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sábado, 30 de junho de 2018

O Estado conforme a Escritura

Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores; porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas.” (Rm.13.1)

Nesses dias de forte tensão política, as pessoas passaram a dar maior atenção para a importância do governo. Os tremores que abalaram a nação sacudiram muitos túmulos de cristãos adormecidos, fazendo ressurgir a voz profética da igreja. Diversos cristãos despertaram para as implicações da política no dia a dia da sociedade, reacendendo, assim, o interesse por saber a melhor forma de governo, conforme a Escritura. E tendo em vista a importância do assunto, não foi deixado sem respostas da parte do Senhor. Por essa razão, nos dispomos a apresentar uma resposta bíblica para algumas questões: Qual a resposta bíblica para a desigualdade? Qual o núcleo fundamental de uma nação? Qual deveria ser o papel do Estado, de acordo com a Escritura? Qual o modelo bíblico de Estado?

Basicamente, encontramos, na Escritura, a presença de três cenários onde se desenrola a história da redenção: O primeiro cenário é um grande tribunal cósmico no qual Deus julga toda a criação, sendo: Cristo, o pagador da dívida e o advogado de defesa; a humanidade, ocupante do banco dos réus, culpada por seus muitos pecados; Satanás, o advogado de acusação; anjos, testemunhas de todo desenrolar do julgamento cósmico. A quebra da Lei divina (Gn.2.15-17; 3.1-24) é a causa da instalação do grande tribunal cósmico, justo e reto, que visa julgar o homem conforme e santa justiça do Senhor.

Gênesis 18:25  Longe de ti o fazeres tal coisa, matares o justo com o ímpio, como se o justo fosse igual ao ímpio; longe de ti. Não fará justiça o Juiz de toda a terra?
Juízes 11:27  Não sou eu, portanto, quem pecou contra ti! Porém tu fazes mal em pelejar contra mim; o SENHOR, que é juiz, julgue hoje entre os filhos de Israel e os filhos de Amom.
1 Samuel 24:15  Seja o SENHOR o meu juiz, e julgue entre mim e ti, e veja, e pleiteie a minha causa, e me faça justiça, e me livre da tua mão
Salmos 7:11  Deus é justo juiz, Deus que sente indignação todos os dias
Lucas 18:7  Não fará Deus justiça aos seus escolhidos, que a ele clamam dia e noite, embora pareça demorado em defendê-los?
2 Timóteo 4:8  Já agora a coroa da justiça me está guardada, a qual o Senhor, reto juiz, me dará naquele Dia; e não somente a mim, mas também a todos quantos amam a sua vinda
Tiago 4:12  Um só é Legislador e Juiz, aquele que pode salvar e fazer perecer; tu, porém, quem és, que julgas o próximo?

O segundo cenário é um templo cósmico no qual Deus é adorado por todos os seres, sendo: Cristo, o Cordeiro sacrificado e o Sumo sacerdote que oferece o sacrifício; a igreja, povo de sacerdotes que servem a Deus em adoração continuamente, por meio de suas orações e pregações da Palavra de Deus; Satanás, um ídolo usurpador da adoração devida somente ao Senhor; os perdidos, pagãos que vivem fora do templo de Deus e devotam seu ídolo: Satanás; o universo é o grande Templo de Deus, no qual todos os seres viventes devem adorá-lo. No livro de Salmos, toda a criação é conclamada a adorar a Deus e cantar louvores ao Senhor que ora aparece como Deus ora como Rei ora como Juiz de toda a terra. E, no livro de Apocalipse, João recebe a visão daquele que está assentando no trono celestial (Rei e Juiz) para ser adorado por todos os seres criados nos céus, na terra e debaixo da terra.

Gênesis 4:3-4  Aconteceu que no fim de uns tempos trouxe Caim do fruto da terra uma oferta ao SENHOR.  4 Abel, por sua vez, trouxe das primícias do seu rebanho e da gordura deste. Agradou-se o SENHOR de Abel e de sua oferta
Êxodo 18:10-12  e disse: Bendito seja o SENHOR, que vos livrou da mão dos egípcios e da mão de Faraó;  11 agora, sei que o SENHOR é maior que todos os deuses, porque livrou este povo de debaixo da mão dos egípcios, quando agiram arrogantemente contra o povo.  12 Então, Jetro, sogro de Moisés, tomou holocausto e sacrifícios para Deus; e veio Arão e todos os anciãos de Israel para comerem pão com o sogro de Moisés, diante de Deus
Salmo 47:6-8  Salmodiai a Deus, cantai louvores; salmodiai ao nosso Rei, cantai louvores.  7 Deus é o Rei de toda a terra; salmodiai com harmonioso cântico.  8 Deus reina sobre as nações; Deus se assenta no seu santo trono.
Salmo 96:11-13  Alegrem-se os céus, e a terra exulte; ruja o mar e a sua plenitude.  12 Folgue o campo e tudo o que nele há; regozijem-se todas as árvores do bosque,  13 na presença do SENHOR, porque vem, vem julgar a terra; julgará o mundo com justiça e os povos, consoante a sua fidelidade.
Salmo 100:1-4  Celebrai com júbilo ao SENHOR, todas as terras.  2 Servi ao SENHOR com alegria, apresentai-vos diante dele com cântico.  3 Sabei que o SENHOR é Deus; foi ele quem nos fez, e dele somos; somos o seu povo e rebanho do seu pastoreio.  4 Entrai por suas portas com ações de graças e nos seus átrios, com hinos de louvor; rendei-lhe graças e bendizei-lhe o nome.
Apocalipse 5:8-14  e, quando tomou o livro, os quatro seres viventes e os vinte e quatro anciãos prostraram-se diante do Cordeiro, tendo cada um deles uma harpa e taças de ouro cheias de incenso, que são as orações dos santos,  9 e entoavam novo cântico, dizendo: Digno és de tomar o livro e de abrir-lhe os selos, porque foste morto e com o teu sangue compraste para Deus os que procedem de toda tribo, língua, povo e nação  10 e para o nosso Deus os constituíste reino e sacerdotes; e reinarão sobre a terra.  11 Vi e ouvi uma voz de muitos anjos ao redor do trono, dos seres viventes e dos anciãos, cujo número era de milhões de milhões e milhares de milhares,  12 proclamando em grande voz: Digno é o Cordeiro que foi morto de receber o poder, e riqueza, e sabedoria, e força, e honra, e glória, e louvor.  13 Então, ouvi que toda criatura que há no céu e sobre a terra, debaixo da terra e sobre o mar, e tudo o que neles há, estava dizendo: Àquele que está sentado no trono e ao Cordeiro, seja o louvor, e a honra, e a glória, e o domínio pelos séculos dos séculos.  14 E os quatro seres viventes respondiam: Amém! Também os anciãos prostraram-se e adoraram

O terceiro cenário é um reino, o Reino de Deus, no qual o Senhor Reina sobre tudo e todos, sendo: Cristo, o herdeiro do trono; povo de Deus, pessoas libertas do império das trevas; Satanás, senhor de um reino parasita que existe à custa do Reino de Deus; perdidos, pessoas escravas do império das trevas que vivem para satisfazer a vontade de seu senhor: o diabo; universo, envolvendo as dimensões visível e invisível, compõe o território do Reino de Deus, Senhor de tudo e todos. Como Senhor e Rei de tudo, Deus legisla, julga e executa sua vontade. Em alguns momentos, o Grande Rei de toda a criação também sai como General de um grande exército para guerrear contra seus inimigos.

1 Samuel 8:6-7  Porém esta palavra não agradou a Samuel, quando disseram: Dá-nos um rei, para que nos governe. Então, Samuel orou ao SENHOR.  7 Disse o SENHOR a Samuel: Atende à voz do povo em tudo quanto te diz, pois não te rejeitou a ti, mas a mim, para eu não reinar sobre ele.
Salmo 47:2-3  Pois o SENHOR Altíssimo é tremendo, é o grande rei de toda a terra.  3 Ele nos submeteu os povos e pôs sob os nossos pés as nações
8 Deus reina sobre as nações; Deus se assenta no seu santo trono.
Salmo 93:1-2  Reina o SENHOR. Revestiu-se de majestade; de poder se revestiu o SENHOR e se cingiu. Firmou o mundo, que não vacila.  2 Desde a antiguidade, está firme o teu trono; tu és desde a eternidade.
Salmo 96:10  Dizei entre as nações: Reina o SENHOR. Ele firmou o mundo para que não se abale e julga os povos com equidade.
Salmo 97:1  Reina o SENHOR. Regozije-se a terra, alegrem-se as muitas ilhas.
Salmo 99:1-4  Reina o SENHOR; tremam os povos. Ele está entronizado acima dos querubins; abale-se a terra.  2 O SENHOR é grande em Sião e sobremodo elevado acima de todos os povos.  3 Celebrem eles o teu nome grande e tremendo, porque é santo.  4 És rei poderoso que ama a justiça; tu firmas a equidade, executas o juízo e a justiça em Jacó.
Isaías 52:7  Que formosos são sobre os montes os pés do que anuncia as boas-novas, que faz ouvir a paz, que anuncia coisas boas, que faz ouvir a salvação, que diz a Sião: O teu Deus reina!
Daniel 4:37  Agora, pois, eu, Nabucodonosor, louvo, exalço e glorifico ao Rei do céu, porque todas as suas obras são verdadeiras, e os seus caminhos, justos, e pode humilhar aos que andam na soberba.
Apocalipse 19:6  Então, ouvi uma como voz de numerosa multidão, como de muitas águas e como de fortes trovões, dizendo: Aleluia! Pois reina o Senhor, nosso Deus, o Todo-Poderoso.

Esses três cenários comunicam o caráter jurídico, religioso e político do cosmo, criado para a glória do Senhor: Juiz, Deus e Rei. Por meio desses três cenários, Deus fornece o perfeito modelo jurídico, religioso e político para que o homem o aplique em suas relações sociais, glorificando a Deus pela correta prática da vontade divina no judiciário, nos cultos e na política, como perfeito imitador do Criador. A política, portanto, encontra no governo divino seu modelo perfeito e tem na Escritura todas as instruções necessárias, “para que vivamos vida tranquila e mansa, com toda piedade e respeito. Isto é bom e aceitável diante de Deus, nosso Salvador” (1Tm.2.2-3).

Nosso interesse particular nesse artigo é analisar o cenário político no qual se desenrola a história redentora. E mesmo que este cenário inclua as mais diversas civilizações que participaram, em alguma medida, da Revelação da história redentora, a Escritura não possui um caráter meramente descritivo sobre a política. Ou seja, não somos apenas espectadores de uma ampla narrativa. A Escritura revela a vontade de Deus, legislando seu querer, a fim de que o homem a coloque em prática. O principal material que versa sobre a política é o Pentateuco, a constituição de Israel, fundamento para todas as civilizações, a fim de que a justa justiça divina impere em todos os povos.

A supremacia do contentamento sobre a Igualdade social

Antes de analisarmos a política ao longo da história redentora, consideramos importante mostrar que a igualdade, em sentido político, nunca foi um ideal da política divina. Ou seja, não faz parte do propósito de Deus que suas criaturas sejam politicamente iguais, mas que tenham igual regozijo em Deus, mesmo diante da desigualdade: “O rico e o pobre se encontram; a um e a outro faz o SENHOR.” (Pv.22.2). Podemos observar isso nas diversas ordens de anjos, na distribuição de competências e bens dados aos homens e, até mesmo, nas diferenças entre os demais seres vivos, administrados “politicamente”.

A Escritura revela uma ordem angelical, plenamente feliz em Deus, em que os anjos possuem tanto funções variadas quanto status diferentes. Miguel é chamado de “grande príncipe” e “arcanjo”, aparecendo em Apocalipse como líder do exército angelical na luta contra o dragão. Aparecem, ainda, mais duas outras classes: Querubim e Serafim.

Arcanjo
Daniel 12:1  Nesse tempo, se levantará Miguel, o grande príncipe, o defensor dos filhos do teu povo, e haverá tempo de angústia, qual nunca houve, desde que houve nação até àquele tempo; mas, naquele tempo, será salvo o teu povo, todo aquele que for achado inscrito no livro
1 Tessalonicenses 4:16  Porquanto o Senhor mesmo, dada a sua palavra de ordem, ouvida a voz do arcanjo, e ressoada a trombeta de Deus, descerá dos céus, e os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro
Judas 1:9  Contudo, o arcanjo Miguel, quando contendia com o diabo e disputava a respeito do corpo de Moisés, não se atreveu a proferir juízo infamatório contra ele; pelo contrário, disse: O Senhor te repreenda!
Apocalipse 12:7  Houve peleja no céu. Miguel e os seus anjos pelejaram contra o dragão. Também pelejaram o dragão e seus anjos

Querubim
Êxodo 37:8  Um querubim, na extremidade de uma parte, e o outro, na extremidade da outra parte; de uma só peça com o propiciatório fez os querubins nas duas extremidades dele
Ezequiel 28:14  Tu eras querubim da guarda ungido, e te estabeleci; permanecias no monte santo de Deus, no brilho das pedras andavas

Serafim
Isaías 6:2  Serafins estavam por cima dele; cada um tinha seis asas: com duas cobria o rosto, com duas cobria os seus pés e com duas voava

Encontramos, ainda, o anjo Gabriel que aparece como mensageiro da Revelação divina. Seu nome aparece apenas duas vezes no Antigo Testamento, no livro de Daniel (Dn.8.16; 9.21) e duas vezes no Novo Testamento, no livro de Lucas (Lc.1.19,26). Parece ser o principal anjo mensageiro de Deus, responsável por anunciar o nascimento do maior profeta: João Batista (Lc.1.19), e do Filho de Deus, Jesus, (Lc.1.26), além de explicar a visão que Daniel recebeu do Senhor, a respeito dos dias de Cristo (Dn.8.16; 9.21).

Portanto, mesmo entre os seres celestiais há diferenças em que uns se destacam mais que outros, porque recebem status diferentes da parte de Deus. Caso fossem seres humanos pecadores, essas diferenças seriam a causa de muitos problemas sociais, pois o coração pecador despertaria para a inveja e a cobiça, como ocorreu com Caim que invejou seu irmão e o matou: “Caim, que era do Maligno e assassinou a seu irmão; e por que o assassinou? Porque as suas obras eram más, e as de seu irmão, justas” (1Jo.3.12). Todavia, a plena satisfação em Deus basta para os seres celestiais,

Diferenças provenientes de Deus também são encontradas entre os homens. Os súditos do Reino de Deus não são iguais em competências recebidas: “Ora, os dons são diversos, mas o Espírito é o mesmo. E também há diversidade nos serviços, mas o Senhor é o mesmo. E há diversidade nas realizações, mas o mesmo Deus é quem opera tudo em todos” (1Co.12.4-6//Ex.35.30-35), nem recebem iguais porções de bens: “O SENHOR empobrece e enriquece; abaixa e também exalta” (1Sm.2.7). Todavia, todos devem viver plenamente satisfeitos com o que tem, conforme disse Paulo: “tendo sustento e com que nos vestir, estejamos contentes” (1Tm.6.8). Por toda a Escritura, Deus concede dons para algumas pessoas em detrimento de outras: “Falarás também a todos os homens hábeis a quem enchi do espírito de sabedoria, que façam vestes para Arão para consagrá-lo, para que me ministre o ofício sacerdotal” (Ex.28.3) e, ainda, distribui status e bens em medidas diferentes para os homens:

Gênesis 37:5-8   Teve José um sonho e o relatou a seus irmãos; por isso, o odiaram ainda mais.  6 Pois lhes disse: Rogo-vos, ouvi este sonho que tive:  7 Atávamos feixes no campo, e eis que o meu feixe se levantou e ficou em pé; e os vossos feixes o rodeavam e se inclinavam perante o meu.  8 Então, lhe disseram seus irmãos: Reinarás, com efeito, sobre nós? E sobre nós dominarás realmente? E com isso tanto mais o odiavam, por causa dos seus sonhos e de suas palavras.

Dessa forma, as diferenças entre os homens procedem do próprio Criador que dá medidas diferentes às pessoas e lhes exige igual contentamento, pois Deus deve bastar-lhes (1Ts.5.18; 2Co.12.9). Essas medidas distintas não tornam os homens diferentes, pois todos os seres humanos possuem a mesma origem (Adão e Eva), imagem (divina) e essência (corpo e alma). Além disso, todas as pessoas têm a mesma fonte de felicidade (Deus), mesma razão de existir (Criador), mesmo propósito de vida (glorificar o Senhor) e mesma esperança disponibilizada em Cristo Jesus (vida eterna). Ou seja, a desigualdade social não justifica uma desigual felicidade nem os demais pecados do homem: inveja, cobiça, tirania, maldade, intrigas, furtos, assassinatos, avareza etc. Antes, a igual fonte e propósito de todas as coisas: Deus, é suficiente para que todos os homens tenham igual satisfação quer pobres quer ricos, pois, diz o salmista, “na tua presença há plenitude de alegria, na tua destra, delícias perpetuamente” (Sl.16.11).

No decurso da história redentora, o Senhor escolheu alguns em detrimento de muitos outros para realizarem obras especiais, destacando-os dentre os demais:

Abraão
Gênesis 18:19  Porque eu o escolhi para que ordene a seus filhos e a sua casa depois dele, a fim de que guardem o caminho do SENHOR e pratiquem a justiça e o juízo; para que o SENHOR faça vir sobre Abraão o que tem falado a seu respeito
Eli
1 Samuel 2:28  Eu o escolhi dentre todas as tribos de Israel para ser o meu sacerdote, para subir ao meu altar, para queimar o incenso e para trazer a estola sacerdotal perante mim; e dei à casa de teu pai todas as ofertas queimadas dos filhos de Israel
Davi
1 Samuel 16:1  Disse o SENHOR a Samuel: Até quando terás pena de Saul, havendo-o eu rejeitado, para que não reine sobre Israel? Enche um chifre de azeite e vem; enviar-te-ei a Jessé, o belemita; porque, dentre os seus filhos, me provi de um rei
Ciro
Isaías 45:1  Assim diz o SENHOR ao seu ungido, a Ciro, a quem tomo pela mão direita, para abater as nações ante a sua face, e para descingir os lombos dos reis, e para abrir diante dele as portas, que não se fecharão
Os apóstolos
Mateus 19:28  Jesus lhes respondeu: Em verdade vos digo que vós, os que me seguistes, quando, na regeneração, o Filho do Homem se assentar no trono da sua glória, também vos assentareis em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel
Parábola dos talentos
Mateus 25:14-15  Pois será como um homem que, ausentando-se do país, chamou os seus servos e lhes confiou os seus bens.  15 A um deu cinco talentos, a outro, dois e a outro, um, a cada um segundo a sua própria capacidade; e, então, partiu

Portanto, mesmo que todas as pessoas sejam iguais em essência diante de Deus (1Co.11.11-12), Deus não concede igualdade social para todas as pessoas. Todos têm, diante de Deus e dos homens, igual direito à justiça, ao sustento, a fazer o que é certo, mas não recebem as mesmas dádivas do Senhor. Isso não torna algumas pessoas melhores do que outras, apenas lhes concede vidas sociais diferentes, o que não lhes impede de ter a mesma felicidade, pois esta felicidade provém do Senhor “o qual é sobre todos, age por meio de todos e está em todos” (Ef.4.6); “abundante em benignidade para com todos os que te invocam” (Sl.86.5), como disse Davi: “Mais alegria me puseste no coração do que a alegria deles, quando lhes há fartura de cereal e de vinho” (Sl.4.7).

Diante de todas as diferenças, Deus ordena ao homem que não cobice aquilo que foi dado ao outro (Ex.20.17) nem reclame daquilo que recebeu do Senhor (Jo.6.43; 1Co.10.10). Um grande propósito em tudo isso é apontar para o contentamento em Deus. Ou seja, o homem deve ser feliz no Criador, de modo que conhecer a Deus e pertencer a Ele lhe seja suficiente, conforme disse Davi: “a tua graça é melhor do que a vida” (Sl.63.3). Cristo apontou para esse propósito divino quando advertiu seus discípulos sobre a razão da alegria deles, após tê-los enviado a pregarem a Palavra de Deus nas cidades:

Lucas 10:17-20  Então, regressaram os setenta, possuídos de alegria, dizendo: Senhor, os próprios demônios se nos submetem pelo teu nome!  18 Mas ele lhes disse: Eu via Satanás caindo do céu como um relâmpago.  19 Eis aí vos dei autoridade para pisardes serpentes e escorpiões e sobre todo o poder do inimigo, e nada, absolutamente, vos causará dano.  20 Não obstante, alegrai-vos, não porque os espíritos se vos submetem, e sim porque o vosso nome está arrolado nos céus.

A alegria do homem não deve ser depositada em ter ou não ter algo, mas no Senhor. Sendo assim, tanto ter quanto não ter são testes importantes que visam identificar aqueles que realmente amam a Deus de todo o coração. Aqueles que têm muito não devem fazer de suas posses a fonte de sua alegria nem aqueles que têm pouco devem cobiçar, como se ter algo fosse a razão da felicidade do homem. A desigualdade, então, cumpre importante papel na identificação daqueles que realmente se satisfazem em Deus, pois a plena satisfação no Senhor, Criador de tudo, basta para que todos os homens sejam plenamente felizes.

A tentativa de impor igualdade social sempre será frustrada, porque o problema do homem não se encontra naquilo que ele tem, mas em seu coração pecador. Sempre haverá algo a mais no outro que se torne motivo para a cobiça do coração, como diz o ditado popular: “a grama do vizinho é sempre mais verde”. Mesmo que todos tivessem iguais pertences, o homem cobiçaria a mulher do outro ou os dons diferentes do próximo ou a aparência mais agradável do colega ou o temperamento mais interessante naqueles que se destacam etc. Portanto, sempre haverá desigualdade entre os homens, e caso não haja contentamento em seu coração, a realidade jamais bastará, porque a insatisfação encontra-se no coração do pecador.

Todavia, o contentamento é solução para os problemas sociais. Por meio do contentamento, o homem tanto se satisfaz com o que tem, muito ou pouco, quanto se dispõe a ajudar aquele que realmente nada tem, já que se satisfaz com pouco. O contentamento vence a cobiça do coração e conduz o homem a dar graças ao Senhor por tudo, quer pouco quer muito. O contentamento é aplicável a todas as circunstâncias e aproxima os homens entre si. Por meio do contentamento, uma nação pode combater o problema do alto índice de divórcios, pois os cônjuges estarão contentes com o próprio casamento e procurarão preservá-lo com cuidados necessários, em vez de substituí-lo como fruto de um descontentamento. Assim, o contentamento se mostra superior à igualdade social, solução divina para que a sociedade viva bem, em plena harmonia, mesmo que a uns tenha sido dado muito e para outros Deus tenha confiado pouco (Mt.25.14-30).

A origem do Estado

Tudo começou, e começa, com uma família. Ou seja, a família gera o Estado não o Estado gera a família. Mesmo que Adão tenha sido formado primeiro, Deus viu que não seria “bom que o homem esteja só” (Gn.2.18) e, então, criou a mulher no fim do sexto dia (Gn.2.18-25). A partir do sétimo dia, portanto, a história se desenrola com uma família, em que o homem é o regente da criação e a mulher sua auxiliadora (1Co.2.18). Os elementos fundamentais de um governo já podem ser contemplados em sua constituição mais básica: autoridade, educação e juízo. Na família, o homem governa com autoridade instituída por Deus, mas deve fazê-lo para o bem de sua esposa e filhos. Adão era responsável por transmitir as Leis do Senhor através meio do ensino tanto para Eva quanto para seus filhos (Gn.2.15-17//3.2-3; Gn.4.2-3). Desse modo, Adão era um executor e transmissor da Lei divina, e deveria aplicá-la, também, em sua autoridade judiciária, pois deveria julgar retamente os casos de sua família.

Podemos tirar algo importante desse modelo primordial: Nem a família nem o Estado têm o papel de legislar. Tanto a família quanto o estado devem transmitir a Lei estabelecida por Deus, educando e fiscalizando seus subordinados, a fim de que todos cumpram a vontade do Senhor. Toda Lei provém de Deus que legisla sobre toda a terra: “Um só é Legislador e Juiz, aquele que pode salvar e fazer perecer” (Tg.4.12). Portanto, as leis desenvolvidas pelo Estado (e família) devem ser aplicações (e derivações) da Lei divina, não criações ao bel-prazer. Ou seja, o Estado deve pressupor, sempre, os estatutos de Deus antes de elaborar qualquer lei derivada para a nação. Quando isso não ocorre, como é costume dos povos, então o homem produz leis segundo o coração pecador (Jr.17.9), razão de tantas leis injustas e imorais regerem as nações.

Adão e Eva geraram filhos e estes se separaram formando clãs (Gn.4.17-26; 5.1-32). Caim edificou uma cidade (Gn.4.17), a primeira cidade dos homens. Cada cidade formada por esses clãs constituía um pequeno Estado regido por seu líder, o cabeça do clã. Caim foi o primeiro governante, pois teve autoridade para nomear a cidade com o nome de seu filho: “Caim edificou uma cidade e lhe chamou Enoque, o nome de seu filho” (Gn.4.17). Nessa cidade, foram estabelecidas leis segundo a vontade do homem, por isso a injustiça predominava nela. O tempo passa e um dos descendentes de Caim assume a proeminência: Lameque (Gn.4.18-24). Ele casa com duas mulheres (poligamia), mudando a Lei estabelecida por Deus (monogamia); julga com parcialidade em benefício próprio, pois mata dois homens sem justa causa (Gn.4.23); e ainda legisla injustamente em favor próprio, a fim de proteger a si mesmo: “Sete vezes se tomará vingança de Caim, de Lameque, porém, setenta vezes sete” (Gn.4.24).

Ao contrário do Estado pagão (antropocentrismo) criado por Caim e seus descendentes, a genealogia de Sete mantém Deus no centro (teocentrismo) da vida familiar, durante muito tempo (Gn.4.26). Não aparecem cidades nem novas leis nem julgamentos, transmitindo a ideia de uma vida simples e harmônica entre os filhos de Deus (Gn.5.1-32). O fato de andarem com Deus (Gn.5.22) e esperarem no Senhor (Gn.5.29), dá a entender que a primitiva Lei do Senhor regia de modo absoluto a vida dos descendentes de Sete, garantindo-lhes bem-estar e longevidade. Gênesis nos conta que Noé, mesmo em dias maus, era um homem “justo e íntegro” e “andava com Deus” (Gn.6.9), conduzindo toda sua família conforme a vontade do Senhor. Parece-nos que os filhos de Deus não possuíam uma organização estatal, apenas preservavam a estrutura familiar. Cada família tinha plena independência e autonomia sobre todos os assuntos, regidas apenas pela Lei do Senhor.

Todavia, a paz dos filhos de Deus não perdurou, já que a cidade dos homens conseguiu invadir o povo do Senhor e contaminá-lo até quase destruí-lo (Gn.6.1-7). Aparentemente, o povo de Deus não possuía um Estado forte, com líderes fortes que guiassem o povo pelo caminho de Deus, supervisionando as famílias, a fim de garantir que estivessem praticando a vontade do Senhor. Organizados apenas em famílias, o povo de Deus não foi forte o suficiente para resistir a ameaça pagã, então sucumbiu diante do Estado ímpio de Caim e seus descendentes. Parece-nos apropriado entender que esta é a primeira indicação da importância do Estado: fortalecer um povo como elo de ligação entre as famílias, garantindo seu bem-estar comum por meio da supervisão do cumprimento da Lei de Deus. Caso houvesse um Estado forte como nos dias de Davi (1Rs.15.4-5) ou Josias (2Rs.22-23), as famílias do povo de Deus seriam advertidas a rejeitarem as propostas do Estado pagão e, então, estariam protegidas contra o inimigo que ameaçava seu bem-estar: o pecado (Gn.6.1-3,5). Esta é a primeira indicação de que o povo de Deus precisava de um Rei: Cristo (Gn.49.10).

O tempo passa e muitas civilizações descendem dos filhos de Noé: Cam, Sem e Jafé (Gn.9.18-19). A formação do Estado é natural e inevitável, tendo em vista a necessidade de administrar a vida comum das famílias, mantendo a ordem, garantindo a paz, fazendo justiça entre as pessoas. Basicamente, todas as civilizações seguem o modelo monárquico de governo, com pequenas variações (Gn.14; 20; 26; 41; Nm.20; 21; Dt.3 etc): “Então, os anciãos todos de Israel se congregaram, e vieram a Samuel, a Ramá, e lhe disseram: Vê, já estás velho, e teus filhos não andam pelos teus caminhos; constitui-nos, pois, agora, um rei sobre nós, para que nos governe, como o têm todas as nações” (1Sm.8.4-5). A partir de Abraão, Isaque e Jacó, Deus forma para si um povo (Gn.17.16; Ex.1.7) denominado Israel (Ex.19.6). É para esta nação que Deus entrega suas leis, ensinando o papel do Estado na administração de um povo.

Estado, supervisor de um povo

O Estado de Israel tem início com a saída do Egito, quando o Senhor lhe concedeu autonomia (liberdade), lhe estabeleceu liderança (política, jurídica e religiosa) e leis (civis, jurídicas e cúlticas) que deveriam ser cumpridas por toda a nação (Ex.18; Nm.12 e 16; Dt.4.1-2), mesmo antes de possuir uma terra. Por quarenta anos, o Estado de Israel foi peregrino morando em terras estranha, pois sua terra era o chão que pisava. Antes disso (no Egito), Israel era apenas um povo, formado de muitas famílias, sem líder nem juiz: “Quem te pôs por príncipe e juiz sobre nós?” (Ex.2.14), nem sacerdócio (Ex.28) nem leis (Ex.15.25. Tinha apenas as leis dadas aos patriarcas – Gn.26.5). Provavelmente, a falta de liderança (governo) tornou Israel uma presa fácil do Egito, incapaz de lutar contra a tirania de Faraó, mesmo sendo mais forte que os egípcios (Ex.1.9).

Todas as leis do Estado de Israel foram estabelecidas por Deus (Ex.15.26), a fim de regerem a vida de toda a nação. Com o surgimento da monarquia, algumas leis são anexadas à constituição de Israel (1Sm.8.10-18), mesmo que Deus já tivesse antecipado algo por meio de Moisés (Dt.17.14-20). As leis de Israel tratam os mais diversos assuntos necessários ao Estado, tendo nos dez mandamentos seu resumo (Ex.20.1-17; Dt.5.1-21):

Leis sobre o trabalho público - Ex.22.28; Nm.15.34; Nm.31.14; Dt.20.9
Direitos e deveres referentes à propriedade privada - Nm.34.1-29; Lv.25.23-34
Leis sobre o casamento - Ex.22.16-17; Lv.18; Dt.22.13-30; Dt.24.1-5; Dt.25.5-12 (sustento familiar)
Leis sobre imigrantes - Ex. 12.43,45,48,49; Ex.22.21; Lv.19.33-34
Relações e direitos trabalhistas - Ex.12.44; Ex.21.1-11; Ex.35.1-3 (Mc.2.27); Lv.25.1-7,39-55; Dt.15.12-18; Dt.24.14-15; Dt.25.4
Cuidado com os pobres - Ex.22.22-24; Ex.23.3; Lv.19.9-10; 25.35-38; Dt.15.1-11; Dt.24.17-22
Transações comerciais - Ex.22.25-27; Lv.19.11-13, 35-37; Dt.24.6, 10-13; Dt.25.13-16
Construção civil - Dt.22.8
Educação de filhos - Ex.13.8,14; Dt.6.7,20-25
Diversas leis morais - Ex.22.19; Ex.23.1-5; Dt.22.1-11
Leis sobre saúde pública - Lv.11-15; Dt.24.8
Leis judiciárias - Ex.18.13-26; Ex.21.1-36; Ex.22.1-15; Ex.23.6-9; Lv.19.15; Lv.20; Nm.35.9-34; Dt.4.41-43; Dt.16.18-20; Dt.17.8-13; Dt.19.1-21; Dt.24.7,16; Dt.25.1-3
Leis políticas - Dt.17.14-20
Leis sacerdotais - Ex.12.1-28; 23.14-19; 29.1-30.38; 34.18-28 etc.

Qual o papel do Estado? O Estado deveria garantir o cumprimento das leis exigidas dos cidadãos, como um supervisor. Não era papel do Estado sustentar os pobres nem educar os filhos nem ser mediador das transações comerciais. O Estado deveria apenas garantir que as famílias cumprissem a Lei: respeitando o direito da propriedade privada, ajudando os pobres, sustentando os familiares, tratando bem os estrangeiros, sendo íntegros em suas transações e relações trabalhistas etc. Portanto, antes da monarquia, o papel do Estado era mínimo, pois cumpria às famílias o direito e o dever de proceder bem em sociedade, a fim de que a nação fosse exemplar na prática do amor, da justiça e da verdade. Quando as famílias não cumpriam seus deveres, o judiciário deveria intervir tanto preservando o direito de cada cidadão conforme a Lei recebida de Deus quanto punindo os infratores dessa Lei (Dt.25.1).

Sem a Lei, os homens faziam a própria vontade, guiados somente por suas concepções distorcidas sobre o certo e o errado. O resultado da ausência da Lei foi a instalação do caos em toda a terra, de modo que “a terra estava corrompida à vista de Deus e cheia de violência” (Gn.6.11). Deus deu a Lei ao homem para que este pudesse viver em acordo com a sua vontade que é sempre “boa, agradável e perfeita” (Rm.12.2). Para que fosse garantido o cumprimento da Lei, Deus escolheu líderes políticos, judiciários e religiosos, compondo, assim, o Estado de Israel. A missão desses líderes era garantir que a Lei do Senhor fosse cumprida para a glória de Deus e bem-estar do povo, pois na Lei do Senhor há tudo o que é necessário para que o homem viva bem em todas as esferas da vida social.

A função de supervisor da vida social abrangia as mais diversas áreas da sociedade. O Estado deveria supervisionar a educação familiar dos filhos, garantindo o cumprimento da transmissão do conhecimento às gerações seguintes (Dt.4.10; 6.5-7). O Estado deveria supervisionar o tratamento dado aos trabalhadores, a fim de que seus direitos não fossem negligenciados: direito ao salário digno, direito ao descanso etc. (Ex.20.8-11; Dt.25.4//1Co.9.9-10; Lv.19.13). O Estado deveria supervisionar o cuidado com a saúde pública, impedindo que descuidos voluntários ou involuntários propagassem doenças pelas cidades (Lv.13-14). O Estado deveria supervisionar o cuidado para com os familiares, órfãos, viúvas e estrangeiros necessitados, observando se seus direitos legais estariam sendo respeitados, garantido, assim, que estivessem recebendo os cuidados necessários da parte de cada cidadão (Lv.25.17-55; Dt.24.19-21; 25.5-12).

Também, não podemos esquecer o importante papel estatal de manter a ordem nas cidades quer garantindo a segurança civil quer protegendo a nação diante de adversários internacionais. A segurança de Israel era garantida pelo serviço público militar composto de capitães e seus soldados (2Rs.1.9). Deus proibiu a vingança pessoal (Lv.19.18), ou seja, a justiça feita com as próprias mãos, e ordenou que todas as causas fossem levadas à presença dos juízes, a fim de que julgassem retamente, segundo ao Lei do Senhor (Ex.18.19-26; 22.9). Portanto, o Estado deveria possuir tanto uma segurança pública ativa quanto um poder judiciário atuante que zelassem pelo bem-estar da nação.

Com a instalação da monarquia, o Estado ganhou uma dimensão maior, pois diversos novos empregos públicos foram criados para estarem à disposição do governo:

1 Samuel 8:10-17  Referiu Samuel todas as palavras do SENHOR ao povo, que lhe pedia um rei,  11 e disse: Este será o direito do rei que houver de reinar sobre vós: ele tomará os vossos filhos e os empregará no serviço dos seus carros e como seus cavaleiros, para que corram adiante deles;  12 e os porá uns por capitães de mil e capitães de cinquenta; outros para lavrarem os seus campos e ceifarem as suas messes; e outros para fabricarem suas armas de guerra e o aparelhamento de seus carros.  13 Tomará as vossas filhas para perfumistas, cozinheiras e padeiras.  14 Tomará o melhor das vossas lavouras, e das vossas vinhas, e dos vossos olivais e o dará aos seus servidores.  15 As vossas sementeiras e as vossas vinhas dizimará, para dar aos seus oficiais e aos seus servidores.  16 Também tomará os vossos servos, e as vossas servas, e os vossos melhores jovens, e os vossos jumentos e os empregará no seu trabalho.  17 Dizimará o vosso rebanho, e vós lhe sereis por servos.

Com o aumento do Estado, surgiu a necessidade de aumentar os impostos (1Sm.17.25), com o fim de manter o funcionamento de toda a máquina Estatal. Portanto, quanto maior a complexidade do Estado, maior o número de serviços públicos e maiores os impostos cobrados do povo. Quando governador do Egito, José estabeleceu o imposto de 20 porcento sobre toda produção das famílias: “Das colheitas dareis o quinto a Faraó, e as quatro partes serão vossas, para semente do campo, e para o vosso mantimento e dos que estão em vossas casas, e para que comam as vossas crianças” (Gn.47.24). E em Israel, Moisés também estabeleceu impostos fixos (Ex.30.11-16) e variáveis (Lv.27.32; Nm.18.26; Dt.12.17) destinados a todo serviço público necessário. Todas as cobranças deveriam ser destinadas à manutenção dos bens e serviços públicos, para o bem-estar do povo, jamais para o enriquecimento do poder político, pois o propósito do governante era conduzir a nação na Palavra de Deus:

Deuteronômio 17:14-20  Quando entrares na terra que te dá o SENHOR, teu Deus, e a possuíres, e nela habitares, e disseres: Estabelecerei sobre mim um rei, como todas as nações que se acham em redor de mim,  15 estabelecerás, com efeito, sobre ti como rei aquele que o SENHOR, teu Deus, escolher; homem estranho, que não seja dentre os teus irmãos, não estabelecerás sobre ti, e sim um dentre eles.  16 Porém este não multiplicará para si cavalos, nem fará voltar o povo ao Egito, para multiplicar cavalos; pois o SENHOR vos disse: Nunca mais voltareis por este caminho.  17 Tampouco para si multiplicará mulheres, para que o seu coração se não desvie; nem multiplicará muito para si prata ou ouro.  18 Também, quando se assentar no trono do seu reino, escreverá para si um traslado desta lei num livro, do que está diante dos levitas sacerdotes.  19 E o terá consigo e nele lerá todos os dias da sua vida, para que aprenda a temer o SENHOR, seu Deus, a fim de guardar todas as palavras desta lei e estes estatutos, para os cumprir.  20 Isto fará para que o seu coração não se eleve sobre os seus irmãos e não se aparte do mandamento, nem para a direita nem para a esquerda; de sorte que prolongue os dias no seu reino, ele e seus filhos no meio de Israel.

O Estado não deveria se beneficiar do povo, mas servi-lo; não deveria legislar sobre o povo, mas executar a Lei do Senhor; não deveria alimentar o povo, mas ensinar as famílias a cumprirem seus deveres para com o próximo; não deveria ser uma expressão da vontade do povo, mas um fiel servo chamado para fazer a vontade de Deus. Este propósito divino para o Estado nunca foi alterado, de modo que Paulo o ensina nos dias do Novo Testamento, mesmo se referindo a Estados pagãos:

Romanos 13:1-7  Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores; porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas.  2 De modo que aquele que se opõe à autoridade resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos condenação.  3 Porque os magistrados não são para temor, quando se faz o bem, e sim quando se faz o mal. Queres tu não temer a autoridade? Faze o bem e terás louvor dela,  4 visto que a autoridade é ministro de Deus para teu bem. Entretanto, se fizeres o mal, teme; porque não é sem motivo que ela traz a espada; pois é ministro de Deus, vingador, para castigar o que pratica o mal.  5 É necessário que lhe estejais sujeitos, não somente por causa do temor da punição, mas também por dever de consciência.  6 Por esse motivo, também pagais tributos, porque são ministros de Deus, atendendo, constantemente, a este serviço.  7 Pagai a todos o que lhes é devido: a quem tributo, tributo; a quem imposto, imposto; a quem respeito, respeito; a quem honra, honra

Portanto, pesa uma grande responsabilidade sobre as pessoas que dirigem o Estado. O não cumprimento dos deveres estabelecidos por Deus, para o exercício do bom governo, acarretará em punições divinas, afinal todos prestarão contas a Deus por suas obras, cada qual de acordo com aquilo que recebeu do Senhor (Hb.4.13). Dessa forma, os governantes não deveriam temer o povo, já que sua missão não é fazer a vontade das pessoas, mas deveriam temer a Deus, pois a missão de governar é uma dádiva do Senhor (Mt.10.28), a fim de que a responsabilidade de “guardar” a criação, confiada ao homem desde Adão (Gn.2.15), continue sendo bem desenvolvida por todos, sob a supervisão dos governantes.

Família, o núcleo base da sociedade:

Um importante fator determinante para a pequena dimensão do Estado de Israel era a centralidade da família. Ou seja, enquanto o Estado supervisionava o cumprimento da Lei do Senhor, as famílias eram responsáveis pela manutenção diária da vida social. Essa responsabilidade pode ser vista nas palavras de Paulo que aplica à igreja o cuidado para com o próximo:

1 Timóteo 5:4,8-9  Mas, se alguma viúva tem filhos ou netos, que estes aprendam primeiro a exercer piedade para com a própria casa e a recompensar a seus progenitores; pois isto é aceitável diante de Deus.
8 Ora, se alguém não tem cuidado dos seus e especialmente dos da própria casa, tem negado a fé e é pior do que o descrente.  9 Não seja inscrita senão viúva que conte ao menos sessenta anos de idade, tenha sido esposa de um só marido.

Conforme Paulo, o sustento dos idosos é uma responsabilidade dos filhos ou parentes próximos. Esse procedimento é educativo e justo, pois tanto exige a prática do amor quanto a obrigação de honrar aqueles que haviam sustentado a família por muitos anos, quando os filhos eram ainda jovens. Caso alguém não tivesse filhos vivos, então a responsabilidade cairia sobre os parentes mais próximos que deveriam mostrar semelhante amor para com os familiares (Dt.5.16; 27.16). E, em casos extremos, os cidadãos deveriam mostrar compaixão para com os necessitados acolhendo-os, assim como Deus acolheu seu povo livrando-o do sofrimento do Egito e sustentando-o com pão, carne e água por quarenta anos no deserto (Lv.25.35; Dt.8.1-4). Esse é o sistema bíblico e orgânico de aposentadoria dos idosos e inválidos.

Levítico 25:35-43  Se teu irmão empobrecer, e as suas forças decaírem, então, sustentá-lo-ás. Como estrangeiro e peregrino ele viverá contigo.  36 Não receberás dele juros nem ganho; teme, porém, ao teu Deus, para que teu irmão viva contigo.  37 Não lhe darás teu dinheiro com juros, nem lhe darás o teu mantimento por causa de lucro.  38 Eu sou o SENHOR, vosso Deus, que vos tirei da terra do Egito, para vos dar a terra de Canaã e para ser o vosso Deus.  39 Também se teu irmão empobrecer, estando ele contigo, e vender-se a ti, não o farás servir como escravo.  40 Como jornaleiro e peregrino estará contigo; até ao Ano do Jubileu te servirá;  41 então, sairá de tua casa, ele e seus filhos com ele, e tornará à sua família e à possessão de seus pais.  42 Porque são meus servos, que tirei da terra do Egito; não serão vendidos como escravos.  43 Não te assenhorearás dele com tirania; teme, porém, ao teu Deus.

O direito à posse perpétua foi um importante instrumento para garantir o equilíbrio econômico em Israel. As famílias que conquistaram suas terras por ocasião da entrada em Canaã tinham a garantia de que essas terras pertenceriam perpetuamente à família. Para aquisição de novas propriedades, o povo deveria conquistar novas terras dentro dos amplos limites constituídos como fronteiras para a nação (Dt.11.24; Js.1.4). Portanto, conforme o sistema de Israel, a propriedade de uma família somente poderia ser vendida temporariamente, dando à família o direito de resgatá-la posteriormente (Lv.25.8-34), impossibilitando, assim, que algumas famílias se tornassem donas de muitas terras enquanto outras ficassem sem nada (Is.5.8).

A Lei de Israel não impunha uma igualdade, mas impedia a tirania e o monopólio de algumas poucas famílias. Ou seja, em Israel poderia haver rico e pobre, mas não deveria haver pessoas tomando conta de toda a terra enquanto outras viviam na completa miséria. O mínimo aceitável era o sustento necessário no dia a dia, garantido pelas leis em favor dos necessitados, e o máximo permitido era o enriquecimento justo, fruto do trabalho árduo, honesto e não avarento, sem tirar dos outros o mesmo direito de ter o básico para a sobrevivência: moradia e sustento. O décimo mandamento: não cobiçarás! (Ex.20.17) acusa a proibição divina do enriquecimento indevido. Ninguém deveria querer o que é do outro, incluindo a posse de terras. Cada qual deveria desenvolver sua própria terra. Todavia, seria possível arrendar a terra de outra família por tempo limitado (Lv.25.8-9) e dela tirar proveito pelo tempo em que estivesse sob o domínio de quem a adquiriu temporariamente.

A agricultura e a pecuária foram as principais fontes de sustento dos povos antigos. Contudo, devemos lembrar que outras formas de trabalho eram possíveis e lícitas: transações comerciais, trabalhos liberais (professor, médico, jornaleiro, cozinheiro, servidor), produção têxtil, metalúrgica, de perfumista, de padeiro, de carpinteiro, de joalheiro etc. (Ex.28.3; 31.1-11; 35.30-35; 1Sm.8.13; 1Rs.10.28). Portanto, as famílias de Israel poderiam ser bem-sucedidas tanto no bom uso da terra quanto no bom exercício de suas profissões, pois não era proibido, ao povo de Deus, adquirir riquezas.

O pequeno livro de Rute, nos mostra a boa relação que deveria haver entre ricos e pobres. Boaz, o resgatador de Noemi e Rute, era um homem “de muitos bens” (Rt.2.1) e os havia adquirido de forma justa e legal, em conformidade com as leis de Israel. Ele possuía trabalhadores à sua disposição e cumpria sua obrigação como provedor dos pobres, deixando que os necessitados entrassem em suas terras para colher os frutos da produção agrícola que caíssem ao chão, conforme ordenança do Senhor (Lv.19.9-10). Assim, no livro de Rute, a relação entre rico e pobre, proprietário e trabalhador é boa e agradável:

Rute 2:4-10  Eis que Boaz veio de Belém e disse aos segadores: O SENHOR seja convosco! Responderam-lhe eles: O SENHOR te abençoe!  5 Depois, perguntou Boaz ao servo encarregado dos segadores: De quem é esta moça?  6 Respondeu-lhe o servo: Esta é a moça moabita que veio com Noemi da terra de Moabe.  7 Disse-me ela: Deixa-me rebuscar espigas e ajuntá-las entre as gavelas após os segadores. Assim, ela veio; desde pela manhã até agora está aqui, menos um pouco que esteve na choça.  8 Então, disse Boaz a Rute: Ouve, filha minha, não vás colher em outro campo, nem tampouco passes daqui; porém aqui ficarás com as minhas servas.  9 Estarás atenta ao campo que segarem e irás após elas. Não dei ordem aos servos, que te não toquem? Quando tiveres sede, vai às vasilhas e bebe do que os servos tiraram.  10 Então, ela, inclinando-se, rosto em terra, lhe disse: Como é que me favoreces e fazes caso de mim, sendo eu estrangeira?

Portanto, toda a responsabilidade com o sustento dos pobres caía sobre as famílias de Israel, exigindo-lhes amor e obediência: “Quando também segares a messe da tua terra, o canto do teu campo não segarás totalmente, nem as espigas caídas colherás da tua messe. Não rebuscarás a tua vinha, nem colherás os bagos caídos da tua vinha; deixá-los-ás ao pobre e ao estrangeiro. Eu sou o SENHOR, vosso Deus” (Lv.19.9-10). Desse modo, o Estado não ficava sobrecarregado nem precisa possuir uma superestrutura. Os impostos não precisavam ser altos e as pessoas eram conscientizadas quanto aos deveres para com o próximo, fazendo-as praticantes, no dia a dia, do mandamento: “amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Lv.19.18).

A responsabilidade familiar de cuidar dos necessitados foi aplicada à vida da igreja do Novo Testamento que não deveria se esquecer dos pobres (At.20.35; Gl.2.10), a começar pelo cuidado “para com a própria casa” (1Tm.5.3-16). Ou seja, as obrigações familiares impostas no Pentateuco destinam-se a reger a vida de todas as pessoas, e a igreja deve ser exemplo nisso (At.2.42-47). Os cristãos, chamados de “família de Deus” (Ef.2.19), tem a incumbência de cuidar uns dos outros (2Co.9.6-15), assim como Moisés ensinou para o Estado de Israel.

Qual o modelo bíblico de Estado?

A direção de uma família compete aos pais, por direito e competência. Não se espera que crianças com poucos anos de vida decidam o que comer, o que fazer, para onde ir, que horas dormir, quais hábitos ter, quando tomar banho etc. Elas não são capazes de decidir o que é melhor e precisam de alguém que cuide de seus interesses para o bem delas. Esse problema não decorre apenas da incapacidade natural da pequena idade, mas, também, da inclinação natural para escolher o que não é bom. Sem que tenha sido educada, uma criança não opta por verduras, em vez de doces ou chocolates; pela escola, em vez de brincadeiras; por dar, em vez de receber; pela justa disciplina, em vez da barganha etc. Por que as crianças não fazem escolhas sábias e boas, naturalmente? Por que as crianças não se agradam das coisas boas ensinadas pelos pais? Por que preferem aquilo que não é benéfico para elas mesmas? Por que aquilo que realmente é bom é considerado, por elas, como algo ruim?

Imaginemos, agora, uma família democrática em que as decisões sejam tomadas pela votação entre todos os membros. Em uma família com muitos filhos, esses seriam maioria e, portanto, teriam vantagem nas votações. As crianças decidiriam o que comer, quando tomar banho, o que vestir, o que fazer, como se comportar, quando escovar os dentes etc. Elas votariam contra tudo que lhes parecesse chato, desagradável, ruim. Enquanto isso, votariam a favor de tudo o que lhes parecesse bom e agradável, como brincar toda hora ou comer doces e chocolates em todas as refeições. Se lhes dessem o direito de legislar, elas transformariam suas vontades mais arbitrárias e danosas em leis para a família e, em pouco tempo, destruiriam o próprio lar.

A inclinação natural da criança para o que não é bom e sua incompetência natural decorrente da falta de conhecimento, clamam pela necessidade de serem governadas. Portanto, toda família precisa de um governo formado pelo poder executivo e judiciário, praticantes da legislação divina. Os pais deverão executar as leis no dia a dia da família e julgar as ações de seus filhos, quer recompensando-os quer punindo-os. A respeito da família de Abraão, disse Deus: “Porque eu o escolhi para que ordene a seus filhos e a sua casa depois dele, a fim de que guardem o caminho do SENHOR e pratiquem a justiça e o juízo” (Gn.18.19). Portanto, Abraão deveria governar a própria família conforme a autoridade concedida por Deus desde o Éden, quando o Senhor decretou que o homem seria o cabeça do lar (1Co.11.3,7-9; 1Tm.2.12-14).

Abraão foi fiel, ordenando sua família para que vivesse segundo a vontade do Senhor. Todavia, encontramos mais adiante uma família que não foi ordenada: a casa de Eli (1Sm.2.11-4.22). O Sumo sacerdote Eli não cumpriu fielmente seu papel de governar seu lar, deixando que os filhos fizessem a própria vontade. Portanto, a casa de Eli não tinha um governante para dirigir a família, pois os filhos podiam decidir o que era melhor para eles, fazendo todo tipo de coisa errada: roubo, extorsão, prostituição etc.

1 Samuel 2:22-23,29  Era, porém, Eli já muito velho e ouvia tudo quanto seus filhos faziam a todo o Israel e de como se deitavam com as mulheres que serviam à porta da tenda da congregação.  23 E disse-lhes: Por que fazeis tais coisas? Pois de todo este povo ouço constantemente falar do vosso mau procedimento.
29 Por que pisais aos pés os meus sacrifícios e as minhas ofertas de manjares, que ordenei se me fizessem na minha morada? E, tu, por que honras a teus filhos mais do que a mim, para tu e eles vos engordardes das melhores de todas as ofertas do meu povo de Israel?

Para que esses dois poderes funcionem (executivo e judiciário), a família precisa de leis. Todavia, quem deveria legislar para a família? Já vimos que os filhos não poderiam legislar, pois o fariam segundo a errônea concepção que tem sobre o que é certo e o que é errado. Desse modo, suas leis seriam prejudiciais para si mesmos (saúde, educação ética, moral e acadêmica, relacionamentos etc.), pensando estarem legislando em favor próprio. O poder de legislar, também, não deve ser dado aos pais pois até mesmo pais muito experientes podem ser adeptos de coisas ruins: mimados, gastadores, beberrões, viciados, irresponsáveis, problemáticos etc. Portanto, nem a idade nem a paternidade garantirão o sucesso das leis familiares. As leis precisam vir de alguém realmente isento de todos os problemas encontrados no ser humano. Ou seja, nem as crianças devem decidir o que é melhor para elas nem os pais devem ser completamente autônomos na direção da família, como se fossem plenamente capazes de escolher apenas aquilo que é bom.

Observe-se que a concepção sobre o melhor modelo estatal está intimamente relacionada à antropologia, ou seja, à forma como a natureza humana é compreendida: 1) O homem é naturalmente bom? ou 2) O homem é naturalmente mau? Caso o homem seja naturalmente bom, então ele será capaz de governar perfeitamente conduzindo a sociedade ao pleno bem-estar (legislação antropocêntrica). Todavia, caso esse homem seja naturalmente mau, então precisará que alguém o governe (legislação teocêntrica), a fim de que a sociedade não se corrompa como ocorreu nos dias de Noé (Gn.6). Desses dois modos de ver o ser humano procedem as correntes políticas denominadas: Direita e Esquerda (e suas variações). Esses ideais governamentais encontram seus extremos na monarquia totalitária e no comunismo. Portanto, os diferentes ideais oferecerão respostas distintas à pergunta: Qual o papel do Estado?

A antropologia cristã procede da Escritura Sagrada que revela como é a natureza humana e qual a origem dessa natureza (Gn.3). Conforme a Palavra de Deus, a natureza do homem foi completamente contaminada pelo pecado de tal modo que todas as suas faculdades foram afetadas (Sl.10; Sl.14; Sl.53), sem contudo, anular a imagem divina no homem (1Co.11.7):

Romanos 3:9-18  Que se conclui? Temos nós qualquer vantagem? Não, de forma nenhuma; pois já temos demonstrado que todos, tanto judeus como gregos, estão debaixo do pecado;  10 como está escrito: Não há justo, nem um sequer,  11 não há quem entenda, não há quem busque a Deus;  12 todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há nem um sequer.  13 A garganta deles é sepulcro aberto; com a língua, urdem engano, veneno de víbora está nos seus lábios,  14 a boca, eles a têm cheia de maldição e de amargura;  15 são os seus pés velozes para derramar sangue,  16 nos seus caminhos, há destruição e miséria;  17 desconheceram o caminho da paz.  18 Não há temor de Deus diante de seus olhos.

Por essa razão, a Lei de Israel foi revelada por Deus, não legislada pelo povo. Nem Moisés nem o povo decidiu ao bel-prazer o que seria bom para a nação. Deus lhes deu leis em acordo com sua santidade, para que Israel fosse uma nação santa (ainda que tenha tolerado imperfeições legais por causa da dureza de coração do povo: Mt.19.8). A fiel prática desta Lei conduziria a nação à glória, ou seja, a uma vida social plena, semelhante ao que pode ser visto no reinado de Salomão (1Rs.1-10) que recebeu de seu pai, Davi, um reino construído por meio da fiel prática da Lei divina. Por essa razão, os governantes seguintes são medidos segundo seu exemplo: “fez o que era reto perante o SENHOR, como Davi” (1Rs.15.11; 2Rs.14.3; 16.2; 18.3; 22.2).

Por meio de sua Palavra, Deus governava seu povo como único legislador. Os governantes e juízes tinham o dever de executar e julgar, conforme a Lei divina, para o bem da nação. Quando isso acontecia, o povo caminhava bem, mas quando isso não acontecia o caos tomava conta de todas as esferas da vida social de Israel. Assim ocorreu até os dias da queda de Jerusalém, no ano 70 d.C. quando Israel deixou de ser uma nação e passou a ser um povo com um livro Sagrado. Sem governo, sem juízes, sem terra, os judeus tiveram que sujeitar-se às nações para onde foram dispersos, pois desprezaram o grandioso dia em que o grande Rei prometido, Cristo, chegou para governar plenamente a vida de seu povo por meio da Palavra de Deus.

O Novo Testamento não legislou novas leis para governar a igreja nem substituiu o modelo estatal revelado por Deus através do Pentateuco. Antes, seus escritores aplicam, em Cristo, as leis veterotestamentárias à vida da igreja neotestamentária. Por traz de todos os presbíteros eleitos, em jejum e oração, estava a autoridade do Rei dos reis e Senhor dos senhores que escolheu os apóstolos e lhes transmitiu autoridade (Mt.10.1), à semelhança do que fez Moisés, escolhendo “homens capazes, de todo o Israel, e os constituiu por cabeças sobre o povo: chefes de mil, chefes de cem, chefes de cinquenta e chefes de dez. Estes julgaram o povo em todo tempo” (Ex.18.25-26), pois, disse Jesus: “Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra” (Mt.28.18).

Nos dias do antigo Testamento, Israel era uma nação, um Estado governado por homens divinamente escolhidos para fazerem a vontade de Deus, o Soberano de toda a terra. Quando falhavam, rebelando-se contra Deus, recebiam a devida punição e perdiam o posto (1Sm.15.28; 1Rs.11.9-13; 14.10//Mt.21.33-45). Nos dias do Novo Testamento, a Igreja de Cristo pertence ao Reino de Deus governado por Jesus, Senhor e Rei de todo este Reino cósmico (Mt.12.28), que escolhe homens para cuidarem de sua igreja em conformidade com a vontade revelada (2Tm.4.2). Portanto, caso os escolhidos de Cristo não sejam fiéis no cumprimento do dever também são reprovados pelo Senhor (Gl.1.8).

Em todo o Novo Testamento, Deus se revela o Senhor absoluto de tudo. O décimo segundo apóstolo (Matias), escolhido para ocupar a vaga deixada por Judas, foi escolhido por Deus através da oração (At.1.23-26). Paulo foi chamado por Jesus para ser o décimo terceiro apóstolo (At.9.1-19), “apóstolo, não da parte de homens, nem por intermédio de homem algum, mas por Jesus Cristo e por Deus Pai” (Gl.1.1). O livro de Atos nos conta que a igreja perseverava na doutrina ensinada pelos apóstolos, que a receberam de Cristo como Lei absoluta para governar a vida de toda a igreja (At.2.42; 1Co.11.23). Nem os anjos poderiam desfazer a Palavra de Deus ensinada pelos apóstolos, nem mesmo acrescentar alguma coisa (Gl.1.6-9; Ap.22.18-20). Paulo diz que o ministério pastoral provém de Deus (Ef.4.11) para que a igreja seja conduzida segundo a Palavra do Senhor (Ef.4.12-16). Timóteo foi chamado por Deus, conforme profecia, não por vontade pessoal nem por escolha de homens, para ser presbítero (1Tm.4.14; 2Tm.1.6).

Uma grande diferença entre a igreja do Antigo e do Novo Testamento é a dissociação do Estado. No Antigo Testamento, a igreja era estatal, razão para a constituição de Israel não fazer separação entre leis civis e leis rituais. Todavia, o judaísmo rejeitou Cristo, tornando o cristianismo uma religião à parte e, portanto, dissociada do Estado Israelita. Essa separação entre a Igreja e o Estado não cancelou o que a Lei do Senhor ensina (e ordena) sobre o papel do governo. Por essa razão, encontramos no governo da igreja a aplicação das leis políticas e jurídicas do Pentateuco, para que os líderes da igreja governem o povo de Deus de acordo com a Lei do Senhor.

Dois textos de Atos dos Apóstolos revelam-nos a continuidade e aplicação da Lei com respeito ao governo. O primeiro revela o que ocorreu no concílio de Jerusalém, conhecido como primeiro concílio ecumênico (At.15.1-21). O segundo texto revela um encontro entre Paulo e os presbíteros de Éfeso (At.20.17-38). Nesse texto, encontramos a visão de Paulo sobre o governo eclesiástico, aplicação daquilo que Deus havia revelado por meio de Moisés ao povo de Israel.

Em Atos 15.1-21, surge um problema doutrinário importante, pois alguns diziam ser necessário circuncidar os gentios enquanto Paulo e Barnabé compreendiam que isso não era necessário. Então, os apóstolos e presbíteros são convocados para examinar a questão:

Atos 15:4-6  Tendo eles chegado a Jerusalém, foram bem recebidos pela igreja, pelos apóstolos e pelos presbíteros e relataram tudo o que Deus fizera com eles.  5 Insurgiram-se, entretanto, alguns da seita dos fariseus que haviam crido, dizendo: É necessário circuncidá-los e determinar-lhes que observem a lei de Moisés.  6 Então, se reuniram os apóstolos e os presbíteros para examinar a questão

Os apóstolos haviam sido escolhidos por Jesus e os presbíteros haviam sido eleitos pelas igrejas, conforme a direção do Espírito do Senhor, provavelmente de forma semelhante ao que ocorreu com a escolha dos diáconos (At.14.23; 2Co.8.19//At.6.5-6). Esses líderes deveriam executar a lei do Senhor e julgar o povo de Deus conforme as ordenanças divinas. Por essa razão, a decisão final do concílio fundamentou-se completamente na Revelação que Deus dera a Pedro (At.15.7-11) e Paulo (At.15.12), compreendida como cumprimento da Palavra do Senhor proferida pelo profeta Amós (Am.9.11-12), conforme expôs Tiago (At.15.13-19).

Os líderes escolhidos debaixo da orientação divina (jejum e oração) não legislaram, antes cumpriram uma legislação preestabelecida. Eles também não governaram para satisfazer a vontade do povo, mas para conduzir o povo à vontade de Deus. Por isso, o concílio envia cartas aos gentios exortando os cristãos a observarem as antigas ordenanças do Senhor com respeito à idolatria (At.15.20//Ex.34.15-17). Ao procederem com fidelidade, os presbíteros serviam de modelo para todos os governantes do mundo, pois aquilo que Deus requeria deles, também deveria ser praticado por todas as nações. Por meio do governo eclesiástico, Deus providenciou um modelo para o Estado:

Mateus 20:25-28  Então, Jesus, chamando-os, disse: Sabeis que os governadores dos povos os dominam e que os maiorais exercem autoridade sobre eles.  26 Não é assim entre vós; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva;  27 e quem quiser ser o primeiro entre vós será vosso servo;  28 tal como o Filho do Homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos.

Em Atos 20.17-38, Paulo se dirige aos presbíteros como homens escolhidos por Deus, através do Espírito Santo que os constituiu bispos para pastorearem a igreja de Deus (At.20.28). Portanto, o papel dos presbíteros é fazer a vontade do Senhor, como fiéis servidores do Rei, pois receberam autoridade para governar a Igreja de Cristo (Mt.28.18-20). De modo semelhante, o Estado recebeu autoridade do Senhor, “porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas” (Rm.13.1), e tem a mesma responsabilidade de servir ao Senhor como “ministro de Deus” (Mt.13.4). Assim, o Estado não é uma organização humana, mas divina, pertencente ao cósmico Reino de Deus.

Quando os homens governam para satisfazer o povo (e a si mesmos) e legislam conforme a própria vontade, contrapondo a Lei do Senhor, o Estado revela-se um anti-reino parasita dentro do reinado cósmico do Senhor. Todo Estado existe dentro do Reino de Deus e, portanto, pertence ao Senhor deste Reino, tendo como obrigação obedecer à Lei divina como fiel executivo e judiciário. Por essa razão, o Salmo 2 adverte todos os governantes e reinos (Estado) com respeito ao dia da prestação de contas, pois, naquele dia, todos serão julgados “segundo as suas obras” (Ap.20.11-15):

Salmo 2:1-12  Por que se enfurecem os gentios e os povos imaginam coisas vãs?  2 Os reis da terra se levantam, e os príncipes conspiram contra o SENHOR e contra o seu Ungido, dizendo:  3 Rompamos os seus laços e sacudamos de nós as suas algemas.  4 Ri-se aquele que habita nos céus; o Senhor zomba deles.  5 Na sua ira, a seu tempo, lhes há de falar e no seu furor os confundirá.  6 Eu, porém, constituí o meu Rei sobre o meu santo monte Sião.  7 Proclamarei o decreto do SENHOR: Ele me disse: Tu és meu Filho, eu, hoje, te gerei.  8 Pede-me, e eu te darei as nações por herança e as extremidades da terra por tua possessão.  9 Com vara de ferro as regerás e as despedaçarás como um vaso de oleiro.  10 Agora, pois, ó reis, sede prudentes; deixai-vos advertir, juízes da terra.  11 Servi ao SENHOR com temor e alegrai-vos nele com tremor.  12 Beijai o Filho para que se não irrite, e não pereçais no caminho; porque dentro em pouco se lhe inflamará a ira. Bem-aventurados todos os que nele se refugiam.

O modelo bíblico de governo não mudou do Antigo Testamento para o Novo Testamento, antes é confirmado pelo governo eclesiástico escolhido por Deus para executar sua Palavra. Assim como Deus levantou juízes e reis para governarem seu povo (Jz.2.16), confirmados, também pela aceitação do povo (2Sm.5.1-5), a Igreja recebe aqueles que Deus suscita (presbíteros) para governarem as ovelhas de Jesus, através do fiel ensino da Escritura (1Tm.3.1-7). Por esse motivo, todo o processo deve ser permeado pela oração de um povo de sacerdotes (1Pe.2.9), no meio do qual Deus opera sua vontade revelada pela Escritura Sagrada.

Conclusão

A democracia ocidental não representa o ideal divino de governo estatal, pois usurpa para si o direito de legislar conforme o interesse do povo. Seus governantes não são vistos como representantes de Deus para supervisionar a sociedade, a fim de garantir que esta cumpra a Lei do Senhor. Ao contrário, os cargos políticos são ocupados com o propósito de que representem os interesses do povo para o povo, como se “a voz do povo” fosse “a voz de Deus”. Desse modo, os Estados modernos assemelham-se à figura do anti-reino parasita de Satanás que existe à custa do Reino de Deus e escraviza os pecadores, prometendo-lhes glória, prazer, conforto e prosperidade.

Nesses Estados modernos, tudo existe para satisfazer as pessoas, fazendo valer o slogan: “o cliente tem sempre razão”. Por isso, a sociedade legisla suas próprias leis e os indivíduos desprezam qualquer um que se oponha às suas vontades. O Estado tornou-se o deus da sociedade atual, governando absolutamente a vida de todos, desde o nascimento até a morte de cada cidadão. Além disso, o Estado assume o papel de pai e mãe, responsável pela provisão e educação, na tentativa de tomar o lugar do único e Soberano Senhor de toda a criação.

Os prejuízos desse modelo estatal pagão podem ser vistos no caos moral das sociedades e no atual modelo pagão de família, em que cada lar se considera autônomo para legislar as próprias regras, com o fim de satisfazer a vontade de seus membros. Não há liderança absoluta, não há liderados submissos. Todos se acham no direito de fazer a própria vontade, coexistindo em um mesmo ambiente por meio da aceitação ou tolerância. Afinal, conforme a mentalidade atual: não há certo nem errado, apenas ideais diferentes. Estados sem governos fortes, famílias sem governantes, sociedade à beira do caos.

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