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sábado, 28 de março de 2020

Daniel (3.1-30) - Confronto de soberanos

Se o nosso Deus, a quem servimos, quer livrar-nos, ele nos livrará da fornalha de fogo ardente e das tuas mãos, ó rei. Se não, fica sabendo, ó rei, que não serviremos a teus deuses, nem adoraremos a imagem de ouro que levantaste” (Dn.3.17-18)

Como havia dito o profeta Isaías: “Ouvi, ouvi e não entendais; vede, vede, mas não percebais” (Is.6.9), o pecado deformou a mente humana, tornando a ignorância algo comum ao ser humano. Vemos isso, na rejeição de Faraó à ordenança divina, mesmo após sinais devastadores realizados por Deus (Ex.7-14). Contudo, podemos dizer que o melhor demonstrativo da ampla dimensão da dureza do coração humano encontra-se na geração em que Jesus viveu. Cristo passou aproximadamente três anos pregando o evangelho do Reino em boa parte das cidades dos judeus (Mt.4.23; 9.35). Enquanto isso, Ele realizou um número incontável de milagres (sinais) jamais vistos pelo homem, tanto em termos de qualidade quanto em relação à quantidade. O Senhor Jesus curou doenças de toda natureza, de modo que até cegos de nascença, aleijados e coxos tiveram a saúde transformada. Ele expulsou demônios dos mais variados, libertando pessoas aprisionadas por muito tempo (Lc.7.21). Cristo multiplicou comida em abundância, saciando, milagrosamente, a fome de multidões (Mt.14.16-21). Ele ainda ressuscitou mortos até em estado de putrefação (Jo.11), revelando-se como Senhor da vida. Assim, muitos “maravilhavam-se sobremaneira, dizendo: Tudo ele tem feito esplendidamente bem; não somente faz ouvir os surdos, como falar os mudos” (Mc.7.37). Contudo, mostraram-se incapazes de crer (Jo.6.30), razão para terem crucificado Jesus (Mt.27).

Mesmo após o Senhor se manifestar para Nabucodonosor, por meio do evento em torno do sonho revelado através de Daniel (Dn.2), o imperador continuou seu paganismo. Ele ergueu uma estátua de, aproximadamente 31 metros de altura por 310 centímetros de largura (3,10m). Não há como saber de quem era a estátua e, aparentemente, não seria de um dos deuses da Babilônia. Poderia ser uma réplica da estátua do sonho que ele teve, numa tentativa de engrandecer seu reino, cabeça de todos os demais subsequentes. Porém, é bem provável que a estátua fosse do próprio Nabucodonosor que costumava se auto exaltar. Em Daniel 3.12, é feita uma, aparente, distinção entre os deuses da Babilônia e a “imagem de ouro” que havia sido levantada pelo imperador. Daniel não nos diz que estátua era aquela, mas nos revela que, com ela, Nabucodonosor pretendia unificar seu reino[1] através da religião exigindo uma única adoração de todos, indistintamente (Dn.3.4).

A estratégia de Nabucodonosor foi bastante astuta: conquiste o coração dos homens e eles se curvarão às suas ideias. Esse é o princípio mais utilizado em nossos dias. A religião mexe com o que é mais profundo no ser humano: o coração. Enquanto ideias podem ser mudadas por meio de argumentos, os ídolos do coração não são facilmente trocados. Há um dito popular que diz: “Política, religião e futebol não se discute”. O objetivo dessa frase é afirmar a impossibilidade de se convencer o outro, pois são temas que costumam estar fortemente arraigados ao coração. Pessoas amam seu partido, sua religião e seu time de futebol, mesmo quando algo não está bom em qualquer um deles. A mente pode ser facilmente convencida, mas o coração se apega com todo seu ser. Por essa razão, é difícil convencer alguém apaixonado sobre os perigos de uma paixão errada. Não é uma questão de convencimento, mas de apego profundo, pois é algo do coração. O imperador queria ganhar o coração de seus súditos, ligando-os por meio de uma única religião. Uma vez que todos tivessem a mesma crença também estariam dispostos a lutar pelas mesmas ideias.

No capítulo dois, Daniel foi o instrumento principal para glorificar a Deus, revelando, ao rei, o sonho e seu significado. Nabucodonosor percebeu a singularidade do Deus dos judeus e afirmou: “Certamente, o vosso Deus é o Deus dos deuses, e o Senhor dos reis, e o revelador de mistérios, pois pudeste revelar este mistério” (Dn.2.47). Agora, no capítulo três, o profeta nos mostra que Sadraque, Mesaque e Abede-Nego tiveram a oportunidade de resistir ao sistema maligno, liderado por um tirano, de seus dias (Nabucodonosor), glorificando a Deus por meio da firmeza e fidelidade ao Senhor, mesmo em face à morte. Eles não temeram as ameaças do rei, estando prontos para glorificar o Deus de Israel por meio até da morte, expressando uma das mais belas confissões de fé do Antigo Testamento, um verdadeiro testemunho de servos fiéis dispostos a servirem como mártires:

Responderam Sadraque, Mesaque e Abede-Nego ao rei: Ó Nabucodonosor, quanto a isto não necessitamos de te responder.  17 Se o nosso Deus, a quem servimos, quer livrar-nos, ele nos livrará da fornalha de fogo ardente e das tuas mãos, ó rei.  18 Se não, fica sabendo, ó rei, que não serviremos a teus deuses, nem adoraremos a imagem de ouro que levantaste. (Dn.3.16-18)

Ocorre um confronto de Soberanos: um presunçoso imperador, com soberania sobre vários povos, desafia o Soberano Senhor de toda a criação. Nabucodonosor declara guerra ao Deus de Israel, dizendo: “Quem é o deus que vos poderá livrar das minhas mãos?” (Dn.3.15). O confronto, então, não está diretamente relacionado a Sadraque, Mesaque e Abede-Nego, mas, principalmente, ao Deus a quem serviam. O Senhor é afrontado e a manifestação de sua glória perante as nações está em jogo. Nabucodonosor havia tomado nações pela força, destruído cidades e matado muita gente. O rei arruinou a economia dos povos para os enfraquecer, acabando com o fruto das terras e despojando os animais do campo. Através da violência, o imperador forçou a submissão política de reis e príncipes. E, no capítulo três do livro de Daniel, ele aparece engrandecendo a si mesmo através da manipulação da religião. Desse modo, Nabucodonosor liderava um império autocrático e opressor, manipulando a política, a economia e a religião das nações, personificando muito bem as palavras do profeta Isaías “Eu subirei ao céu; acima das estrelas de Deus exaltarei o meu trono e no monte da congregação me assentarei, nas extremidades do Norte; subirei acima das mais altas nuvens e serei semelhante ao Altíssimo” (Is.14.13-14).

O mundo desafia a Soberania de Deus diariamente, impondo aos verdadeiros cristãos o desafio de serem fiéis em meio às mais variadas ameaças (At.4.29; 1Pe.3.14). Contudo, não é contra o cristão que o mundo, a carne e o diabo realmente lutam. Eles odeiam a Deus, o Criador de todas as coisas e querem se ver livres de seu governo. Portanto, o cristão não deveria desejar a amizade do mundo nem esperar que o mundo o visse com bons olhos. Sempre que a igreja foi bem vista e quista pelo mundo a seu redor, tinha como razão a negligencia de seu papel como “coluna e baluarte da Verdade” (1Tm.3.15). A mensagem que a igreja recebeu de Cristo é absolutamente contrária ao modo de vida mundano, completamente oposta às obras da carne e inevitavelmente detestada pelo diabo, o pai da mentira (Jo.8.44; Ef.2.1-3). Por isso, é bastante estranho ver o mundo em paz com a igreja, a carne caminhando de mãos dadas com o cristianismo e o diabo tranquilo e sem perturbar o povo de Deus. Com certeza, há algo muito errado para isso acontecer.

Diante da ameaça do imperador, Sadraque Mesaque e Abede-Nego não tinham muitas opções além de mostrar a firmeza de suas convicções. Contudo, eles não ficaram calados esperando algo acontecer. Aquela era a perfeita oportunidade para glorificar o NOME do Senhor confessando uma fé firme e inabalável no Deus vivo e verdadeiro. Devemos observar que esses três amigos não pregaram uma teologia vitoriosa, como se Deus fosse obrigado a salvar a vida deles. Os três estavam certos de que o Senhor poderia livra-los das mãos do rei, contudo estavam prontos a aceitar a vontade de Deus, ainda que esta fosse o martírio deles (Dn.3.16-18). E, realmente, podemos dizer que nem sempre Deus quer ser glorificado por meio da manifestação de seu poder para livrar seus servos dos mais variados males. A igreja dos quatro primeiros séculos testemunhou a morte de milhares de cristãos, homens e mulheres que amavam a Deus mais do que a própria vida e o glorificaram por meio da morte pelo nome de Jesus (Ap.12.11). Deus não quis livra-los da morte, pois queria ser glorificado através dela. Apocalipse 6.9-11 nos diz:

Quando ele abriu o quinto selo, vi, debaixo do altar, as almas daqueles que tinham sido mortos por causa da palavra de Deus e por causa do testemunho que sustentavam.  10 Clamaram em grande voz, dizendo: Até quando, ó Soberano Senhor, santo e verdadeiro, não julgas, nem vingas o nosso sangue dos que habitam sobre a terra?  11 Então, a cada um deles foi dada uma vestidura branca, e lhes disseram que repousassem ainda por pouco tempo, até que também se completasse o número dos seus conservos e seus irmãos que iam ser mortos como igualmente eles foram. (Ap.6.9-11)

A firmeza de Sadraque, Mesaque e Abede-Nego encheu Nabucodonosor de fúria “e, transtornado o aspecto do seu rosto [...] ordenou que se acendesse a fornalha sete vezes mais do que se costumava” (Dn.3.19). O mundo trabalha através de chantagens e ameaças. O amor ao poder (orgulho) tem feito com que isto seja visto até mesmo dentro da política eclesiástica (de uma forma que até o diabo duvida). O imperador conseguiu intimidar pessoas de todos “os povos, nações e homens de todas as línguas” (Dn.3.4). Mas, o povo de Deus não é covarde como os demais (ou não deveria ser). A igreja foi ensinada a não temer homens, mas, sim, Deus: “Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei, antes, aquele que pode fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo” (Mt.10.28). Se a vida fosse o maior bem do homem, então a morte seria o maior mal que poderia lhe acontecer. Todavia, a alma humana é o maior bem do ser humano, logo o inferno é o maior mal que pode acontecer a alguém (Ap.20.11-15). Por isso, não devemos temer as ameaças do mundo que, no máximo, é capaz de matar o corpo, sem, contudo, ser capaz de mudar o destino da alma que confia na graça redentora do Senhor e Salvador Jesus.

A brutalidade exasperada de Nabucodonosor foi tão grande que os homens responsáveis por amarrar e jogar Sadraque, Mesaque e Abede-Nego para dentro da fornalha morreram na porta desta. Esse detalhe é importante para demonstrar quão forte estava o fogo dentro da fornalha. Daniel enfatiza quatro vezes que a fornalha estava “sobremaneira acesa” (Dn.3.21,22,23,26). Ou seja, diversos elementos do texto visam não deixar qualquer brecha para aqueles que tentam invalidar o livramento milagroso operado pelo Deus de Israel. Não há como negar que o Senhor livrou seus três servos fiéis de uma horrenda morte, de modo que “o fogo não teve poder algum sobre os corpos destes homens; nem foram chamuscados os cabelos da sua cabeça, nem os seus mantos se mudaram, nem cheiro de fogo passara sobre eles” (Dn.3.27). Não deve haver qualquer dúvida de que aqueles homens foram alvo do poder e da graça divinos, pois Deus mandou seu Anjo (uma cristofania ou presença angelical) para glorificar o NOME de Deus entre as nações.

Bem que o imperador poderia ter ficado calado, envergonhado por ter sido humilhado perante todos. Deus respondeu a seu questionamento: “Quem é o deus que vos poderá livrar das minhas mãos?” (Dn.3.15). Porém, o que o Senhor queria não era o silêncio de alguém humilhado, mas a confissão de alguém convencido da existência, glória e poder do único e verdadeiro Deus. Então, Nabucodonosor, espavorido e impressionado, abre a boca para reconhecer a grandeza do Senhor. Aquele que exigia subserviência e adoração dos povos, sentiu-se obrigado a reconhecer a glória do Deus dos judeus, dizendo: “Bendito seja o Deus de Sadraque, Mesaque e Abede-Nego, que enviou o seu anjo e livrou os seus servos, que confiaram nele, pois não quiseram cumprir a palavra do rei, preferindo entregar o seu corpo, a servirem e adorarem a qualquer outro deus, senão ao seu Deus” (Dn.3.28). O imperador perdeu o confronto contra Deus e reconheceu a superioridade do Senhor, “porque não há outro deus que possa livrar como este” (Dn.3.29).

A doutrina da soberania de Deus tem importantes implicações práticas. Dentre elas, a confiança no Senhor mesmo nos piores dias da vida (Fp.4.6). Não sabemos como estava o estado emocional de Sadraque, Mesaque e Abede-Nego no momento em que o rei os ameaçou. Todavia, a forma como eles respondem demonstra confiança e serenidade próprias de quem conhece firmemente a glória de Deus e realmente anda com o Senhor. Dias maus, como esses do isolamento (Coronavírus) são propiciadores de reflexão. Como você costuma reagir diante das lutas, privações, crises, adversidades, doenças e outros problemas? Você fica desesperado? Mas, por quê? O Senhor só governa o mundo quando tudo parece bem? Deus poderia perder o controle do mundo? Sabemos que o Senhor é o Soberano sobre toda a criação, não importa a situação. Essa Verdade deve ser aplicada à vida pessoal, familiar e social, de modo que as ações e reações sejam coerentes com a certeza de que tudo pertence ao Senhor e só acontece debaixo do “consentimento de vosso Pai” (Mt.10.29). Diante dessa Verdade, firme seu coração para que esteja pronto a resistir o mundo e dar “firme a confissão da esperança, sem vacilar, pois quem fez a promessa é fiel” (Hb.10.23).


[1] BALDWIN, Joyce G. Daniel: Introdução e Comentário. São Paulo: Editora Vida Nova, 2008, p.105

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