A quantidade de evangélicos no Brasil tem crescido bastante, e isso é bom. Contudo, o grande número de igrejas e o tamanho cada vez maior delas não têm reduzido os problemas sociais na mesma proporção. Encontramos um número muito grande de cristãos em empresas, comércio e universidades, todavia a sociedade não é purificada do paganismo nem adquire novos modelos culturais. As roupas estão cada vez mais curtas; as festas pagãs não acabam; a corrupção não diminui; o paganismo predomina nas universidades; o comércio continua avarento e desonesto. O fenômeno deveria causar estranheza a todos por sua aparente contradição. O nome do problema é: dualismo cristão.
Certo dia, um aluno universitário contou-me que alguns colegas se queixaram ao saber que um professor havia usado a pesquisa deles para realizar uma palestra, sem dar os devidos créditos aos alunos pesquisadores. Infelizmente, o que o professor fez não é incomum, mesmo entre grandes escritores de nossos dias, mas a maioria das pessoas não sabe disso. A maior tristeza do aluno foi descobrir que o professor que usurpou a glória da pesquisa é membro de uma igreja. Um dia, passando ao lado de outra grande igreja, fui incomodado com duas cenas: na primeira, vi muitas jovens saindo da igreja com roupas tão curtas e vergonhosas quanto as que encontramos em mulheres do mundo (algumas pareciam prostitutas); na segunda cena, um carro que esperava alguém da igreja ficou parado na rua atrapalhando o trânsito inteiro, deixando-nos por quase 20 minutos parados esperando, e o motorista não demonstrou a mínima preocupação com os outros, qualquer respeito pelos cidadãos.
Há alguns anos, em uma loja de roupas, pude testar a consciência cristã de uma vendedora. Enquanto a esposa provava um vestido longo, eu observava a loja atento aos modelos de roupas vendidos lá. Notei, então, que além dos vestidos, havia diversas minissaias, shortinhos e roupas com decotes extravagantes. Talvez, eu não devesse me preocupar com isso, afinal é comum encontrarmos esse tipo de roupa nas lojas. Contudo, algo me chamou a atenção: uma música evangélica estava tocando no som ambiente da loja que não era grande. Atentei, também, para o fato de a vendedora estar vestida com roupas típicas de certos grupos evangélicos: saia jeans longa e camisa bem composta. Curioso com o contraste entre a mercadoria e as marcas de um possível evangelicalismo, perguntei para a vendedora se ela era evangélica. Ela confirmou e ainda disse que a dona do estabelecimento também era evangélica. Então, me senti obrigado a iniciar um diálogo sobre a contradição entre a “fé” que professavam e aquilo que vendiam, afinal elas comercializavam o que não tinham coragem de usar, pois sabiam que era errado. Elas não haviam visto o problema presente no dualismo cristão que praticavam, pois aprenderam a viver uma “fé” de foro íntimo, um cristianismo de gueto, que não muda o mundo, uma mera tradição religiosa pessoal.
O dualismo cristão está ajudando a transformar o cristianismo numa religião de foro íntimo. Consequentemente, a “fé” se tornou um mero elemento da cultura, praticada apenas dentro da esfera religiosa. Ao transformar a fé numa área da cultura, o dualismo criou vidas antitéticas ou bipolares: o professor crente vai ao culto na igreja que congrega e até ora antes de começar sua aula, mas em seguida ensina o evolucionismo, o marxismo, o iluminismo e outras ideologias pagãs como se fossem verdades, ignorando que tais ideologias são completamente contrárias à Revelação divina; o trabalhador cristão diz que confia em Deus, mas procura desesperadamente uma estabilidade financeira nos concursos públicos, como se Deus não fosse a fonte de todo nosso sustento, capaz de prover tudo o que precisamos por meio de qualquer trabalho honesto; o comerciante evangélico fala de amor, mas vende ao próximo o que não é necessário, por um preço acima do justo, usando o próximo como objeto para seu próprio benefício; o cidadão crente pede a Deus para que tome o controle da nação, mas apoia partidos marxistas, ateus, abortistas, feministas e defensores de tudo o que Deus odeia.
Essas e outras discrepâncias dentro do cristianismo estão mutilando a integralidade da vida humana tanto individual quanto social; e, assim, estão criando dois terrenos separados por um abismo: a vida comum e a vida religiosa. Por isso, “cristãos” vivem seis dias a seu bel-prazer e um dia fingindo que é cristão, participando das programações de uma igreja local. A religião se tornou um elemento da cultura popular. Essa ideia (e, também, prática) é encontrada em tempos antigos, no povo de Israel do Antigo Testamento. Eles ofereciam sacrifícios a Deus no Templo de Jerusalém enquanto a vida social estava contaminada por todas as práticas pagãs. Por isso, Deus enviou diversos profetas, a fim de chamarem os israelitas a uma vida integralmente dedicada a Deus: “Ele te declarou, ó homem, o que é bom e que é o que o SENHOR pede de ti: que pratiques a justiça, e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus” (Mq.6.8). O dualismo israelita fez o profeta Isaías protestar:
Isaías 1.12-13: Quando vindes para comparecer perante mim, quem vos requereu o só pisardes os meus átrios? Não continueis a trazer ofertas vãs; o incenso é para mim abominação, e também as Festas da Lua Nova, os sábados, e a convocação das congregações; não posso suportar iniquidade associada ao ajuntamento solene.
O homem é um ser integral, criado à imagem e semelhança de Deus. O homem tem corpo, razão, emoção e alma, e todas essas partes da vida integral do ser humano estão interligadas. Por isso, quando uma das partes é afetada, as demais sentem e reagem. Excesso de emoção afeta a razão enquanto que o racionalismo calculista anula as emoções do homem, matando-o por dentro. Uma vida longe de Deus afeta os sentimentos e pensamento; e problemas físicos podem levar ao desânimo emocional, mental e até espiritual. Somos uma unidade indivisível, ainda que a morte separe temporariamente nossa alma, razão e emoção de nosso corpo, enquanto aguardamos a ressurreição. No novo céu e nova terra, viveremos eternamente como seres integrais: alma, razão, emoção e corpo. Portanto, a redenção diz respeito à restauração de todo nosso ser, a fim de que tudo em nós exista para a glória de Deus e se alegre no Senhor.
Ser cristão, então, é ter tudo em nós tirado do império das trevas, onde servíamos como escravos do diabo. No Reino de Deus, fomos lavados e estamos limpos. Nosso coração é movido pelo Espírito Santo a desejar tudo que é bom e agradável ao Senhor, inclusive o deleite em servir em todo tempo como instrumento de bênção para as pessoas. A Palavra de Deus ilumina nosso entendimento, de modo a capacitar-nos para ver a realidade como ela realmente é. Nosso corpo torna-se instrumento divino para tudo o que é bom. E nossa alma descansa em paz nas mãos de Deus, olhando para a eternidade, a fim de viver o presente em Cristo e para Cristo. Nossos sentidos são atraídos à verdadeira beleza que é indissociável da pureza. Ou seja, tudo em nós se faz novo e vai se renovando aos poucos pelo processo de santificação que o Espírito Santo e a Palavra de Deus operam.
Portanto, devemos lembrar que Cristo é Senhor de tudo, não apenas do culto dominical! Jesus é o redentor da criação e transformador da sociedade, mas isto não significa colocar o nome “gospel” após ideologias e práticas de uma cultura pagã. A verdadeira redenção diz respeito à purificação de tudo e a santificação de todas a criação. Por isso, o Senhor ordena que não “vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente” (Rm.12.2). A igreja é o exército de Deus enviado para levar adiante a bandeira do Reino de Cristo. Ao fincar a bandeira do Senhor num lugar, a igreja proclama que o Reino de Deus está representado ali, e, por isso, novas leis regerão o povo; novos costumes serão ensinados; novo comportamento será exigido. Isso significa jogar fora tudo o que é pecado, tudo o que é impuro, tudo o que é mentiroso, para que apenas aquilo que condiz com o Reino de Deus esteja presente na vida pessoal e social. Dessa forma, a “justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo” (Rm.14.17) substituem paulatinamente os maus hábitos do mundo pagão, manifestando a chegada do Reino dos céus, anunciando que Cristo é Senhor de tudo.
Com a chegada do Reino de Deus, representado pela presença da igreja onde ela estiver, o ódio é trocado pelo amor, a maldade é substituída pela bondade, a avareza dá lugar à generosidade, a prostituição é vencida pela vida em família, o orgulho prostra-se perante a humildade, a ambição é destronada pelo contentamento. Mulherzinhas maledicentes, mexeriqueiras e vulgares são transformadas em santas mulheres de procedimento sábio, piedoso e amável, sobretudo com o marido e os filhos (Tt.2.3-5). Homens tolos, irresponsáveis e levianos tem sua velha vida deixada para trás, a fim de que se tornem respeitáveis, irrepreensíveis e responsáveis no cuidado com a família e a sociedade (Tt.2.1-2,6). A Palavra de Deus e o Espírito do Senhor expulsam paulatinamente os vícios do mundo maligno para adornar a vida pessoal e social com a beleza das virtudes divinas.
Portanto, seja cristão em todo e qualquer lugar. Não importa se você está em casa, na rua, na empresa, no comércio, na escola, na universidade ou junto com os irmãos da igreja, seja o mesmo em todo lugar. Sua nova vida abrange tudo que você é, faz e tem. Dessa forma, seu ser deve refletir a glória de Cristo, mostrando para todos que “já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim” (Gl.2.20); suas ações devem ser dirigidas pela Palavra de Deus, pois “somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras” (Ef.2.10); seus pertences devem ser instrumentos para abençoar o próximo, pois “mais bem-aventurado é dar do que receber” (At.20.35). Tudo o que você fizer, faça-o para a glória de Deus (1Co.10.31) como representante do Reino dos céus; consagre sua vida a Cristo, para que você seja bênção onde estiver; e, procure na Palavra do Senhor toda direção necessária, a fim de demonstrar a presença do Reino de Deus entre nós, proclamando que tudo pertence a Cristo e está sendo restaurado pelo poder do Espírito do Senhor.
2 Coríntios 3:17-18 Ora, o Senhor é o Espírito; e, onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade. 18 E todos nós, com o rosto desvendado, contemplando, como por espelho, a glória do Senhor, somos transformados, de glória em glória, na sua própria imagem, como pelo Senhor, o Espírito
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