“Na verdade, fez Jesus diante dos discípulos muitos outros
sinais que não estão escritos neste livro. Estes, porém, foram registrados para
que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais
vida em seu nome.” (Jo.20.30-31)
Mesmo uma leitura superficial dos quatro evangelhos possibilita uma
nítida percepção das diversas diferenças entre o evangelho de João e os
evangelhos sinóticos, tanto na seleção dos eventos vividos por Jesus quanto na
seleção das mensagens ditas por Ele. Caso o leitor seja mais detalhista,
conseguirá encontrar outras diferenças quanto ao estilo literário, uso de
termos e geografia predominante. Contudo, há diversas informações que podem ser
encontradas em, pelo menos, dois evangelhos sinóticos e no evangelho de João
como similaridades entre eles (política, geografia, batismo por João batista,
família de Jesus, sua missão e relação com o Pai, seus títulos, seus discípulos
etc.). Diferenças e semelhanças existem porque o grande evento que envolveu o
nascimento, vida, ministério, paixão e ressurreição de Jesus foi maior do que
as narrativas nos contam. Sendo assim, dentro do universo histórico das boas
novas cabe toda a rica diversidade entre os evangelhos.
Conforme o evangelista João: “Na verdade, fez Jesus diante dos discípulos
muitos outros sinais que não estão escritos neste livro.” (Jo.20.30) e “Há,
porém, ainda muitas outras coisas que Jesus fez. Se todas elas fossem relatadas
uma por uma, creio eu que nem no mundo inteiro caberiam os livros que seriam
escritos” (Jo.21.25). Estes versículos parecem justificar a diferença do
evangelho de João em relação aos três evangelhos sinóticos que o antecederam em
data de composição. Conforme estes dois versículos, poder-se-ia dizer que Jesus
falou e fez tantas coisas que cabem as diferenças tanto no estilo oratório
quanto na diversidade de assunto e obras realizadas em seus três intensos anos
de ministério.
Apenas os evangelistas Mateus e João foram testemunhas oculares do
ministério de Cristo. Este fato deveria ser ponderado como algo importante na
datação do evangelho de Mateus, provavelmente o mais hábil na escrita dentre os
demais apóstolos e que pode ter registrado diversos eventos logo após seu
ocorrido, formando, assim, um diário do ministério de Jesus. Apesar disso, há algumas
razões que favorecem a escrita tardia do evangelho de João. Tanto o testemunho
externo dos pais da igreja quanto o desenvolvimento teológico interno do
próprio evangelho de João, que dá ênfases que não haviam sido tratadas ainda
por Mateus e os outros evangelistas Marcos e Lucas, indicam que seu evangelho foi
posterior aos sinóticos. Esta diferença na seleção e organização dos fatos e
mensagens de Jesus está relacionada aos propósitos do evangelista. Primariamente,
o apóstolo João desejava promover a fé por meio do conhecimento de Cristo, o
Filho de Deus (Jo.20.31). Mas, além disso, João traz respostas a questões que
estavam em pauta em seus dias tanto dentro da igreja quanto fora dela, tendo em
vista aqueles que procuravam minar as bases da fé cristã.
A ênfase teológica de João difere propositadamente da teologia dos
sinóticos. Considerando a data mais tardia do evangelho de João, pode-se dizer
que havia problemas presentes nos dias em que o apóstolo João escreveu que
ainda não estavam presentes nos dias dos demais evangelistas que viveram no período
inicial da igreja cristã com forte presença de judeus em seu meio, além da
indesejada perseguição promovida por grupos judaizantes dentro e fora da
igreja. Nos evangelhos sinóticos, Jesus prega enfaticamente o Reino de Deus que
está se aproximando como cumprimento escatológico, e contrapõe o judaísmo
vigente que vivia a aparência da legalidade sem compreensão real da revelação
de Deus que se cumpria diante dos olhos daquela geração. Os sinóticos
demonstram que o cristianismo é o cumprimento das promessas messiânicas do
Antigo Testamento, e explicam o motivo da esperança messiânica não ter sido
satisfeita conforme grande parte do judaísmo esperava que fosse. Os evangelhos
sinóticos contam inúmeros fatos, cronologicamente, que atraem os leitores para
a maravilha da fé em Jesus e testificam a mensagem pregada pelos apóstolos. Uma
vez que a fé cristã está alicerçada na intervenção de Deus na história, os
evangelhos sinóticos oferecem as bases históricas dessa fé. A cristologia é
desenvolvida paulatinamente dentro do enredo dos evangelhos sinóticos. Os
discípulos só compreendem quem Jesus é no final de seu ministério e somente
após a ressurreição é que entenderam a obra que Jesus veio fazer. Nos sinóticos
os apóstolos são escolhidos por Jesus e, também, revestidos de autoridade, confirmando
as credenciais que eles possuíam perante a igreja. Os onze apóstolos (doze menos Judas), não
outros quaisquer, foram escolhidos por Jesus para testemunhar os eventos em
torno de Cristo e liderar a igreja, e, dentre esses eventos, alguns deles foram
realizados na presença apenas de alguns dos discípulos (Pedro, Tiago e João).
Enquanto isso, o evangelho de João inicia sua obra dissertando um pouco
sobre o logos eterno presente em
Gênesis 1, Jesus, a luz do mundo. Seu evangelho registra apenas sete sinais
operados por Jesus, cercando-os de longos discursos que dão significado ao que
Jesus fez. O Reino de Deus não é o ponto central para o quarto evangelho, mesmo
que seja anunciado como um cumprimento escatológico, não apenas futuro, mas,
principalmente, presente no meio da igreja e manifesto na vida cristã diária.
No quarto evangelho, o Reino se manifesta por meio da fé e testemunho ao se
praticar a vontade de Cristo. João não se preocupa em trazer informações sobre
a escolha e autoridade dos discípulos escolhidos para serem apóstolos da
igreja. Os judeus parecem não ser a principal preocupação da igreja nos dias de
João, ainda que se constitua num problema ainda vigente.
Diferente dos sinóticos, o evangelho de João possui uma diversidade
temática concentrada, transmitida por diversos longos discursos de Jesus. Ou
seja, alguns temas se repetem em mais de um bloco do evangelho. Os sinóticos
abordam diversos temas ético-morais que caracterizam o Reino de Deus
escatológico. Enquanto isso, João aborda temas mais conceituais com a presença
de diversos termos antitéticos (luz e trevas, céu e terra, verdade e mentira,
alto e baixo). João não põe palavras na boca de Jesus nem distorce a história
para privilegiar seu ponto de vista apaixonado, mas seleciona suas palavras
para combater desvios doutrinários dentro de alguns grupos na igreja, além de
outros fora dela. São sugeridos pelo menos três grupos contra os quais João
também destina sua obra: o grupo seguidor de João Batista, o grupo de Judeus
ainda presentes e o grupo protognostico do primeiro século, que trará maiores
problemas no segundo século quando o gnosticismo estará mais bem organizado.
Essa diversidade não anula a presença de um tema predominante que amarre
todos demais assuntos abordados, dando uma direção coesa para a obra. Conforme,
João 20.30 a seleção de materiais tinha como propósito promover a fé em Jesus
como Filho de Deus. A ênfase não recai sobre Jesus como Filho do Homem, o
Messias prometido, como ocorre nos evangelhos sinóticos, mas sobre a divindade
de Jesus, o EU SOU, que realizou maravilhas por ser o Filho de Deus. Para
mostrar a glória singular de Jesus, o Filho de Deus, João usa termos elevados
para se referir a Cristo (logos divino, Verdade, Pão do céu, Vida, do Alto, Eu
Sou etc.) contrapondo a medíocre realidade terrena dos demais homens. João quer
trazer o advento histórico para perto de seus leitores, por isso o autor faz um
largo uso do presente histórico, afinal o Filho de Deus permanece para sempre,
e, por meio do Espírito Santo, habita na igreja. Não basta crer no Messias
crucificado, pois é necessário crer no Filho de Deus ressurreto que vive para
todo o sempre.
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