“Outra razão ainda temos nós para,
incessantemente, dar graças a Deus: é que, tendo vós recebido a palavra que de
nós ouvistes, que é de Deus, acolhestes não como palavra de homens e sim como,
em verdade é, a Palavra de Deus, a qual, com efeito, está operando eficazmente
em vós, os que credes” (1Ts.2.13)
Dois fatores presentes nos primeiros séculos da era cristã contribuíram
para a oficialização do Cânon das Escrituras do Novo Testamento: o primeiro, e
mais influente dos dois, foi o aumento das heresias que perturbavam as igrejas
locais; em segundo lugar, as constantes perseguições contra os cristãos, que
tiveram início já no primeiro século e marcaram boa parte do segundo século,
exigiram a preservação das Escrituras Sagradas por meio de cópias, e para que
as cópias fossem precisas era necessário que houvesse um reconhecimento oficial
de quais livros faziam parte do Cânon do Novo Testamento. E, em se tratando de
perseguição e defesa da fé, era necessário deixar bem claro para os pagãos e o
governo romano: quais os fundamentos da fé cristã. Esse era o propósito de
apologistas como Justino, o mártir, entre outros: que os cristãos fossem
julgados com justiça segundo justo processo de investigação. Para isto era
preciso que fosse definida a lista de livros sagrados cristãos, limitando esta
lista para que outros livros que arrogavam o status de sagrados não fossem
atribuídos aos cristãos. Os apologistas procuraram cumprir bem o papel de
hábeis defensores da fé cristã perante autoridades, deixando bem claro que as doutrinas
cristãs eram inofensivas para o império.
Desde o primeiro século, a igreja se viu frente a esses desafios. O
apóstolo Tiago foi morto por causa da primeira perseguição em Jerusalém, e
Paulo sofreu bastante com as interferências dos judaizantes que espalhavam suas
doutrinas judaico-cristãs por entre as igrejas, confundindo os cristãos e
fazendo-os regredirem aos rudimentos da Lei Mosaica, com seus rituais. Após a
entrada dos gentios na igreja, outras formas de heresias começaram a surgir,
mesclando as filosofias Greco-romanas e religiões de mistério com os ensinamentos
do Senhor Jesus. Surgiram diversas manifestações de libertinos, querendo
baratear a graça divina, e as primeiras formas de gnosticismo, uma espécie de
protognosticismo, que no segundo século se desenvolveram bastante.
Judas, em sua pequena, mas bastante precisa carta, exorta a igreja a
batalhar “diligentemente, pela fé que uma
vez por todas foi entregue aos santos” (Jd.3). Muitas das heresias
principiantes do primeiro século ganharam forma e muitos adeptos no segundo
século. Os apócrifos e pseudo-epígrafos são testemunhas da ousadia desses
grupos que procuravam dar fundamentos escriturísticos para suas doutrinas,
fazendo uso do nome dos apóstolos e outros grandes homens de Deus reconhecidos
pela cristandade, e perturbavam a paz da igreja na busca por arrastar
seguidores após si, desviando cristãos da Verdade. Havia, então, uma
necessidade de se deixar bem claro, quais os livros estabelecidos pelo Senhor
como regra de fé e prática para a igreja cristã, para que a partir deste
reconhecimento as doutrinas cristãs pudessem ser estudadas e organizadas para
edificação da igreja e amadurecimento contra as heresias. Desta forma, os
ataques dos inimigos da igreja contribuíram para que os líderes preparassem
melhor os cristãos, e a igreja se viu na necessidade de oficializar a lista de
livros sagrados do Novo Testamento.
A primeira e mais conhecida iniciativa de compor uma lista de livros
reconhecidos como Cânon foi a lista de Marcião, na primeira metade do século
II. Sua iniciativa, ainda que carregasse sua concepção distorcida sobre Deus,
pois rejeitou o Antigo Testamento e todo livro que fizesse apologia ao mesmo,
motivou os cristãos a realizarem a mesma tarefa de delimitarem os livros
sagrados, deixando a lista bem definida contra possíveis tentativas de se
inserir livros apócrifos na igreja, principalmente na leitura feita nos
púlpitos. A busca por definir os livros canônicos do Novo Testamento pode ser
vista na lista Muratoriana, do final século II. Quanto mais distantes os
cristãos iam ficando temporalmente dos dias dos apóstolos, mais urgente se
fazia definir a lista de livros canônicos para a igreja cristã.
Mas, os livros não foram reconhecidos sem qualquer critério objetivo. A
igreja já tinha muitas de suas doutrinas bem definidas enquanto outras estavam
sendo sistematizadas, e a conformidade com essas doutrinas era um dos critérios
para o reconhecimento dos livros, o que fez com que a igreja expurgasse os
livros apócrifos e pseudo-epígrafos. Além deste critério, a apostolicidade do
remetente de cada livro era observada. Os livros precisavam estar relacionados
a um dos apóstolos ou pessoa direta deles. Por esta razão, os apócrifos e
pseudo-epígrafos faziam uso do nome deles para ganhar acesso às igrejas e assim
difundirem suas doutrinas. A união desses dois critérios ajudou a igreja a
reconhecer quais livros eram realmente obras dos apóstolos e seus cooperadores
e quais eram enganos criados por falsos mestres, pois ainda que a obra
trouxesse o nome de um apóstolo ela deveria estar em harmonia com as doutrinas
ensinadas nos demais livros. E, como a lista não foi imposta sobre a igreja,
mas surgiu de seu meio, o terceiro critério utilizado foi o próprio
reconhecimento dos livros no meio da cristandade desde os dias apostólicos.
Assim, a igreja estava mais bem preparada para combater as tentativas de
desviá-la da Verdade, eliminando de seu meio tudo que fosse falso.
O gnosticismo foi provavelmente a maior ameaça para a igreja do século
II. Brasílides, Valentino e outros foram mestres gnósticos que difundiram as
doutrinas gnósticas. Não havia uma homogeneidade nas doutrinas gnósticas, mas
os fundamentos eram bem semelhantes, pois tinham como propósito alcançar a
salvação por meio de um conhecimento secreto, e esta salvação consistia na
libertação do corpo que aprisionava a alma. Alguns eram libertinos no
procedimento, pois se entregavam aos diversos prazeres da carne, outros eram
ascéticos e se abstinham de toda e qualquer forma de prazer. A lista de apócrifos
que surgiu neste período é grande, muito maior do que o número de livros
canônicos, mostrando quão ameaçadoras foram essas seitas heréticas para a
igreja de Cristo. Se aceitas, essas heresias tirariam a igreja da perfeita
doutrina ensinada pelos apóstolos, doutrina esta que dava à igreja a medida
certa conforme a vontade de Deus. Assim, o termo Cânon, do hebraico Qânre e do
grego kanôn que se referiam à cana que era usada para medir, passou a ser
utilizado pela igreja para se referir à lista exata de livros sagrados, a
medida perfeita para a doutrinação da igreja, a verdadeira regra de fé e
prática. O Cânon cristão guardaria a igreja de novidades e ajudaria na
preservação dos livros sagrados que deveriam ser copiados, espalhados e também
guardados daqueles que queriam destruí-los. Assim, a lista de Cânon surgiu como
uma necessidade circunstancial semelhante às cartas apostólicas que foram
escritas tendo em vista necessidades locais das igrejas às quais se destinaram
primariamente. Desta forma, assim como é fundamental se conhecer o background
que motivou a escrita dos livros sagrados, também é importante que se conheça
os eventos históricos que motivaram a igreja a responder com a lista canônica
reconhecida pela cristandade. Assim como na história Bíblica, muitos pecados
foram instrumentos para a realização dos desígnios de Deus (Gn.50.20), assim
também foram as heresias e perseguições do século II, instrumentos para que a
igreja cumprisse a vontade do Senhor, preservando cada livro das Escrituras
Sagradas que era lido pela igreja como regra de fé e prática para todos os
cristãos.
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