“Na verdade, fez Jesus diante dos discpípulos
muitos outros sinais que não estão escritos neste livro. Estes, porém, foram
registrados para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que,
crendo, tenhais vida em seu nome” (Jo.20.30-31)
Ao iniciar a leitura do Novo Testamento, o leitor se depara com uma
curiosidade intrigante: por que há quatro evangelhos? Ou seja, por que há
quatro livros para nos contar a mesma história: vida, ministério, morte e
ressurreição de Jesus? E se isto é curioso, o que dizer, então, do fato de que,
destes quatro evangelhos, três narram basicamente os mesmos acontecimentos,
quase na mesma ordem, repetindo muitas das Palavras de Jesus? E o que torna
mais intrigante o assunto não são as semelhanças entre os três evangelhos, mas
as diferenças que parecem tornar esses evangelhos divergentes, ao apresentarem
os mesmos eventos com dados diferentes quanto a tempo, personagem e ordenança.
Os evangelistas ora concordam ora discordam nas informações, contando os mesmos
eventos de forma peculiar. Esse fenômeno, que há muito intriga os estudiosos na
busca por respostas, se chama Problema Sinótico.
Contudo, não deve ser tratado como novidade o fato de haver livros na
Bíblia que narrem de forma semelhante a mesma história, pois os livros de 2
Samuel, Reis e Crônicas possuem uma interseção narrativa, ou seja, um período
da história de Israel que é repetido (2Samuel-Reis // Crônicas). Assim, a
história a respeito da vida de Davi e dos reis de Judá, as tribos do sul,
aparece duas vezes nas Escrituras. Autores diferentes abordaram a história em
perspectivas e propósitos diferentes, formando, em parte, uma relação sinótica
entre os livros históricos do Antigo Testamento. Cada livro possui
uma forma peculiar de narrar a história do
povo de Deus, contada numa perspectiva histórico-teológica. Portanto, não era novidade para os autores Bíblicos do Novo Testamento a iniciativa
de se fazer mais de um registro histórico de um
período que já tinha sido registrado por outro autor, a partir de um propósito teológico específico.
No entanto, as questões em torno do problema sinótico têm intrigado
estudiosos por muitos séculos, pelo caráter das semelhanças e diferenças entre
os evangelhos, composição e propósito de cada um deles. Diversas soluções
apareceram na história da igreja desde os primeiros séculos da era cristã. Já
no segundo século da era cristã, Taciano revela sua preocupação com o problema
sinótico fazendo uma harmonização dos evangelhos. Como ele, outros também
realizaram o trabalho de harmonização, ainda que não tenham procurado
solucionar o problema sinótico. Um pouco mais adiante, no quarto século,
Agostinho procura abordar o problema, afirmando que houve dependência literária
entre os sinóticos, sendo o evangelho de Mateus o primeiro a ser escrito e
Marcos um resumo deste evangelho. Conforme Smith, os pais da igreja deveriam
ser consultados com mais frequência por serem testemunhas muito próximas dos
eventos do primeiro século e consequentemente da composição dos evangelhos.
Além disso, Smith lembra ainda que as evidências externas são de caráter
objetivo enquanto as evidências internas são extremamente subjetivas. Desta
forma, segundo os pais da igreja, Mateus teria sido o primeiro evangelho
escrito, tendo em vista que seu autor foi o único, dentre os evangelhos
sinóticos, que realmente esteve presente em todo o ministério de Cristo, não
necessitando, portanto, fazer uso de outras testemunhas para compor sua obra.
Após os pais da igreja, o problema sinótico não é mais discutido durante
um longo hiato. Somente a partir da segunda metade do século XVIII, surgiram,
outra vez, diversas hipóteses na busca por solucionar o problema sinótico
esquecido pela igreja durante um longo período de tempo. Recentemente, as três
críticas utilizadas na análise do Antigo Testamento, passaram a ser utilizadas
na tentativa de explicar o problema em torno dos evangelhos sinóticos: a
crítica das fontes, a crítica da forma e a crítica da redação.
A crítica das fontes procura descobrir quais as fontes que foram
utilizadas por cada um dos evangelhos, desde as fontes comuns às peculiares a
cada evangelho e como elas foram utilizadas por cada um dos evangelistas. A
crítica das formas procura explicar como a tradição oral se desenvolveu antes
de tomar a forma escrita. Enquanto isso, a crítica da redação tem como objetivo
descobrir o uso que os evangelistas fizeram do material disponível, procurando compreender
a redação final do material à luz de supostas tendências teológicas presentes
em indivíduos ou comunidades que participaram da formação de cada um dos
evangelhos. Apesar do mau uso que diversos estudiosos fazem dessas três
“críticas”, Carson lembra que as críticas da forma, fontes e redação não devem
ser vistas como ataques à historicidade dos evangelhos. Por isso, tanto
estudiosos liberais as utilizam para atacar os fundamentos das Escrituras
quanto estudiosos ortodoxos usam para explicar os fenômenos que ocorreram no
processo de formação de cada um dos evangelhos.
Dentre as soluções apresentadas, as principais são: 1) A hipótese do
proto-evangelho: Lessing propôs que houve um evangelho original que serviu de
base para todos os evangelistas. Mateus teria escrito seu evangelho em Aramaico
e depois resumido para o grego, resultando no evangelho que temos hoje. Marcos
e Lucas teriam usado a fonte Aramaica, também. 2) A hipótese dos fragmentos:
Schleiermacher apresentou a hipótese de que os evangelhos sinóticos são
compostos de fragmentos dos apóstolos que foram traduzidos para o grego e
depois organizados pelos evangelistas. 3) A hipótese da tradição oral: Conforme
J. G. Herder e J. K. L. Geisler defendem, a tradição oral teria sido o
fundamento comum para os evangelhos sinóticos. 4) A hipótese da
interdependência literária: Agostinho já havia defendido essa hipótese, depois
H. Owen, contudo a hipótese recebe o nome de J. J. Griesbach que a ressuscitou.
A hipótese defende que Mateus foi o primeiro, Lucas o segundo e Marcos o
terceiro resumindo os dois anteriores, concordando com a tradição da igreja. Já
C. Lachman propôs que o evangelho de Marcos tenha sido o primeiro e que Mateus
e Lucas utilizaram Marcos interdependentemente. Seguindo Lachman, surgiu a
hipótese das duas fontes que defende que Marcos foi escrito primeiro e que
serviu de fonte primária para a composição de Mateus e Lucas. Mas, de onde
viria a semelhança entre Mateus e Lucas que diferem de Marcos? A resposta
estaria numa suposta fonte denominada de Q (do alemão Quelle – fonte) que teria sido usada pelos dois evangelistas. Sendo
assim, ambos utilizaram duas fontes em comum: Marcos e Q, e a partir destas
fontes produziram o próprio evangelho, independente um do outro, gerando,
então, algumas diferenças entre eles. O grande problema da teoria é o fato de
que não há nenhum indício da fonte Q, que teria sido perdida de tal forma que
não deixou nenhum rastro. Procurando solucionar as brechas não respondidas pela
hipótese das duas fontes, B. Burnett H. Streeter apresenta a hipótese das
quatro fontes: Marcos, Q, M e L. Para explicar as peculiaridades de Mateus e
Lucas, a hipótese apresenta mais duas fontes peculiares a cada um dos
evangelistas: M peculiar a Mateus e L peculiar Lucas. Segundo Thiessen, Mateus
teria sido o primeiro evangelista, por ter sido um dos apóstolos, pois foi
testemunha ocular de boa parte dos fatos enquanto Marcos e Lucas estavam associados
a Pedro e Paulo, respectivamente. A tradição oral foi um dos recursos
utilizados pelos autores, mas a Inspiração do Espírito Santo e supervisão foram
os fatores primordiais na composição dos evangelhos.
Percebe-se, então, que o problema sinótico ainda está sobre a mesa para
debates, sujeito a novas hipóteses que tentem explicar o fenômeno que continua
intrigando os estudiosos do século XXI. Algumas dessas novas tentativas são, na
verdade, o resgate e aprimoramento de antigas hipóteses tanto baseadas em
evidências internas quanto externas. Assim, cada nova retomada do assunto
possibilita diferentes discussões em torno do assunto na busca pela solução do
problema sinótico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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gostaria de saber quando o autor quer dizer no sexto paragrafo quando fala: "resumindo os dois anteriores, concordando com a tradição da igreja" é referente as duas hipóteses ou é referente a Agostinho e H. Owen? me responde por favor
ResponderExcluir"resumindo os dois anteriores" é uma referência a Marcos ser um resumo de Mateus e Lucas. Essa hipótese foi levantada por Agostinho, H. Owen e J. J. Griesbach.
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