
O apóstolo desejava restaurar pacificamente a relação entre o escravo e
seu senhor, conduzindo para um relacionamento fraterno e livre, por meio de
Cristo. Quanto a isso, Paulo tinha convicção de que seria bem sucedido em sua
empreitada para com Filemom (v.21). Sua iniciativa não era tão inovadora quanto
parece, pois o Antigo Testamento já possuía preceitos sobre o assunto. A Lei
ordenava que dentro da nação de Israel, um israelita não poderia escravizar seu
irmão, somente os estrangeiros (Lv.25.39; Dt.23.15; 1 Rs.9.22). A conversão de
Onésimo mudou os parâmetros de sua relação com Filemom, e Paulo desejava que a
nova condição do escravo fosse considerada por Filemom, a fim de que o
libertasse como irmão amado em Cristo.
Paulo inicia sua intercessão por Onésimo no versículo 8, prefaciando a
solicitação com a menção de sua autoridade, que deve ser compreendida como
referência ao ofício apostólico e, também, ao fato de que Filemom “devia até a si mesmo” (v.19). Contudo, a
autoridade do apóstolo Paulo não era a única razão pela qual ele desejava que
fosse obedecido. Melhor era que Filemom tivesse o prazer de agir em plena
consciência de seu papel como nova criatura dentro do Reino de Deus, obedecendo
com agrado e não por constrangimento, voluntariamente e não por força. Melhor
que a obrigação da obediência, seria o amor que Filemom deveria demonstrar por
aquele escravo transformado em servo de Jesus.
A fuga de Onésimo não foi obra do acaso, nem seu encontro com Paulo uma
simples coincidência. Paulo interpreta a fuga de Onésimo como propósito de Deus
(v.15), a fim de que o escravo problemático de Filemom retornasse como servo
fiel e útil, irmão amado de Paulo, e, consequentemente, de Filemom, também. Conceitos
comuns à época são quebrados pelo apóstolo ao chamar de irmão um escravo, último
na pirâmide social, considerado inferior às demais pessoas da sociedade,
tornando-o, assim, igual a si mesmo. Paulo era um homem privilegiado
socialmente, pois possuía o direito de cidadania romana, por nascimento; judeu
de família tradicional, que se destacara em seus estudos na famosa escola de
Gamaliel; além de ser apóstolo do Senhor Jesus (At.22.25-28; Fp.3.4,5).
Contudo, sua posição social não o tornava melhor que aquele escravo fujão. Em
Cristo, Paulo entende que todos são irmãos, iguais perante Deus, ainda que
diferentes em suas funções dentro da igreja.
O apóstolo aplica a lei prescrita por Moisés em Levítico 25.39: “Também se teu irmão empobrecer, estando ele
contigo, e vender-se a ti, não o farás servir como escravo.”, ao novo
relacionamento entre Filemom e Onésimo. A conversão de Onésimo o tornou irmão
de Filemom, portanto este deveria olhar para Onésimo como igual, a fim de
amá-lo como Cristo o amou (Jo.13.34-35). A Lei previa o tratamento igualitário
para todos os Israelitas, filhos de Deus, irmãos pela fé no mesmo Deus. Tal
convicção de Paulo perante a Lei é tão clara, que o apóstolo devolve Onésimo a
Filemom entendendo que não está ferindo o mandamento prescrito em Deuteronômio
23.15: “Não entregarás ao seu senhor o
escravo que, tendo fugido dele, se acolher a ti.”
Onésimo não estava voltando como escravo, mas como irmão. Filemom deveria
recebê-lo como irmão em Cristo, não como um produto comprado para servi-lo
durante seus dias. De forma semelhante, Onésimo deveria ter satisfação em
servir a Filemom não por ser escravo, obrigado a cumprir suas obrigações com medo
da punição. Onésimo deveria estar à disposição de Filemom por amor, por
obediência ao Senhor de ambos, instruído pela Palavra e tendo recebido o modelo
do próprio Cristo: “Ora, se eu, sendo o
Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos
outros. Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós
também.” (Jo.13.14,15).
Filemom deveria ser convencido de que a conversão de Onésimo mudara o
relacionamento entre eles. Agora eram irmãos na fé, não mais estranhos quanto a
aliança em Cristo. O
muro que separava os dois fora derribado, para que formassem um só povo: “Porque ele é a nossa paz, o qual de ambos
fez um; e, tendo derribado a parede da separação que estava no meio, a
inimizade,” (Ef.2.14). Por esta razão, também, o apóstolo, pai na fé de
ambos, sentia-se à vontade para enviar Onésimo de volta para Filemom. Paulo
estava proporcionando a comunhão, em Cristo, entre Filemom e Onésimo.
Paulo estava bastante preocupado com o que ocorreria no encontro entre seus
filhos na fé, Filemom e Onésimo. A fuga de Onésimo poderia acarretar em
prejuízo espiritual para Filemom: ira, planos pecaminosos, condutas não coerentes
com a Palavra de Deus, sentimentos não movidos pelo Espírito Santo. Pecados
poderiam ocupar a vida daquele senhor de escravos. Paulo estava preocupado com
Filemom e, também, com a igreja que estava ciente de toda a situação,
testemunhando, até aquele momento, a boa conduta daquele homem de Deus:
Filemom. Diferente da preocupação com Filemom, Paulo estava certo de que Onésimo
estava convencido de seu erro e, por isso, concordara com a sugestão de Paulo para
que voltasse para Filemom. Infelizmente, Onésimo não possuía nada para
recompensar Filemom por qualquer estrago que pudesse ter causado, então Paulo intervém,
apelando para o perdão de Filemom (v.18 e 19).
A carta está repleta de apelos de Paulo: O testemunho de Filemom perante
a igreja (v.5), a autoridade apostólica (v.8), a piedade de Filemom (v.6-7), o
agir de Deus providenciando a conversão de Onésimo (v.15,16), o relacionamento
entre ele, Paulo e Filemom (v.17), o bom testemunho de Filemom perante Paulo
(v.21), a visita do apóstolo à Filemom (v.22), a presença de muitas testemunhas
(v.2,23,24). Este número de apelos visa alcançar o favor do coração de Filemom.
Paulo faz algo semelhante ao que fez Jacó quando voltava para a casa de seu
pai, tendo recebido a informação que Esaú estava vindo ao seu encontro
(Gn.32.3-21). Jacó distribui seus bens em partes para presentear o irmão, uma
parte à frente da outra, a fim de amolecer o coração de Esaú. Cada encontro com
os presentes seria uma tentativa de quebrantar o coração do irmão, que na mente
de Jacó estaria endurecido. Paulo usa de mesma estratégia para quebrantar o
coração de Filemom. Cada apelo era como um presente que quebrantaria pouco a
pouco um coração possivelmente marcado pela raiva. Talvez Paulo soubesse que
Filemom havia ficado bastante desgostoso com a fuga de Onésimo e, por isso,
tomou tal atitude. Ou, mesmo que não soubesse, o apóstolo estava se precavendo,
imaginando a possibilidade de Onésimo encontrar Filemom com o coração
endurecido.
O novo mandamento dado por Cristo estava em discursão. Filemom
sabia que um cristão devia ao outro o amor com que Cristo amou a igreja. Cristo
havia ensinado aos apóstolos: “Novo
mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros; assim como eu vos amei, que
também vos ameis uns aos outros.” (Jo.13.34). O amor que Filemom devia a
Onésimo não era mais o amor ao próximo somente: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mt.22.39), pois Onésimo não
era mais um simples próximo de Filemom. Agora, eles eram irmãos em Cristo, e o
amor com que deveriam se amar era especial, pois era peculiar à igreja de
Cristo: “Sede, pois, imitadores de Deus,
como filhos amados; e andai em amor, como também Cristo nos amou e se entregou
a si mesmo por nós, como oferta e sacrifício a Deus, em aroma suave.”
(Ef.5.1,2).
Este novo relacionamento
entre eles, por causa de Cristo, também exigia o acerto de contas entre Filemom
e Onésimo. Onésimo deveria cumprir a justiça e pagar a Filemom tudo quanto
estivesse devendo. No entanto, como já mencionamos acima, Onésimo não tinha
condições de arcar com qualquer prejuízo que tivesse causado a Filemom.
Restava, então, que Filemom colocasse em prática o amor sacrificial com que
Cristo nos amou, perdoando Onésimo de todas as suas dívidas. Paulo faz menção
de alguma dívida que Filemom tinha para com o apóstolo: “para não te alegar que também tu me deves a ti mesmo” (Fm.19). Esta
dívida pode ser a insistente atuação do apóstolo em pregar o evangelho para
Filemom, pelo qual houve sua conversão e, por isso, passou das trevas para o
Reino de Deus. Ou pode ser alguma ajuda crucial que Paulo ofereceu a Filemom,
livrando-o de dificuldades ou mesmo da morte. Paulo não cobrou a dívida que
Filemom tinha para com ele, perdoando-o. Desta mesma forma, Filemom deveria
proceder com Onésimo. Filemom teve a oportunidade de aplicar o amor Bíblico ao
receber Onésimo de volta, não mais como escravo comprado com dinheiro, mas como
um irmão caríssimo, pois foi comprado pelo precioso sangue do Senhor Jesus.
A partir de Filemom e Onésimo, a igreja aprendeu como lidar com situações
reais dentro do contexto escravista e da esfera trabalhista em geral, aplicando
o amor cristão aos relacionamentos socioeconômicos. Havia um grande número de
escravos dentro do império romano, e muitos deles se converteram ao
cristianismo. O tratamento amoroso dos cristãos aos escravos trouxe grandes
implicações para a sociedade, pois despertou a reflexão sobre o direito humano à liberdade, pela qual muitas gerações lutaram posteriormente. O cristianismo se
tornou o grande propagador da liberdade, por meio da valorização do
indivíduo reconhecido como imagem de Deus.
Em Filemom, Paulo nos ensina como deve ser o tratamento do chefe para com
seu funcionário e, também, o tratamento do funcionário para com seu chefe.
Filemom deveria ver em Onésimo a imagem de Cristo, que estava sendo restaurada
nele pela Palavra de Deus e pelo Espírito do Senhor (2Co.3.18). Cristo havia
comprado aquele escravo por meio de seu precioso sangue. Por esta razão, ele
era caríssimo. De forma semelhante, aqueles que possuem funcionários cristãos
devem trata-los como irmãos, pelos quais Cristo morreu. Isto implica em
tratamento amoroso, respeitoso, valorizando o ser. Não deve haver exploração
nem financeira nem físico-mental, pois não há diferença ontológica entre
funcionário e chefe, apenas diferença funcional. O chefe deve ser benção para
seu funcionário, o auxiliando para que cumpra bem sua missão de glorificar a
Deus com a vida e pela pregação da Palavra. O cristão não deve fazer o irmão na
fé de escravo nem usá-lo para se beneficiar.
Mas, não apenas Filemom deveria cumprir seu papel cristão como chefe.
Onésimo, também, deveria cumprir suas obrigações com amor e respeito. Ele
deveria pagar o que devia, deveria obedecê-lo e servi-lo bem. O funcionário
cristão deve trabalhar com amor, fazendo sempre o melhor para os que receberão seu
serviço. Desta forma, o trabalhador cristão estará testemunhando a restauração
do ser e da sociedade por meio da conversão a Cristo, difundindo os valores do
Reino dos céus. O trabalhador cristão não deve ser ganancioso, pois a ganância
é idolatria, amor ao dinheiro. Portanto, o cristão deve trabalhar usando suas capacidades
para promover o bem-estar dos outros. Onésimo estava disposto a trabalhar para
o apóstolo Paulo, a fim de ajuda-lo no desenvolvimento da obra missionária. De
forma semelhante, o trabalhador cristão deve ser benção para o chefe, clientes,
colegas de trabalho etc., a fim de proporcionar um ambiente harmônico adornado
com “justiça, e paz, e alegria no
Espírito Santo” (Rm.14.17).
Nenhum comentário:
Postar um comentário