“Amados, não deis crédito a qualquer espírito;
antes, provai os espíritos se procedem de Deus, porque muitos falsos profetas
têm saído pelo mundo fora.” (1Jo.4.1)
Para entender melhor diversas questões abordadas pelos autores do Novo
Testamento, faz-se necessário conhecer os adversários da igreja do primeiro
século. Os falsos profetas e suas heresias possuem um estreito relacionamento
com a produção do acervo dos livros neotestamentários, porque foram, em grande
medida, agentes causadores, direta ou indiretamente, da motivação dos
escritores bíblicos. Ou seja, os autores bíblicos do Novo Testamento estavam
dando respostas aos problemas levantados pelos falsos mestres, a fim de
proteger a igreja das heresias que eles veiculavam. A presença de falsos
profetas, no meio do cristianismo do primeiro século, foi tão significativa que
se tornou a razão básica para o aparecimento de diversos livros do Novo
Testamento, tal como a carta de Judas (Jd.3).
Os falsos profetas e suas heresias não foram problemas órfãos. As heresias
contra as quais os escritores do Novo Testamento lutaram tinham raízes tanto no
judaísmo do período interbíblico quanto na filosofia helênica que se propagou
pelo mundo, com a contribuição das religiões pagãs da época. TOGNINI (2009,
p.149) afirma que “no período
interbíblico apareceram seitas político-religiosas completamente estranhas ao
Antigo Testamento”. Conforme TENNEY (1998, p.950), o cristianismo
insipiente encontrou um misto de religiões e crenças:
O Cristianismo não começou a
sua implantação num vácuo religioso, em que encontrasse os homens em branco, à
espera de alguma coisa em que acreditar. Pelo contrário, a nova fé em Cristo
teve de lutar, para abrir o seu caminho, contra as crenças religiosas
enraizadas que vigoravam havia séculos. Muitas delas tinham degenerado em
fracas superstições e em rituais sem significado; outras estavam relativamente
novas e vigorosas.
Outra forma de percebermos os perigos que a igreja sofria no primeiro
século é através dos apócrifos e pseudo-epígrafos. Grupos heterodoxos
produziram seus próprios evangelhos registrando suas crenças em livros que
carregavam o nome dos apóstolos ou de alguém intimamente relacionado com eles.
Essa era uma forma de creditar autoridade à obra atraindo leitores mais
ingênuos. Durante os primeiros séculos, centenas desses livros surgiram,
disseminando heresias pela cristandade. Ainda que alguns desses escritos possuam
informações corretas, a maioria deles revela tradições extra-bíblicas divergentes
ao texto sagrado, muitas vezes perniciosas, como o Evangelho de Maria Madalena
e o Evangelho de Filipe, utilizados no livro “Código da Vinci”[1].
Semelhante ao sincretismo religioso dos grupos neopentecostais, os grupos
heréticos do primeiro século cedo misturaram valores e crenças de diversas
religiões da época. Os estudiosos do Novo Testamento às vezes reconhecem traços
tanto do judaísmo quanto do gnosticismo nas alegações de Paulo contra os falsos
mestres, conforme é possível se observar nas palavras de CARSON (1998, p.401):
...certamente parte desse
ensino incluía um forte elemento judaico. Existem referências a “mestres da
lei” (1 Tm 1.7), aos “da circuncisão” (Tt 1.10), a “fábulas judaicas” (Tt 1.14)
e a “contendas e debates sobre a lei” (Tt 3.9). Há uma advertência contra o
“saber como falsamente lhe chamam” (1 Tm 6.20), a qual, junto com referências a
“fábulas e genealogias sem fim” (1 Tm 1.4; cf. 4.7; Tt 3.9), é frequentemente
entendida como referência a sistema gnóstico.
Ainda que os dois grupos heréticos, que bombardeavam a igreja cristã primitiva,
existissem com características próprias, diversos falsos mestres haviam sido
influenciados por ambos, criando um sincretismo religioso entre judaísmo e
religiões helênicas. Todavia, conforme GONZÁLEZ (2002, p.96), o gnosticismo foi
realmente a maior ameaça contra o cristianismo:
De todas as diversas
interpretações do cristianismo [,,,] nenhuma foi tão perigosa, nem esteve tão
perto de triunfar, como o gnosticismo. O gnosticismo [...] existiu tanto dentro
do cristianismo como fora dele e que dentro do cristianismo, tratava de reinterpretar
a fé em termos inaceitáveis para os demais cristãos.
O gnosticismo não possui um pai que tenha dado início ao movimento dentro
ou fora do cristianismo. Não era um grupo coeso, possuindo diversas escolas
(GONZÁLEZ, 2002, p. 96). No entanto, é evidente que sua principal concepção
doutrinária vem do dualismo de Platão “entre
o mundo invisível das idéias e o mundo visível da matéria” (GUNDRY, 1999,
p.41). O Império Grego difundiu sua cultura por todas as regiões conquistadas
de forma que o helenismo, juntamente com suas filosofias, passou a ser
conhecido por todo o mundo do primeiro século. A influência helênica foi tão
grande, que a língua falada no mundo, governado pelo Império Romano, era a
língua grega. Conforme ELWELL e YARBROUGH (2002, p.399), o gnosticismo foi:
Uma mistura esotérica de idéias
judaicas, cristãs e gregas que foi fortemente combatida como heresia pela
igreja durante os séculos 2º e 3º d.C. Pregava a salvação por intermédio de um
conhecimento especial (gnosis), de um
conjunto complexo de emanações divinas vindas de um “Ser” oculto, e (em algumas
versões) de um mensageiro divino que mostrou o caminho secreto que levaria de
volta ao fundamento divino do Ser.
O gnosticismo não existiu, ou existe, apenas no cristianismo. Na verdade
suas concepções são anteriores como sistema filosófico baseado “no dualismo neoplatônico” (CARSON, 1998,
502). Por ser um movimento sincrético, era possível adequar-se praticamente a qualquer
religião. Entre os estudiosos há certo consenso de que I e II João e Judas
estão combatendo um gnosticismo embrionário. Além de serem cartas edificadoras,
têm como propósito primordial proteger a igreja de um falso cristianismo.
Segundo THIELMAN (2007, p.644), o autor das três cartas joaninas “trata de um desvio do cristianismo joanino
conforme articulado pelo quarto evangelho”.
As duas primeiras cartas de João e a carta de Judas revelam algumas
posições doutrinárias e comportamentais que os falsos profetas levavam consigo
ao tentarem persuadir a igreja com suas heresias. O apóstolo João e o irmão do
Senhor, Judas, detectam alguns pontos doutrinários e comportamentos patentes, a
fim de alertar a igreja quanto a esses lobos vestidos de ovelhas. Nem todas as
características estarão presentes em todos os falsos profetas, como se todos
defendessem cada um dos pontos doutrinários e comportamentais detectados pelos
escritores bíblicos. Mas, em linhas gerais, podemos traçar um perfil do problema
enfrentado pela igreja:
|
Doutrina ou Comportamento
|
Semelhança
|
Referência
|
1
|
Jesus não
tinha corpo real e material, era apenas um fantasma.
|
gnósticos
|
I
Jo.1.1; 4.2; II Jo.1.7
|
2
|
Jesus não era
realmente filho de Deus, nem Deus verdadeiro.
|
judaizantes
e
gnósticos
|
I
Jo.1.3; 2.22; 5.10,11,20
|
3
|
Libertinos que
viviam pecando satisfazendo os desejos carnais.
|
gnósticos
|
I
Jo.1.6; 2.4,15,16; 3.6,8; Jd.4,18,19
|
4
|
Negavam que
Jesus fosse realmente o Cristo, salvador.
|
judaizantes
|
I
Jo.2.22; 5.10,11
|
5
|
Diziam-se
portadores de revelação especial, também sonhos e visões.
|
gnósticos
|
I
Jo.2.20,27; 4.1; Jd.8
|
6
|
Valorizavam
apenas as leis Mosaicas e tinham má interpretação da mesma.
|
judaizantes
|
I
Jo.3.4
|
7
|
Ultrapassavam
a doutrina de Cristo, ensinando mais que os apóstolos ensinaram.
|
gnósticos
e judaizantes
|
II
Jo.1.9
|
8
|
Tentavam
ganhar adeptos entre os crentes caluniando os apóstolos e líderes.
|
judaizantes
e gnósticos
|
Jd.8,10,16.
(Gl.1.10-2.14)
|
A partir das características acima é possível traçar os problemas que a
igreja estava passando e quais as respostas levantadas por João e Judas foram
usadas para combater os falsos profetas. Levando em consideração que o
gnosticismo não tinha forma definida, no primeiro século, e que havia falsos
profetas dos dois grupos, espalhados pelas estradas de Roma, com o propósito de
atacarem as igrejas, abordaremos o problema pressupondo que ambos os grupos
estavam em vista, ainda que o gnosticismo, em sua forma embrionária, tenha se
sobressaído no final do primeiro século.
Os gnósticos, ainda que sincréticos, tinham como base doutrinária a
filosofia dualista de Platão. A matéria era considerada má, enquanto o reino
espiritual era perfeito e bom. Sendo assim, para os gnósticos era impossível
que Jesus, uma vez que fosse o Filho de Deus, o Cristo enviado para nos salvar,
sendo essencialmente bom, sem pecado, pudesse ter vindo em carne através do
nascimento virginal. Uma vez que a salvação, para os gnósticos, era proveniente
do conhecimento e não dá substituição na cruz, não seria necessário que Jesus
tivesse vindo em carne como real homem, um de nós.
No entanto, para a igreja de Cristo, sem a encarnação do verbo, e sem a
crucificação de Jesus, não há salvação. O apóstolo João combateu esse ensino
demoníaco, de espíritos enganadores, característico do anticristo, pois ameaçava
os fundamentos do cristianismo. O primeiro versículo de I João é muito mais que
uma introdução da carta. O apóstolo tem o propósito de, enfaticamente, afirmar
a encarnação do verbo: “o que vimos com
nosso olhos, o que contemplamos, e as nossas mãos apalparam” (I Jo.1.1). Parece
desnecessária a sequência de palavras: “Vimos”, “olhos”, “contemplamos”, mas a
resposta enfática de João deixa claro o cerne do problema sofrido por seus
destinatários. João não deixa espaço para dúvidas sobre a encarnação do Filho
de Deus. Os discípulos tiveram a oportunidade de contemplar Cristo durante três
anos e ainda tocaram no mestre. Não havia qualquer possibilidade de Jesus ter
sido um fantasma, um espírito enviado dos céus. Cristo veio em carne e osso, e
João testificava, pois havia andado com Jesus. Mais adiante, o apóstolo alerta
a igreja com respeito aos falsos mestres: “Nisto
reconheceis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa que Jesus Cristo
veio em carne é de Deus” (I Jo.4.2). A igreja precisava avaliar a pregação
dos profetas itinerantes, “porque muitos
enganadores têm saído pelo mundo fora, os quais não confessam Jesus Cristo
vindo em carne; assim é o enganador e o anticristo.” (II Jo.7). Aceitar a
mensagem dos falsos profetas era renegar as bases do verdadeiro cristianismo.
Apesar de serem curtas, encontramos 24 vezes o termo “Filho” nas primeiras
duas cartas de João. A insistência de mencionar Jesus como Filho e “Verdadeiro Deus” (I Jo.5.20), faz-nos
compreender que alguns falsos profetas, judaizantes ou não, não acreditavam que
Jesus fosse Deus. Para os gnósticos, tudo voltava para Deus, pois tudo emanava
de Deus. A criação, desta forma, era divina por essência. Divinizar Jesus não
era um problema para os gnósticos, a menos que houvesse a aceitação de Jesus como
verdadeiro homem; pois, era inaceitável para alguns deles a relação: humano e
divino. As culturas pagãs tinham o costume de divinizar seus imperadores, reis,
governantes entre outros, pois as mitologias formaram o ambiente religioso dos
povos. Quando fizeram sinais, em nome de Cristo, Paulo e Barnabé foram chamados
pelo nome de deuses pagãos como se estes tivessem tomado a forma corpórea
(At.14.11-13). Contudo, dentro das filosofias gnósticas essa união não era
possível.
Os falsos profetas podiam ser agrupados em dois modos de vida. O primeiro
grupo era ascético, comum tanto entre alguns judeus, essênios por exemplo, como,
também, entre alguns gnósticos que procuravam mortificar a carne como forma de
libertar o espírito. O segundo grupo era completamente oposto ao primeiro: os
libertinos. Este grupo é encontrado entre gnósticos que acreditavam não ser
importante um estilo santo de vida, pois ao final o espírito se libertaria do
corpo. Esse último grupo estava causando problemas nas igrejas supervisionadas
pelo apóstolo João, entre outras. Os libertinos davam vazão a todas as
concupiscências da carne (I Jo.2.16), vivendo uma vida de pecado (I Jo.3.6)
segundo as paixões do coração (Jd.16), como escarnecedores (Jd.18), provocando
divisões com murmurações e contendas (Jd.16,19), numa vida emergida em
sensualidade (Jd.19). Segundo AUGUSTUS (2008, p.145), “tudo isso significa que os mestres combatidos por Judas eram não
regenerados, mundanos, terrenos, e que nunca foram enviados por Deus”.
Para sustentar suas heresias os gnósticos precisavam de alguma base
revelacional. Os gnósticos não tinham as escrituras do Antigo Testamento como
regra de fé e prática. Para ganhar adeptos, suas doutrinas deveriam ser
derivadas de algum veículo que inspirasse confiança ao público. Por isso,
fizeram uso de pseudo-epígrafos escrevendo em nome de algum personagem
conhecido e importante das Escrituras cristãs. Eles, também, se consideravam
portadores de revelações especiais concedidas somente a eles. Judas chama esses
impostores de “sonhadores alucinados”
(Jd.8), pois ainda que a cosmovisão fosse platônica, as pregações eram baseadas
em suas novas revelações. Como seres mais espirituais, eles propagavam um
suposto conhecimento que salvaria a igreja. Como seres espirituais desejavam,
também, proeminência, e não precisavam se submeter a qualquer liderança
política ou religiosa (Jd.8). Por isso, os autores bíblicos chamam a atenção
para o fato de que a igreja não precisava de novas revelações que contrapunham
tudo que haviam recebido da parte dos apóstolos de Jesus, pois tinha recebido a
“fé que uma vez por todas foi entregue
aos santos” (Jd.3). A igreja conhecia os “mandamentos antigos” (I Jo.2.7), a “verdade” (I Jo.2.21) recebida desde o princípio, e por eles deveria
viver.
Além dos gnósticos, os judaizantes também perturbaram a igreja, por isso disse
João: “Todo aquele que pratica o pecado
também transgride a lei, porque o pecado é a transgressão da lei.” (I Jo.3.4). Esta pequena afirmação de
João remete-nos ao sermão do monte proferido por Jesus em Mateus 5 a 7. Os judeus propagavam a
salvação por obras da lei, através do Pentateuco, mas não percebiam que eles
mesmos quebravam a Lei o dia todo (Rm.2-3). Os fariseus pecavam constantemente
no coração, no olhar, no pensar, no falar, mas não conseguiam ver isto, ou
fingiam hipocritamente não ver. João parece confrontar o mesmo tipo de atitude.
Algumas pessoas estavam apegando-se aos rigores formais da lei Mosaica e
invalidando seus próprios pecados. Era assim que estavam vivendo os judeus
religiosos do primeiro século. Cheios de tradições e rigores legais, e não
conseguiam ver seus abundantes pecados; e, pior que isso, não conseguiam ver a
necessidade da graça salvadora de Cristo.
Os falsos profetas ultrapassavam a doutrina de Cristo ora barateando a
graça ora substituindo-a pela justiça própria. Eles não se conformavam com a
mensagem da cruz, o evangelho da graça puro e simples. Sempre complicavam a
mensagem com inovações e sistemas doutrinários complexos (I Tm.1.4; Tt.3.9). Ao
acrescentarem inovações à doutrina pura de Cristo, camuflavam o evangelho
tornando-o irreconhecível. Como disse Paulo: “se alguém vos prega evangelho que vá além daquele que recebestes, seja
anátema.” (Gl.1.9). Por isso, os falsos profetas foram tratados como ímpios
insolentes (Jd.4,10,16,18). Para alastrarem seus ensinos heréticos, os falsos
profetas tinham o hábito de falar contra os líderes. Paulo teve a necessidade
de defender seu apostolado (Gl.1.10-2.14) diante das acusações de muitos falsos
profetas que se infiltravam nas igrejas para disseminar seus ensinos,
invalidando os ensinos apostólicos. Os falsos profetas costumavam considerarem-se
portadores da verdade quer pela tradição (judeus) quer por novas revelações
especiais confiadas somente a eles (gnósticos). Desta forma, não se submetiam
às autoridades em geral.
Este comportamento deveria ser repugnado pela igreja.
Diótrefes, na terceira carta de João, estava tendo comportamento
semelhante ao dos falsos profetas. Desejava ter a “primazia” (III Jo.9) entre os demais, opondo-se inclusive ao
apóstolo João. Ainda que Diótrefes não seja mencionado como um provável falso
profeta, sua conduta é reprovável. A forma como João descreve a atitude de
Diótrefes é semelhante à de Judas ao referir-se aos falsos profetas que “rejeitam governo e difamam autoridades
superiores” (Jd.8), e “quanto a tudo
o que não entendem, difamam” (Jd.10). Diótrefes estava se comportando como
um falso mestre, demonstrando falta de conhecimento de Deus (III Jo.11).
Na variedade de comportamento e ensinos heréticos combatidos nas cartas,
encontramos diversos grupos de pensamentos propagados por vários falsos
profetas que assolavam a igreja naqueles dias. Suas ameaças ainda estão
presentes hoje através de ensinos semelhantes e comportamentos tão deploráveis
quanto os do passado. A igreja do século XXI deve atender ao chamado do Senhor,
a fim de batalhar diligentemente “pela fé
que uma vez por todas foi entregue aos santos.” (Jd.3), aguardando fielmente a volta de seu Senhor e Salvador
Jesus Cristo, o Filho do Deus vivo.
[1] Prefácio do livro: Apócrifos da Bíblia e pseudo-epígrafos,
organizado por Eduardo de Proença, São Paulo, Fonte Editorial, 2005.
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