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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Paulo e as epístolas pastorais

Escrevo-te estas coisas, esperando ir ver-te em breve; para que, se eu tardar, fiques ciente de como se deve proceder na casa de Deus, que é a igreja do Deus vivo, coluna e baluarte da verdade.” (1Tm.3.14-15)

As Epístolas Pastorais são, de todas as demais epístolas paulinas, as mais tardias. Durante muitos séculos, essas epístolas foram reconhecidas pela igreja cristã como as últimas epístolas de Paulo, escritas antes de sua morte. Contudo, a partir do século dezenove, críticos têm levantado diversas questões que supostamente provariam que as epístolas pastorais foram escritas por outro autor se passando por Paulo, provavelmente no segundo século.
As principais dificuldades apontadas pelos críticos acerca da autoria das Epístolas Pastorais são: 1) linguagem e o estilo diferentes das demais cartas paulinas; 2) aparente discrepância nas informações históricas sobre as viagens de Paulo; 3) diferença no foco teológico do autor das epístolas pastorais; 3) ausência das epístolas em alguns manuscritos antigos.

1) Linguagem e o estilo diferentes das demais cartas paulinas
Conforme os críticos, as epístolas pastorais possuem em grande medida um vocabulário novo (32% em 1Timóteo, 27% em 2Timóteo e Tito) que as torna semelhantes entre si e distantes das outras epístolas paulinas. Apesar das três Epístolas Pastorais realmente possuírem um vocabulário novo, significativo, não pode ser desconsiderado que na carta aos Romanos, Paulo também fez uso de um vocabulário bastante peculiar (26% das Palavras). Portanto, um quarto do vocabulário de Romanos também é novo em relação as outras nove cartas. Contudo, do vocabulário novo usado nas Epístolas Pastorais somente 9 palavras se encontram somente nas três Epístolas. Ou seja, poucas palavras são realmente exclusivas às três Epístolas pastorais.
Além disso, pessoas mudam vocabulário com o passar do tempo, de forma que um idoso não fala igual a um jovem. Também se muda o estilo retórico de acordo com o público a que se destina. Não se fala/escreve para uma igreja da mesma forma que se fala/escreve para companheiros de ministério. Destinatário e propósito possuem papel bem determinante no conteúdo, estilo e vocabulário a ser usado pelo autor.
Outra informação destacada pelos críticos é a presença maior de helenismo e latinismo (expressões derivadas do latim) do que nas outras epístolas. Esse fenômeno não está ausente nas demais epístolas paulinas. Mas, também vale salientar que tendo Paulo escrito em seus últimos anos, bastante relacionado com o mundo Greco-Romano, é de se esperar uma maior influência da linguagem própria do ambiente.
Outro argumento vocabular diz respeito ao uso mais objetivo de alguns termos que aparecem com significado subjetivo nas outras dez epístolas. Essa é outra falácia, pois termos como fé são usados tanto de forma objetiva quanto subjetiva em todas as 13 epístolas paulinas. Também, deve-se levar em consideração o fato de que o destinatário e propósito de cada epístola pastoral são diferentes. Além disso, o sentido das palavras não muda somente nas epístolas pastorais, mas dentro das dez outras epístolas há palavras que mudam o sentido de acordo com o contexto.

2) Aparente discrepância nas informações históricas sobre as viagens de Paulo
Este argumento é baseado na suposição de que Paulo tenha sido morto após o final do livro de Atos dos Apóstolos, tendo em vista o final supostamente abrupto do livro que teria sido causado pela morte do apóstolo a qual Lucas não quis registrar. Com base nesta suposição, as informações contidas nas Epístolas Pastorais sobre outras viagens de Paulo estariam erradas. Contudo, o fato de Lucas não ter registrado a libertação de Paulo, esperada nas cartas da prisão, não é argumento que prove que tal liberdade não tenha acontecido. O fim de Atos transmite mais a expectativa da libertação de Paulo do que sua morte, o que está de acordo com a expectativa que o próprio Paulo tinha (Fp.1.25). Festo e Agripa afirmam a inocência de Paulo e possibilidade de libertá-lo. Atos também registra a prisão domiciliar do apóstolo, sob guarda de um soldado, onde desfrutava de certa liberdade para ir e vir, não se assemelhando a dias que precedem uma execução. Além disso, Clemente Romano aos Coríntios, o Cânon Muratori e Eusébio de Cesareia confirmam a libertação de Paulo e sua viagem para o ocidente, como Paulo intencionava se dirigir para a Espanha (Rm.15.23-24).

3) Diferença no foco teológico do autor das epístolas pastorais
Quanto à teologia, as críticas levantadas são: a teologia não é de Paulo, pois a cruz não é o centro; as pastorais atacam o gnosticismo do 2º século, especialmente o marcionismo; há marcas de uma organização eclesiástica mais complexa nas Epístolas Pastorais.
Primeiramente, os destinatários das epístolas pastorais são companheiros na obra do Senhor, portanto Paulo não precisava escrever sobre os fundamentos da fé para eles, ainda que a cruz de Cristo continue sendo a base de toda a pregação de Paulo (1Tm.1.15). Em segundo lugar ainda que o gnosticismo tenha se organizado melhor no 2º século, é possível se encontrar um protognosticismo em boa parte do Novo Testamento. Também a eclesiologia do Novo Testamento, pode ser encontrada em Atos dos Apóstolos já bem amadurecida, quando Paulo chama os presbíteros de Éfeso (At.20.17-38). Além disso, ao tratar dos dons espirituais e sua distribuição entre os membros da igreja, conforme aparecem em algumas cartas, o apóstolo não se opõe a organização da igreja (1Co.14.40), presente desde cedo (At.11.28; Fp.1.1).
Também é levantada a hipótese de que as três cartas são um recurso literário, utilizado para dar ênfase à mesma comunicação feita de forma tríplice, para ensinar a liderança eclesiástica da época do suposto autor disfarçado de apóstolo. Contudo, o conteúdo das três não é igual, nem há qualquer prova de que tenham sido escritas ao mesmo tempo.
As mesmas características de Paulo são encontradas nas cartas pastorais, tanto em relação ao seu caráter (afeto, preocupação, gratidão, anseio por ver seus destinatários, aptidão no aconselhamento) como também em relação ao seu estilo (afirmações por meio de negações, enumeração de virtudes e vícios, uso de “jogo de palavras”, uso de palavras compostas, uso de aposições, interrupções com doxologias). Desta forma, há muito mais indícios que apontam para a autêntica autoria de Paulo do que peculiaridades que possam ser usadas para apontar para outro suposto autor.

4) Ausência das epístolas em alguns manuscritos antigos.
Irineu de Lião (180 d.C) chama as Epístolas Pastorais de paulinas. Policarpo cita o conteúdo das Epístolas Paulinas (135 d.C.). Não estão no Cânon de Marcião, mas Tertuliano diz que Marcião as rejeitou. O papiro 46 não está completo, portanto não pode ser utilizado como argumento. Além disso, outros manuscritos antigos contêm as epístolas pastorais. A ausência das cartas pastorais em manuscritos antigos não justifica sua pseudoautoria, afinal nem sempre aqueles que faziam as cópias possuíam todos os manuscritos em mãos tendo em vista uma série de dificuldades naturais (distância entre as cidades, por exemplo) e sócio-econômicas (perseguições, falta de material e dinheiro para adquiri-lo).
Conforme Hendriksen, a melhor solução para as diferenças é que Paulo usou uma amanuense diferente para escrever as três Epístolas Pastorais e este deixou suas marcas. Contudo, não se pode negligenciar o fato de que o contexto em que Paulo escreve as epístolas pastorais difere tanto no que diz respeito ao tempo-espaço, os muitos anos de ministério entre os gentios (gregos e romanos), quanto no que diz respeito ao propósito para o qual as epístolas foram escritas. Todos estes fatores são determinantes ao estilo e conteúdo de um livro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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FEE, Gordon D. Novo Comentário Bíblico Contemporâneo: 1 & 2 Timóteo, Tito. Florida: Editora Vida, 1994, p.34-39.
HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento: 1 Timóteo, 2 Timóteo e Tito. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001, p.10-47.
KELLY, John Norman Davidson. 1 e 2 Timóteo e Tito: Introdução e Comentário. São Paulo: Editora Vida Nova, 1983, p. 36-41.
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