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quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

A sentimentalização da Verdade

 


Ora, estes de Beréia eram mais nobres que os de Tessalônica; pois receberam a palavra com toda a avidez, examinando as Escrituras todos os dias para ver se as coisas eram, de fato, assim” (At.17.11)


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Por mais óbvio que seja, nem todos veem que a verdade não depende da religião nem de estudos acadêmicos de renomados doutores da ciência moderna. A verdade não depende do status social de quem fala nem da importância do filósofo estudado. A verdade é e sempre será a verdade, não importa quem a diga; não importa quem faça o cálculo, terá que chegar ao mesmo resultado, caso contrário estará negando a realidade e faltando com a verdade. 


Da patrística a Tomás de Aquino, por mais de mil anos, a verdade era compreendida como algo que pertence completamente a Deus, pois tem nEle sua fonte. Por isso, Agostinho via a ação de Deus em Mônica, sua mãe que, por mais simples que fosse, havia sido instrumento da verdade, tantas vezes, para o conduzir a Deus. Em seus dias, Tomás de Aquino perscrutou todo conhecimento verdadeiro tendo por certo que tanto a revelação bíblica quanto a filosófica procedem da mesma fonte: Deus.


Contudo, a partir da renascença (séc. XIV), o homem começou a desviar seus olhos do foco, deixando de olhar para a fonte imutável de todo conhecimento (de toda verdade): Deus, e passou a olhar para algo subjetivo, o próprio homem. Também, deixando de apreciar o objeto que lhe é revelado por Deus: a verdade (o conhecimento), os homens passaram a vislumbrar demasiadamente o sujeito capacitado a conhecer a verdade, o próprio homem. Então, “inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos” (Rm.1.22). Desse modo, abriram as porteiras para a propagação da mentira, pois o valor daquilo que se diz passou a estar no sujeito que fala, e nas emoções que envolvem a relação entre o ouvinte e esse sujeito. Assim, a manipulação das massas ficou muito mais fácil.


Mas, o sujeito que intermedia o conhecimento porventura altera o valor do conhecimento? Claro que não! Um doutor afirmando a verdade não a torna mais verdadeira do que um analfabeto afirmando a mesma verdade; um pastor falando a verdade não a torna mais verdadeira do que um pagão declarando a mesma verdade; um filósofo renomado falando a verdade não a torna mais verdadeira do que uma criança balbuciando a mesma verdade. A verdade não depende de quem a diga, pois ela é verdade em si mesma e sua fonte sempre será o imutável Criador e Senhor de todas as coisas: o Grande EU SOU, o Deus eterno.


Mas, por que em nossos dias a verdade não depende dela mesma e, sim, daquele que a intermedia? A fonte da verdade é a mesma: Deus, sempre Deus! A objetividade da verdade é a mesma: a Verdade é sempre a verdade. O que muda, então, quando pessoas diferentes proclamam a verdade? Mudam apenas os sentimentos do ouvinte que não estando fito nem na fonte primária de todas as coisas, Deus, nem no objeto, a verdade, os substitui pelo sujeito intermediário por causas meramente afetivas. Ou seja, os ouvintes de nossos dias não ouvem com a razão, mas com os sentimentos volúveis.


Por essa razão, a verdade é recebida de maneiras tão diferentes e, até, diametralmente opostas. A depender de quem fala, você chora e “se arrepia”, você se comove e sente-se impactado, você é motivado e fica empolgado, você concorda com orgulho e até compartilha com entusiasmo. Mas, e se outra pessoa que não é importante para você, que não tem valor especial para você, dissesse as mesmas palavras? Quando pessoas insignificantes falam a verdade, o sentimento de desprezo torna a verdade insignificante também, porque entre os ouvidos e a verdade há uma porta chamada de sentimento.


Uma excelente ilustração para isso poderia ser vista se observássemos e comparássemos as reações de um adolescente expondo-o às mesmas verdades ditas por pessoas diferentes: de um lado os pais do adolescente e do outro lado a menina que o adolescente gosta:


VERDADE

REAÇÃO AOS PAIS

REAÇÃO À MENINA

Andar lugar perigoso

Acha besteira

Toma cuidado

Escovar os dentes

Ignora

Faz com frequência

Estudar

Faz corpo mole

Esforça p/ impressionar

Tomar banho

Sem interesse

Quer agrada-la

Ir para a igreja

Indiferente

Assíduo por ela


O que mudou nas verdades ditas para o adolescente? Absolutamente nada! Mas, uma vez que o adolescente não está ouvindo com a razão e, sim, com os sentimentos, ele não está observando a verdade, mas as pessoas que intermediam a verdade. Por isso, esse adolescente despreza o que os pais dizem enquanto supervaloriza aquilo que a menina diz. Esse mesmo comportamento conduzido por sentimentos pode ser encontrado na sociedade moderna, desde que ela cortou o cordão umbilical que a ligava a Deus e passou a enamorar apenas o seu semelhante. 


O desvio do olhar da fonte imutável de todas as coisas: Deus, e a perda do foco que deveria estar no objeto: a Verdade, é o marco que desencadeou toda relativização da verdade. As implicações desse olhar sentimental e egocêntrico do homem moderno podem ser encontradas em tudo: 


  1. Na ciência, a certeza inequívoca de uma origem objetiva e grandiosa do ser humano criado à imagem e semelhança de Deus deu lugar à devaneios confusos e incertos de teorias baseadas em suposições quem não respondem nada sobre: Quem somos? Por que existimos? E, para que existimos? Por que erramos? Etc.


  1. Na ética, encontramos, largamente, a prática da parcialidade, incluindo nas relações eclesiásticas. A justiça já não está relacionada à Verdade, mas ao sujeito. Por isso, ignora-se e acoberta-se os erros de uns enquanto cobra-se duramente os erros de outros.


  1. Na literatura, o masculino fora adornado de um sentimentalismo frágil jogado aos pés de uma mulher endeusada, substituindo o ideal de virtude, o cultivo da varonilidade íntegra de homens que percorriam sua jornada de amadurecimento, a jornada do herói.


  1. Na arte, a capacidade de perceber e expressar a realidade, revelando o magnífico dom do artista deu lugar aos borrões vazios de uma suposta arte denominada de abstrata que expressa muito bem a confusão da mente moderna.


  1. Na linguagem e nas relações sociais, o homem caminha para a indefinição do ser. Nem homem nem mulher, muito menos a imagem de Deus. O ser humano está perdendo qualquer definição. Ele pode ser uma porta, uma barata, uma jujuba, homem e mulher ao mesmo tempo etc. Ele pode ser tudo e nada.


Tudo isso decorre de um aparente simples desvio de olhar. Algo que talvez pareça insignificante para muitos de nossos dias ou mesmo uma implicância de um pastor chato. Mas, por causa de dois erros, a sociedade está sofrendo inúmeras implicações: 1) Deixaram de olhar para a fonte de toda Verdade: Deus. 2) Deixaram de olhar para a Verdade como Verdade em si. Uma vez que a verdade passou a depender do sujeito que a afirme, assumindo um caráter subjetivo, sua essência tornou-se volúvel e seu valor variável sempre na dependência do sujeito que a manipula.


Mas, não só o mundo tem sofrido as implicações da relativização da verdade. A igreja também sofre. O grande valor dado ao movimento “pop star gospel” decorre da certeza que pessoas famosas são mais facilmente ouvidas. Mas, o que parece bom para alguns é um grande perigo para a igreja. E quando doutores cometem erros teológicos? E quando pessoas amadas e queridas falam coisas erradas? Certa vez, vi pessoas defendendo um erro teológico de um doutor famoso quando ele estava errado. Não havia argumentos, apenas sentimentos cegos de ouvidos que recebiam tudo apenas com afetividade. Uma arma letal nas mãos de quem quiser fazer o mal.


Vemos, então, que a atitude dos bereianos não somente era bonita, mas, sobretudo fundamental para uma jornada segura e saudável da igreja: “Ora, estes de Beréia eram mais nobres que os de Tessalônica; pois receberam a palavra com toda a avidez, examinando as Escrituras todos os dias para ver se as coisas eram, de fato, assim” (At.17.11). Sem esse comportamento, os bereianos estariam vulneráveis a qualquer um que aparecesse se dizendo apóstolo. Para não ser presa fácil de falsos profetas, a igreja precisa ser advertida a olhar apenas para dois focos: 1) Deus, a origem de toda Verdade; 2) a Verdade, que é absoluta.


E você, para quem está olhando: para Deus, para a Verdade, ou apenas para sujeitos quaisquer adornados de muita afetividade? Ouvidos entulhados por emoções costumam preferir doces mentiras em vez de aceitar amargas verdades. Por isso, muitos cristãos vivem em guetos evangélicos, ensinados a ouvir apenas aqueles que foram declarados mestres de sua religião, tornando-se incapazes de avaliar todo conhecimento e discernir entre o que é certo e o que é errado. E um cristianismo meramente afetivo é presa fácil dos falsos profetas, mestres em cativar as pessoas. Portanto, limpe seus ouvidos das barreiras afetivas e comece a ouvir a Verdade por meio da razão.

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