Pages

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Qual a natureza dos elementos da Ceia do Senhor?

Porque eu recebi do Senhor o que também vos entreguei” (1Co.11.23)

Há certo debate sobre qual deveria ser a natureza dos elementos da Ceia do Senhor, principalmente no que diz respeito ao fruto da videira: vinho ou suco de uva. Ampliando a discussão, temos ainda a diferença entre a hóstia, pão ázimo servido na Ceia Católico Romana, e o pão comum, não ázimo, servido na Ceia das igrejas evangélicas. Todavia, é interessante vermos que as discussões nem sempre contemplam os dois elementos. Ou seja, os debates sobre o uso ou não de vinho na Ceia não costuma ser acompanhado por uma discussão sobre o uso ou não de pão ázimo, mesmo que este seja um elemento tão importante quanto o outro e, também, estava presente na celebração da Páscoa em que Jesus instituiu a Ceia cristã.

Parece-nos que a preocupação de muitos evangélicos a respeito da natureza dos elementos da Ceia é apenas uma disputa sobre o cristão poder ou não consumir bebidas alcoólicas. Ou seja, o assunto Ceia tornou-se apenas um “bode expiatório” para o debate sobre outra questão. Por essa razão, se discute muito sobre o cálice, mas não se fala sobre o pão, mesmo que, claramente, as igrejas evangélicas não façam uso de um pão de mesma natureza daquele que fora usado por Jesus na primeira Ceia.


Considerações iniciais

Considerando isso, aquilo que poderia ser uma discussão pertinente parece ter se tornado um problema por duas razões. Primeiramente, porque estão se apropriando indevidamente de um assunto tão importante com o fim de discutir interesses particulares, já que uns querem ter a liberdade de beber e ficam aborrecidos ao serem julgados por causa disso enquanto outros se sentem escandalizados com aqueles que querem beber, por considerarem ser pecado o uso de qualquer bebida alcoólica.

Em segundo lugar, tal discussão, visando interesses particulares, demonstra falta de conhecimento do que nos diz Paulo em Romanos 14. Esse texto nos servirá tanto para ajudar a encerrar as discussões sobre o beber quanto para respondermos sobre a natureza do fruto da videira que enche os cálices da Ceia do Senhor (junto a outros textos que analisaremos). Apesar de seu extenso tamanho, transcreveremos abaixo parte do texto de Romanos 14.1-23 (suprimindo os versículos 4 a 13) para que possamos sublinha-lo, ajudando na visualização daquilo que desejamos destacar:

Acolhei ao que é débil na fé, não, porém, para discutir opiniões.  2 Um crê que de tudo pode comer, mas o débil come legumes;  3 quem come não despreze o que não come; e o que não come não julgue o que come, porque Deus o acolheu. [...] 14 Eu sei e estou persuadido, no Senhor Jesus, de que nenhuma coisa é de si mesma impura, salvo para aquele que assim a considera; para esse é impura.  15 Se, por causa de comida, o teu irmão se entristece, já não andas segundo o amor fraternal. Por causa da tua comida, não faças perecer aquele a favor de quem Cristo morreu.  16 Não seja, pois, vituperado o vosso bem.  17 Porque o reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo.  18 Aquele que deste modo serve a Cristo é agradável a Deus e aprovado pelos homens.  19 Assim, pois, seguimos as coisas da paz e também as da edificação de uns para com os outros.  20 Não destruas a obra de Deus por causa da comida. Todas as coisas, na verdade, são limpas, mas é mau para o homem o comer com escândalo.  21 É bom não comer carne, nem beber vinho, nem fazer qualquer outra coisa com que teu irmão venha a tropeçar ou se ofender ou se enfraquecer.  22 A fé que tens, tem-na para ti mesmo perante Deus. Bem-aventurado é aquele que não se condena naquilo que aprova.  23 Mas aquele que tem dúvidas é condenado se comer, porque o que faz não provém de fé; e tudo o que não provém de fé é pecado. (Rm.14.1-23)

Nesse texto, Paulo não condena nem defende aqueles que bebem vinho. Seu propósito é exortar os cristãos a respeito da atitude referente ao comer (podendo ser aplicado tanto a carne de porco para o judeu quanto a carnes compradas em mercados pagãos para os gentios – 1 Co.8.13) e ao beber (vinho), porque alguns estavam agindo como se o comer e o beber fossem mais importantes que a relação fraterna entre os irmãos (Ef.4.1-6) dentro do Reino de Deus. Por isso, o apóstolo frisa que “o reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo” (Rm.14.17). Ou seja, a comida e a bebida não deveriam dividir a cristandade como se fossem ídolos, conforme nos disse Paulo em Filipenses 3.19: “o deus deles é o ventre, e a glória deles está na sua infâmia, visto que só se preocupam com as coisas terrenas”.

Paulo chama de “débeis na fé” (Rm.14.1) aqueles que não comiam certos alimentos (seja qual for a razão) nem bebiam bebidas alcoólicas. Todavia, não os despreza, porque Deus os acolheu, pelos quais Cristo morreu. Sua fala inicial serve de exortação para ambos os grupos. Ao chamar de “fracos/enfermos na fé” aqueles que se abstinham, Paulo envergonha quem se achava espiritual, pois seu verdadeiro “status espiritual” era a “enfermidade na fé”. Portanto, eles deveriam fortalecer a fé, tanto com a humildade quanto com o amadurecimento. Nenhum cristão deve se acomodar à imaturidade, antes deve procurar crescer na fé por meio do constante aprendizado da Palavra de Deus (Hb.5.11-14) e o ascetismo não era o caminho para o amadurecimento (1Tm.4.1-5).

Paulo também adverte aqueles que desprezavam os “fracos na fé”, fazendo uso do imperativo do verbo acolher/receber/levar consigo. Paulo ordena os irmãos aparentemente mais fortes na fé a mostrarem maturidade acolhendo aqueles que são “débeis na fé”. O mesmo verbo aparecerá no capítulo seguinte, na forma de ordenança para todos: “Portanto, acolhei-vos uns aos outros, como também Cristo nos acolheu para a glória de Deus” (Rm.15.7). Desprezar os fracos mostra semelhante debilidade na fé, pois Cristo ordenou aos apóstolos que a igreja siga seu exemplo (Jo.13.34-35) em tudo, sabendo que Ele acolheu os fracos de seus dias, comendo e bebendo com prostitutas e publicanos (Mt.9.10), sem desprezar fariseus sinceros como Nicodemos (Jo.3).

A essas divergências de ideias, Paulo chama de pensamentos próprios/opiniões/reflexões particulares. Portanto, o apóstolo exclui a ideia de que o comer ou não comer e o beber ou não beber venha como ordenança de Deus. Cristo não proibiu nem ordenou o uso de qualquer comida ou bebida. Quem come ou bebe o faz porque entende que pode e quem não come nem bebe se abstém por convicções pessoais. Deus aboliu os mandamentos relacionados a comidas (At.10.9-16), mas ordena aos cristãos, aqueles que verdadeiramente creem em Cristo, “que vos ameis uns aos outros; como eu vos amei a vós, que também vós uns aos outros vos ameis” (Jo.13.34), “pois aquele que não ama a seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê” (1Jo.4.20).

Quem negligencia o amor comete o mesmo pecado encontrado nos fariseus, a quem Jesus indagou: “Por que transgredis vós também o mandamento de Deus, por causa da vossa tradição?” (Mt.15.3). Portanto, antes de debater assuntos diversos relacionados ao viver cristão, primeiro é preciso analisar se o assunto é uma mera opinião ou se realmente ele fora ordenado pela Palavra do Senhor. Somente estamos autorizados a discutir com diligência sobre assuntos que tenham sido ordenados por Deus, que não sejam meras opiniões pessoais sobre ritos, hábitos, gostos e coisas semelhantes. Caso não façamos isso, seremos considerados hipócritas, pois quebraremos mandamentos divinos, como o amor, por causa de orgulho pessoal e interesses particulares (tradições).

Há alguns que empreendem certa tentativa para demonstrar que o cristão não deveria consumir vinho. Aqueles que procuram fazer tal defesa costumam argumentar sobre usos diferentes de palavras gregas e hebraicas referentes ao fruto da videira (hebraico: YAYIN, TIROSH; grego: OINOS, MÉTHYSMA, GLEYKOS). Não temos o propósito aqui de analisar tais termos. O que podemos dizer é que a tentativa de provar que Jesus e outros personagens não fizeram uso do vinho é inútil. Em diversos textos, não é necessário nem mesmo recorrer ao termo grego ou hebraico, que em sua grande maioria é YAYIN (em hebraico) e OINOS (em grego), pois basta observar o contexto dele, afinal não podemos esperar que Noé tenha ficado embriagado com suco de uva (Gn.9.21). nem que Jesus tenha sido acusado de beberrão (OINOPÓTES) por tomar muito suco de uva (Mt.11.19; Lc.7.34//Pv.23.20). Devemos lembrar ainda que alguns cristãos de Coríntios estavam se embriagando na Ceia, o que nos remete inevitavelmente para o vinho, pois muito suco de uva não provoca tamanho malefício (1Co.11.21). Portanto, recomendo apenas que se observe melhor o sentido semântico dos termos.

Para Paulo, então, tanto faz comer e beber como não comer e não beber: “Eu sei e estou persuadido, no Senhor Jesus, de que nenhuma coisa é de si mesma impura, salvo para aquele que assim a considera; para esse é impura” (Rm.14.14). E para avançarmos rumo a responder sobre a natureza dos elementos da Ceia do Senhor, chamamos atenção para o versículo 21 de Romanos 14, onde Paulo nos diz: “É bom não comer carne, nem beber vinho”. Mas, em que esse texto nos ajudará? A pergunta relevante aqui é: Já que é bom não beber vinho, como a igreja celebraria a Ceia do Senhor com vinho? Se havia cristãos que não bebiam vinho, com o que eles celebravam a Ceia do Senhor? E se Paulo não condena aqueles que não bebem vinho, então qual seria a necessária natureza do fruto da videira dentro do cálice? Alguns textos nos ajudarão a desvendar essas questões (Êx.12.1-28; Mt.26.26-30//Mc.14.22-26//Lc.22.7-20; 1 Coríntios 11.17-34; Romanos 14).


Contexto histórico da Ceia do Senhor

O contexto histórico da Ceia do Senhor é a Páscoa judaica. Por isso, precisaremos recorrer ao texto de Êxodo 12.1-28, onde Deus nos revela a ordenança para a celebração da Páscoa judaica. Nesse texto, Deus manda apenas aquilo que deveria ser comido na Páscoa: Cordeiro e pães asmos com ervas amargas. Nesse momento, não é nosso objetivo discorrer sobre o fato de que o Cordeiro Páscoa tinha como propósito apontar para Cristo, o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (Jo.1.29). Para a ocasião, queremos salientar os elementos da Páscoa.

O cordeiro era o elemento central da Páscoa judaica, pois seu sangue era o responsável por livrar o povo de Deus da morte decorrente da passagem do destruidor por toda a terra do Egito. O cordeiro morreria no lugar de Israel para que Israel fosse liberto do império maligno egípcio. Por isso, aquele que não passasse o sangue na porta de sua casa, teria o primogênito de sua família morto. Onde não houvesse o sangue do cordeiro, haveria morte. Quando Jesus celebrou a primeira Ceia, havia dois cordeiros presentes, um morto (conforme a ordenança de Êxodo 12) e outro vivo (mas, que haveria de morrer). Jesus antecipa sua morte por meio da instituição da Ceia, “porque, todas as vezes que comerdes este pão e beberdes o cálice, anunciais a morte do Senhor, até que ele venha” (1Co.11.26). E a partir do momento que o Verdadeiro Cordeiro Pascoal morreu numa cruz (Mt.27.45-54), não foi mais preciso que cordeiros morressem para a celebração de uma Páscoa.

Contudo, o pão ázimo não deveria ser desmerecido na Páscoa, pois Deus disse que “qualquer que comer pão levedado será eliminado da congregação de Israel” (Ex.12.19). Portanto, o pão ázimo também era fundamental na celebração da Páscoa e não poderia ser negligenciado. Quando Jesus instituiu a Ceia, estavam presentes os pães asmos como elemento obrigatório. Foi este pão não levedado que Jesus ergueu, deu graças ao Pai e o partiu dizendo: “Tomai, comei”, “isto é o meu corpo, que é dado por vós; fazei isto em memória de mim” (Mt.26.26; 1Co.11.24). O pão ázimo pode ser considerado o mais puro pão, pois leva apenas trigo e água. Considerando que Jesus disse ser o “verdadeiro pão” (Jo.6.32) e que o pão da Ceia é um memorial do corpo de Cristo, então quanto mais puro for este pão, melhor. Logo, o pão ázimo é o melhor pão para ser comido na Ceia do Senhor, para nos apontar o Corpo de Cristo moído por nossas transgressões. Todavia, ainda não estamos definindo qual pão Deus ordenou para a Ceia. Estamos apenas apresentando o contexto histórico da primeira Ceia.

Mas, onde encontramos o vinho? O vinho pode ser encontrado em muitos textos do Antigo Testamento, tanto como alimento comum da cultura judaica (Lv.23.13; Dt.7.13; 14.23) quanto como símbolo de bênçãos (Gn.49.12; Sl.116.13; Ec.9.7; ) e maldições divinas (Sl.75.8; Jr.25.15,17; Mt.26.42; Ap.14.8,10). O vinho aparece pela primeira vez após o dilúvio quando Noé, “homem justo e íntegro” que “andava com Deus” (Gn.6.9), sendo lavrador “passou a plantar uma vinha. Bebendo do vinho, embriagou-se e se pôs nu dentro de sua tenda” (Gn.9.20-21). Em seguida, encontramos Melquisedeque, rei de Salém, uma perfeita figura de Cristo (profeta, sacerdote e rei), conforme nos diz o autor de Hebreus (Hb.7.1-17). Quando Melquisedeque (para alguns seria o próprio Cristo) aparece a Abraão, não somente abençoou Abraão, como também “trouxe pão e vinho” (Gn.14.18) para cear com ele. É digno de nota o fato de que os elementos da ceia comida por Melquisedeque e Abraão foram o pão e o vinho.

Apesar de o vinho ser comum à cultura judaica, a Palavra de Deus não deixa de advertir quanto aos efeitos nocivos do álcool mal administrado. O profeta Oséias adverte que “a sensualidade, o vinho e o mosto tiram o entendimento” (Os.4.11). Além disso, quando alguém fizesse voto de Nazireu, consagrando sua vida totalmente ao Senhor, não deveria beber vinho (Nm.6.2-3). Mas, tentar fazer uma relação da consagração do nazireado com a vida cristã tem seus problemas, já que o Nazireu não somente deveria se abster do vinho como, também, de tudo que provinha da videira: “Todos os dias do seu nazireado não comerá de coisa alguma que se faz da vinha, desde as sementes até às cascas” (Nm.6.4). Também, quando um sacerdote fosse entrar na tenda da Congregação (Lv.10.9) não deveria beber vinho. Essas pessoas deveriam estar completamente lúcidas para servir ao Senhor, dominadas apenas por Deus. Por essa razão, elas não deveriam estar sob qualquer influência do álcool. De modo semelhante, Paulo ensina a Timóteo que os presbíteros e diáconos não devem ser dominados por álcool (1Tm.3.3,8). A Tito, Paulo adverte que as mulheres também não sejam “escravizadas a muito vinho” (Tt.2.3).

Mesmo estando tão presente nos textos bíblicos, o vinho não foi ordenado como elemento da Páscoa judaica. Deus não deu ordenança quanto ao que deveria ser bebido na Páscoa. Os judeus bebiam o vinho por ser a bebida comum, entendendo que Deus não restringiu a Páscoa ao Cordeiro e ao pão ázimo. Assim, o vinho acompanhou a Páscoa judaica, provavelmente, desde o primeiro dia (Dt.14.26). Portanto, mesmo que a Escritura não nos diga o que havia no cálice de Jesus: vinho ou suco de uva, fazendo apenas uma referência ao “fruto da videira” (Mt.26.29; Mc.14.25; Lc.22.18), podemos afirmar que havia vinho. O texto de 1 Coríntios 11.21 é de grande ajuda, pois Paulo afirma que os cristãos daquela cidade, ao celebrarem a Ceia do Senhor, estavam pecando contra Deus pela forma como comiam e bebiam, pois havia “quem se embriague”. Não deveríamos supor, imaturamente, que cristãos estavam se embriagando com suco de uva. O vinho fazia parte da mesa dos cidadãos daquela época e estava, também, presente na Ceia das igrejas do primeiro século.

Até agora, no entanto, nos dispomos a provar quais os elementos presentes na Ceia de Jesus. Isso, não necessariamente, significa uma exigência. Estamos considerando uma descrição narrativa apenas. Queremos, contudo, saber, também, aquilo que Deus nos ordenou sobre o assunto. Queremos saber qual deve ser a natureza de cada um dos elementos da Ceia, conforme ordenança do Senhor. Por isso, no tópico seguinte, nos dedicaremos a analisar a ordenança explícita do Senhor para a celebração da Ceia nas igrejas.

Ordenança explícita para a Ceia do Senhor

Para chegarmos a uma compreensão sobre a ordenança da Ceia, analisaremos quatro textos: Mateus 26.26-30, Marcos 14.22-26, Lucas 22.7-20, e 1 Coríntios 11.17-34. Nos três primeiros textos, os Evangelhos sinóticos, Jesus e os discípulos estavam comendo a Páscoa quando Cristo tomou um pão para instituir a Ceia. Os Evangelhos nos contam que era a festa dos “asmos” (Mt.26.17; Mc.14.12; Lc.22.7), portanto os pães eram ázimos. O termo ázimo aparece apenas para indicar o evento, mas não aparecerá na qualificação do pão utilizado por Jesus na ocasião da instituição da Ceia. Os Evangelhos nos dizem apenas que Jesus tomou um pão, ou por pressupor que o leitor saberia que o pão tomado por Jesus era, inevitavelmente, ázimo ou para que a indefinição do pão propositadamente oferecesse aos cristãos um leque maior de opções do que fora dado na ocasião da ordenança da Páscoa judaica (Ex.12).

Em meio à celebração da Páscoa, surge a ordenança da Ceia. Jesus mandou que os discípulos tomassem um pão, dessem graças, repartissem e comessem em memória dele. Ele ordenou (imperativo) dizendo: “fazei isto” (Lc.22.19). Jesus nos deu detalhes de como deveríamos proceder no rito da Ceia. Mas, por que Cristo não nos disse qual seria o pão nem se deveria usar vinho ou suco de uva? Pode parecer que, nos Evangelhos, o óbvio é a presença do contexto. Deveríamos pensar: já que os pães da Páscoa eram ázimos, então os pães da Ceia também devem ser ázimos? Mas, e se o fato de Jesus não frisar que os pães deveriam ser asmos indicasse que o elemento fundamental era um pão. O mesmo raciocínio pode ser usado para o “fruto da videira” que seria bebido na Ceia.

Assim, de modo semelhante, a respeito do cálice, os Evangelhos não nos contam se havia vinho ou suco de uva, apenas que era “fruto da videira” (Mt.26.29). A ordenança detalhada de Jesus é: tomar do cálice, dar graças, distribuir e beber em memória dEle. Em 1 Coríntios 11, Paulo nos diz que Jesus instituiu a Ceia para sua igreja, dizendo: “fazei isto” (1Co.11.25). Nesse caso, não temos uma ordenança Veterotestamentária sobre a presença do vinho, pois os muitos textos do Antigo Testamento apenas indicam seu uso comum; não como elemento ordenado para a Páscoa judaica. Já no Novo Testamento, encontramos Jesus denominando a si mesmo de “a videira verdadeira” (Jo.15.1) e ordenando que os discípulos bebessem do cálice com o “fruto da videira” (Mt.26.29). Então, uma coisa já sabemos: a Ceia deve conter o fruto da videira.

Em 1 Coríntios 11.17-34, Paulo está ensinado à igreja, de maioria gentílica, a celebrar corretamente a Ceia do Senhor Jesus. Nessa carta, Paulo não faz qualquer alusão à festa judaica nem apresenta um contexto histórico judaico como base para a Ceia, razão para não aparecer o termo ázimo. Contudo, é interessante observarmos que a palavra ázimo aparece antes, metaforicamente, para falar sobre a vida dos coríntios (1Co.5.7-8), uma provável alusão à vida como um culto santo ao Senhor, critério importante para a aceitação do culto solene oferecido a Deus. Portanto, não podemos dizer que os Coríntios eram ignorantes do assunto. Além de que, a forma como Paulo faz uso do termo nos possibilita inferir que os pães da Ceia em Coríntios eram asmos, também.

Mas, como a igreja de todos os séculos deveria entender o contexto da Ceia? Seria o contexto parte da ordenança, também? Ou, a igreja deveria se ater ao que está no imperativo? A ordenança do Senhor Jesus abrange apenas o uso de um pão e do fruto da videira, mas não especifica se os pães deveriam ser ázimos como, impreterivelmente, na Páscoa judaica. O mesmo pode ser dito sobre o cálice, ainda que seja claro o uso do vinho tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. Os imperativos de Cristo enfatizam a atitude dos discípulos frente aos elementos pão e cálice (com fruto da videira), mas não a confecção dos elementos, diferentemente da Páscoa judaica em que as ordenanças frisam veementemente quais seriam os elementos presentes na celebração do rito.

Há cinco imperativos presentes nas narrativas da Ceia do Senhor: tomai (LABETE), comei (FAGETE), bebei (PIETE), reparti (DIAMERISATE), fazei (POIEITE). Junto a estes imperativos, aparecem apenas os termos pão (ARTOS), sem qualquer definição tanto de artigo quanto de adjetivo, e cálice (POTERION), com a especificação de seu conteúdo: “fruto da videira”. Como se o narrador dissesse: “Jesus tomou um pão qualquer que estava na mesa e tomou um cálice que tinha algo derivado da vinha”. Então, com esses dois elementos instituiu um novo ritual: a Ceia do Senhor. Considerando que Cristo estava instituindo a Ceia para a igreja de todas as nações e todos os séculos, a ausência de elementos definidores e qualificadores deve chamar a nossa atenção, junto ao fato de que os imperativos destacam a forma como os discípulos deveriam proceder, não a natureza dos elementos pão e fruto da videira.

Como dissemos anteriormente, o texto de Romanos 14.21 nos ajuda, indiretamente, na solução da questão: o contexto histórico da Ceia faz parte de sua ordenança? Ou seja, o vinho deve ser impreterivelmente usado na Ceia? Em Romanos 14.21, Paulo diz: “É bom não comer carne, nem beber vinho, nem fazer qualquer outra coisa com que teu irmão venha a tropeçar, ou se ofender ou se enfraquecer”. Portanto, conforme o apóstolo Paulo, se o beber vinho escandaliza o irmão é melhor não beber (por amor aos mais fracos), a fim de não conduzi-los ao tropeço. Paulo não faz ressalvas nem abre exceções para a Ceia como se esse ensino devesse ser aplicado ao viver dos cristãos como um todo. Logo, a Ceia na igreja em Roma poderia ser feita sem o vinho, apenas com suco de uva, pois a Ceia visa fortalecer a fé, o amor e a esperança da igreja, não devendo jamais ser instrumento para fazer os fracos na fé tropeçarem.

Em 1 Coríntios 11.23-24, repetindo a ordenança de Cristo, Paulo nos diz que o Senhor Jesus tomou “um pão; e, tendo dado graças, o partiu”. Em grego, não há um elemento definidor nem qualquer qualificador para pão (ARTOS). Contudo, em seguida, para distinguir o pão comido no dia a dia daquele que é comido na Ceia, o apóstolo define o termo pão por meio de um artigo e um pronome, dizendo: “Porque, todas as vezes que comerdes [o] este pão e beberdes o cálice, anunciais a morte do Senhor, até que ele venha” (1Co.11.26). Parafraseando Paulo: “Eu recebi do Senhor o que já ensinei para vocês: que na noite em que Jesus foi traído, Ele tomou um pão, orou a Deus e repartiu aos discípulos dizendo para fazerem isso em memória dEle. [...] Quando vocês comem este pão separado para a Ceia e bebem do cálice distribuído na Ceia, estão anunciando a morte do Senhor até que Ele venha”. Desse modo, Paulo não se preocupa em definir qual o pão para a Ceia, mas torna especial aquele pão que tiver sido separado para a Ceia.

Portanto, se você deseja celebrar a Ceia do Senhor usando exatamente os mesmos elementos utilizados por Cristo, então deverá separar pães asmos e vinho para a Ceia na igreja local. Mas, se você deseja se ater à ordenança de Cristo, deverá se preocupar em celebrar o rito da Ceia da mesma forma que Jesus ensinou, ainda que utilize pão comum e suco de uva. Os elementos da Ceia não deverão ser motivo de tropeço para os cristãos nem por uso inadequado, como estava ocorrendo em Coríntios, nem por falta de maturidade no relacionamento com aqueles que partilham do mesmo pão e do mesmo cálice, como ocorria com a igreja em Roma. A Ceia nos foi dada para fortalecer nossa fé, conduzindo-nos a Cristo, o pão da vida e a videira verdadeira.

Nenhum comentário:

Postar um comentário