“Muitos, naquele dia, hão de dizer-me:
Senhor, Senhor! Porventura, não temos nós profetizado em teu nome, e em teu
nome não expelimos demônios, e em teu nome não fizemos muitos milagres? Então,
lhes direi explicitamente: nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que
praticais a iniquidade.” (Mt.7.22-33)
O texto de Hebreus 6.4-6 é considerado, por diversos estudiosos, de difícil
interpretação. Mas, na verdade, a maior dificuldade para a interpretação do
texto se encontra nos pressupostos de quem procura interpretá-lo. Para os
arminianos, este seria um texto que provaria a possibilidade de se perder a
salvação, uma vez que os apóstatas, sobre os quais o autor se refere, “foram iluminados, e provaram o dom
celestial, e se tornaram participantes do Espírito Santo, e provaram a boa
palavra de Deus e os poderes do mundo vindouro” (Hb.6.4-6).
Por essa razão, gostaria de oferecer algumas orientações para uma melhor
leitura do texto. Gostaria de começar trazendo à lembrança um personagem pouco
citado nos círculos de debate: Judas Iscariotes. Conforme a Escritura, Judas foi
contado entre os apóstolos (At.1.17) e recebeu autoridade para pregar, expulsar
demônios e curar os enfermos, junto aos demais colegas de ministério, por
ocasião das comissões enviadas por Jesus (Mt.10.5-15; Mc.6.12-13; Lc.9.6).
Portanto, Judas experimentou todos os benefícios que os demais apóstolos haviam
recebido, incluindo a iluminação para compreender a boa Palavra (Mt.13.11) e a
participação na antecipação do dom celestial (Mt.10.1), a fim de que
manifestasse às cidades judaicas, para as quais tinham sido enviados, que o
Reino de Deus havia chegado (Mt.10.7).
Os sinais e milagres operados tanto por Jesus quanto por seus discípulos
eram marcas visíveis da manifestação do Reino de Deus. Esses sinais seriam
testemunho tanto para a salvação de muitas vidas, que creriam em Jesus, quanto
para a perdição de muitos outros, que nem mesmo após verem os sinais creram em
Cristo (Mt.11.20-24). O primeiro século da era cristã foi o período que mais
testemunhou tais prodígios, tendo em vista o propósito de confirmar a pregação
da Palavra: o evangelho da salvação por meio de Jesus Cristo. Judas foi um dos
personagens contado entre os discípulos, que participou de todas as
manifestações visíveis do Reino dos céus.
Contudo, apesar de provar dos poderes do mundo vindouro (Lc.10.17-20),
Judas era filho das trevas (Jo.6.70-71; 13.27), e estava destinado a trair
Jesus conforme “o Espírito Santo proferiu
anteriormente por boca de Davi” (At.1.16). Judas foi escolhido por Jesus
com propósito específico. A traição não foi apenas uma apostasia voluntária,
mas, também, o instrumento para o cumprimento do propósito de Deus: a
crucificação de Cristo (Mt.26.24; At.4.27-28). Judas teve momentos de êxtase,
assim como os demais, por compartilhar da manifestação do poder de Deus, mas
não pôde desfrutar o mais importante: a alegria de ter seu nome arrolado nos
céus (Lc.10.20//Jo.6.70).
Diversos outros exemplos (Balaão, israelitas do deserto, Saul, Ananias e
Safira etc) corroboram com o fato de haver clara distinção entre a participação
nos sinais e prodígios de Deus (Mt.7.22) e o privilégio de estar “inscrito no livro da vida” (Ap.20.15). A
negação da fé após o desfrute de maravilhas do Reino dos céus comprova a
impossibilidade de alguém ser salvo por ver prodígios (Lc.16.31). O coração do
apóstata é como solo rochoso, impróprio para plantio: ele dá sinais de vida,
mas logo revela sua natureza inóspita (Mt.13.5,20-21). Paulo lembra aos
coríntios que todo o Israel que saiu do Egito foi “batizado” em todas as maravilhas manifestadas pelo Senhor, contudo
“Deus não se agradou da maioria deles,
razão por que ficaram prostrados no deserto” (1Co.10.5).
Caso possamos considerar que todos os primeiros batismos realizados pelos
apóstolos foram acompanhados por manifestações visíveis do Espírito de Deus, a
fim de confirmar a aprovação e presença do Senhor na igreja, então devemos
refletir sobre mais dois personagens: Ananias e Safira. Eles fizeram parte do
primeiro ou segundo grupo de ingressantes ao cristianismo insipiente, mas pouco
tempo depois demonstraram que não foram salvos (At.5.1-11). Eles viram e
participaram da manifestação do Espírito de Deus no meio de sua igreja visível,
porque estavam entre aqueles que criam em Jesus. Como Saul profetizou por estar
entre os profetas (1Sm.10.10), Ananias e Safira provaram “os poderes do mundo vindouro” (Hb.6.5), mas logo demonstraram que,
à semelhança de Saul, também não faziam parte da igreja celestial. Isso não é
incomum ainda hoje, pois nem todos os que dizem, publicamente, crer em Cristo
realmente professaram a fé em seu coração, porque “nem todos os de Israel são, de fato, israelitas” (Rm.9.6). O
apóstolo João diz que “eles saíram de
nosso meio; entretanto, não eram dos nossos; porque, se tivessem sido dos
nossos, teriam permanecido conosco; todavia, eles se foram para que ficasse
manifesto que nenhum deles é dos nossos.” (1Jo.2.19). Ananias e Safira
desfrutaram um pouco de tempo do ambiente da graça, mas “a fascinação das riquezas” sufocaram a palavra, e ficou infrutífera
(Mt.13.4-7, 19-22).
Como é possível que uma pessoa não cristã (joio) seja beneficiada com a
manifestação do Reino de Deus, conforme descrito em Hebreus 6.4-6? A resposta
está na teologia dos pactos de Deus. Ainda que Deus trate com indivíduos, sua
aliança é feita com um povo. As alianças feitas após a queda: Adão (Gn.3.15),
Noé (Gn.9.1-17), Abraão (Gn.15.1-21), Israel (Ex.19-20) e Davi (2Sm.7.1-17)
foram destinadas ao povo de Deus. Por isso, mesmo após a morte de Adão, Noé,
Abraão, Moisés e Davi os termos das alianças continuaram em vigor de forma que
o povo de Deus, das gerações seguintes, tanto se beneficiou com as promessas
quanto foi castigado ao quebrar as clausulas estabelecidas no Sinai. Outro
exemplo do caráter pactual coletivo das alianças pode ser visto na circuncisão.
As mulheres, em Israel, não eram circuncidadas, apenas os homens. Contudo, o
sinal carregado pelos homens tinha valor familiar de forma que todos os membros
da família se beneficiavam da aliança feita por meio de seu mediador: o homem.
Mas, será que todas as pessoas de uma casa eram salvas por causa da aliança
feita com o homem? É evidente que não! Nabal era “duro e maligno em todo o seu trato” (1Sm.25.3) e morreu por sua
insensatez, mas Abigail era mulher sensata, “bendita” diante dos homens e
diante de Deus (1Sm.25.33).
Devemos lembrar, ainda, que as figuras que designam a igreja são sempre
coletivas, pois Deus trata com um povo, não apenas com indivíduos (corpo de
Cristo, família de Deus, templo do Espírito, videira e seus ramos, assembleia
etc). Quando alguém adentra ao povo visível de Deus, ela está no ambiente da
graça, lugar onde Deus derrama suas bênçãos, pois o Senhor prometeu abençoar um
povo que se chama pelo seu Nome (2Cr.7.14). Por esta razão, no Antigo e Novo Testamento,
encontramos pessoas que provaram da manifestação da glória de Deus sem,
contudo, conhecer ao Senhor. Nos dias de Jesus, multidões foram abençoadas por
estarem em sua presença, mas somente algumas pessoas de Israel foram realmente
salvas (Lc.17.12-19). Um exemplo prático pode ser encontrado na gerência das
empresas. Quando um chefe resolve distribuir brindes para seus funcionários, ou
ocorre o aumento de salário, ele o faz com todos, mesmo que alguns não gostem
dele. Isso ocorre porque aprendemos com Deus a trabalhar com conjuntos.
Enquanto a pessoa estiver fazendo parte do conjunto, ela será beneficiada com
todas as bênçãos concedidas ao grupo.
No desenrolar da história da redenção, Deus manifestou suas maravilhas no
meio de seu povo visível composto de crentes e não crentes. Ou seja, mesmo aqueles
que não foram salvos desfrutaram dos benefícios da presença do Reino de Deus.
Por essa razão, o joio é tão parecido com o trigo (Mt.13.24-30) e é considerado
capaz de “profetizar, expelir demônios e fazer muitos milagres em nome de
Jesus” (Mt.7.22). Dentro do ambiente do pacto, todos são abençoados por Deus
(razão pela qual a igreja batiza suas crianças desde o primeiro século).
Contudo, nem todos serão salvos, pois somente aqueles que professaram a fé até
o último dia, guardando em seu coração a Palavra do Senhor, receberão a vida
eterna, em Cristo Jesus (Rm.10.9-13). Portanto, somente a distinção entre a “participação
das maravilhas do Reino de Deus” e a “inscrição no livro da vida” (a salvação)
pode explicar diversos textos que parecem difíceis. A salvação é dada ao
indivíduo, mas o Reino de Deus se manifesta para todo um povo.
Portanto, não é tão difícil ler Hebreus 6.4-6 quando olhamos para outros
exemplos de apostasia, revelados pela Escritura. Hebreus nos adverte que a
participação do ambiente da graça no qual Deus manifesta sua glória, não
representa um sinal para a certeza da salvação. A perseverança na fé é o sinal
legítimo de alguém pertencer a Cristo, pois “aquele que perseverar até ao fim, esse será salvo” (Mc.13.13).
Desta forma, o único privilégio pelo qual devemos nos gloriar é o fato de
termos recebido a salvação graciosa de Cristo Jesus, testemunhada pelo Espírito
de Deus em nosso coração (Rm.8.16).
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