“o qual
deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da
verdade” (1Tm.2.4)
A carta de Paulo a Timóteo é composta por diversas
instruções acerca do procedimento de um pastor na condução da igreja, a fim de
torná-la agradável a Deus em todo seu modo de vida (1Tm.3.14-16), preparando-a
para o futuro quando Cristo se manifestará ao mundo (1Tm.6.11-16). Conforme o
apóstolo, Deus deseja que a igreja viva de modo santo e justo no tempo
presente, sabendo que o Senhor reservou perfeita vida futura para seu povo
(1Tm.6.17-19). Esses ensinos deveriam ser transmitidos à igreja (1Tm.5.3-16) e
aos futuros pastores (1Tm.3.1-13) para que tanto um quanto o outro exercitassem
a justiça segundo a sã doutrina, fugindo dos maus ensinamentos e conduta
(1Tm.4.6-16), a fim de que a Verdade fosse manifesta pela igreja, “coluna e
baluarte da Verdade” (1Tm.3.15).
A primeira instrução do apóstolo (1Tm.2.1-8) diz respeito à
prática constante da oração em favor de todas as pessoas, a fim de que os
cristãos vivessem“vida tranquila e mansa, com toda piedade e respeito” (1Tm.2.2).
A ausência de justiça na sociedade não é algo bom e a igreja sofre com isso. Mas,
os cristãos não deveriam seguir o modelo hostil do mundo, participando ou
estimulando o envolvimento em confusões sociais. Paulo ensina que a forma bíblica
para melhorar o ambiente social é orando ao Senhor enquanto prega o Evangelho e
vive de acordo com a sã doutrina, na certeza de que Deus almeja que a igreja
viva uma vida agradável, sendo poderoso para intervir na sociedade, pois “como
ribeiros de águas assim é o coração do rei na mão do SENHOR; este, segundo o
seu querer, o inclina” (Pv.21.1).
O texto de 1 Timóteo 2.1-8 está emoldurado pela exortação à
oração (A e A’). Paulo quer que os homens orem a Deus em vez de tentarem
resolver problemas sociais por meio da força e violência. Ou seja, não existe
outra forma de trazer paz e tranquilidade para o mundo a não ser por meio de
Cristo. Então, Paulo diz que Deus quer que chegue o dia em que haverá paz e
tranquilidade no mundo e, por isso, enviou os apóstolos (dentre eles Paulo)
para pregarem o Evangelho, por meio do qual as pessoas serão transformadas.
Para uma melhor visualização da estrutura do texto, dispomos, graficamente, 1
Timóteo 2.1-8 em forma quiástica:
A Paulo exorta
a pratica de orações em favor de todas as pessoas
B Isso é
agradável a Deus que deseja que chegue a salvação a todos
C Há um só
salvador de todos os homens
C’ Há um só
sacrifício oferecido pelos homens
B’ O apóstolo
foi designado pregador do Evangelho para todos
A’ Paulo
exorta a pratica da oração em favor de todas as pessoas
Mesmo que a oração da igreja seja em favor de todas as pessoas, sua
finalidade é proporcionar vida “tranquila e mansa” para os cristãos por meio da
expansão do Reino de Deus. Mas, quando isso ocorreria, realmente? A esperança
cristã de uma vida “tranquila e mansa” é depositada, em toda a Escritura, na
eternidade, por ocasião da “manifestação de nosso Senhor Jesus Cristo”
(1Tm.6.14). Paulo, então, afirma que Deus se agrada deste bem-estar, querendo
que haja salvação em toda a Terra, ou seja, que seu Reino seja estabelecido
plenamente (1Tm.6.15).
Tendo em vista o propósito das orações: uma “vida tranquila
e mansa, com toda piedade e respeito” (1Tm.2.2), é possível se dizer que Paulo faz
referência, também, ao objetivo final do projeto redentor: a chegada do novo
céu e nova terra onde habitará apenas a justiça e retidão, pois nela viverão
somente aqueles que foram justificados e santificados (1Ts.4.3). O Senhor
deseja que a Terra seja habitada por homens cheios do pleno conhecimento da
Verdade. Ou seja, Deus não se agrada da forma como o mundo está nem do modo
como os cristãos vivem, sofrivelmente, nesse mundo que “jaz no maligno”
(1Jo.5.19).
Por meio da estrutura quiástica, torna-se mais claro que o
desejo de “que todos os homens sejam salvos” (1Tm.2.4) está relacionado à
pregação do Evangelho. Em outras palavras, a igreja deve pregar a salvação em
Cristo para todas as pessoas, pois essa é a vontade de Deus, meio pelo qual o
Reino de Cristo se expandirá, proporcionando uma vida “tranquila e mansa” para
todos. Desta forma, Paulo está estimulando a igreja a pregar a Escritura como
solução para o bem-estar social de todos, algo que Deus realmente deseja, razão
pela qual enviou seu Filho para pagar nosso pecado.
O texto parece ser uma referência a Ezequiel 18.23,32, onde
Deus fala: “Acaso, tenho eu prazer na morte do perverso? -- diz o SENHOR Deus;
não desejo eu, antes, que ele se converta dos seus caminhos e viva? [...]
Porque não tenho prazer na morte de ninguém, diz o SENHOR Deus. Portanto,
convertei-vos e vivei”. Nesse texto, o profeta mostra que apesar dos castigos
advindos da parte de Deus, o Senhor não tem prazer em destruir pessoas, mas o
faz para que sua justiça seja manifesta. Ou seja, mesmo que Deus não deseje a
morte de alguém, para manifestar sua justiça Ele a tira, assim como escolheu
Judas com a finalidade de ser o traidor de Cristo. O plano redentor não possui
brechas resultantes de uma história aberta. Ou seja, Judas não poderia decidir
não ser o traidor. No momento certo, “Satanás entrou em Judas” (Lc.22.3), um
vaso de ira preparado para a perdição (Rm.9.22), a fim de que se cumprisse tudo
o que fora proferido pelos profetas acerca de Jesus (Lc.22.37).
Desta forma, Deus não tem prazer na condenação daqueles que
Ele criou a sua imagem e semelhança (Gn.1.26), todavia precisa condenar a
muitos para que sua glória seja manifesta plenamente, tanto no amor redentor
quanto na justiça condenatória. O Senhor não tem satisfação no sofrimento das
pessoas, mas projetou a história redentora de tal forma que a igreja não foi
poupada do sofrimento por muitos séculos, mesmo sabendo que o Senhor era
poderoso para socorrê-la. O Senhor não gosta de ver seu povo sofrendo, mas
disse para Paulo, quando este suplicou o auxílio de Deus, que não o livraria de
sua angústia, a fim de que dependesse somente da graça divina (2Co.12.7-9). Deus
não anseia pela condenação dos homens, mas estabeleceu critérios impossíveis de
serem cumpridos naturalmente por todos (ouvintes ou não do Evangelho), a fim de
mostrar sua graça por meio do agir do Espírito naqueles que haverão de crer em
Jesus. Portanto, mesmo que Deus não queira o mal das pessoas, às vezes Ele traz
males sobre elas, quer temporário ou mesmo eterno, para que o propósito de
todas as coisas seja alcançado: que seu NOME seja glorificado em tudo: “Que
diremos, pois, se Deus, querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu
poder, suportou com muita longanimidade os vasos de ira, preparados para a
perdição, a fim de que também desse a conhecer as riquezas da sua glória em
vasos de misericórdia, que para glória preparou de antemão” (Rm.9.22-23).
Mais adiante no texto de 1 Timóteo 2, Paulo diz que Jesus é
o único Mediador e Redentor de todos os homens, “o qual a si mesmo se deu em
resgate por todos: testemunho que se deve prestar em tempos oportunos”
(1Tm.2.6). Para compreendê-lo melhor, o colocaremos em paralelo com Romanos
5.12-21 onde Paulo fala sobre o sacrifício de Cristo como segundo Adão, visando
satisfazer a justiça de Deus no lugar daquele que transgrediu a Lei ainda no
paraíso (Gn.3.6-15). De acordo com Paulo, Cristo é o legítimo sacrifício
oferecido pelo pecado original, que resultou em muitas outras transgressões (Rm.5.18).
Jesus, portanto, é o Redentor de todos os homens, pois seu sacrifício
eficazmente substituiu a transgressão do homem, razão para o apóstolo João
dizer que “Ele é a propiciação pelos nossos pecados e não somente pelos nossos
próprios, mas ainda pelos do mundo inteiro” (1Jo.2.2). Ou seja, Jesus satisfez
completamente a justiça de Deus e tem em suas mãos o poder para dar a qualquer
pessoa o perdão dos pecados.
Observe-se que a leitura isolada de Romanos 5.18 poderá
conduzir o leitor à ideia de uma espécie de salvação universal independente da
fé em Jesus, pois se “veio a graça sobre todos os homens, para a justificação
que dá vida” (Rm.5.18) logo todos os homens deveriam estar justificados
independentemente da fé em Cristo. Todavia, Paulo não ensinou esta doutrina. Mais
adiante o apóstolo ensina a necessidade de se crer em Jesus para a salvação de
qualquer pessoa, razão pela qual a igreja deve investir na pregação do
Evangelho: “Porque: Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo. Como,
porém, invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem nada
ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue?” (Rm.10.13-14).
Segundo Paulo, Cristo é salvador de todo homem, entregue por
todos os homens, porque seu sacrifício é representativo, ou seja, representava
a raça humana, estando disponível, portanto, para todos os homens, mesmo que
não alcance todas as pessoas, tais como Judas, o traidor, entre outros
(Jo.17.12; Mt.13.39; At.13.10). Uma cláusula condicional foi estabelecida para
a obtenção da justiça de Cristo: a fé nEle. Somente aquele que crê em Jesus
herdará a vida eterna (Jo.3.15-16) de forma que “quem nele crê não é julgado; o
que não crê já está julgado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de
Deus” (Jo.3.18). Desta forma, o desejo divino de salvar o homem não é o coração
de seu projeto redentor e deve submeter-se ao seu propósito principal:
glorificar a Deus. Por essa razão, o Senhor não concedeu salvação gratuita a
todos os homens indistintamente, antes Ele estabeleceu um critério para que a
salvação glorifique Seu NOME.
Em Timóteo, o ponto central não é a eleição daqueles que
haveriam de crer em Cristo, obtendo o “pleno conhecimento da verdade”
(1Tm.2.4). O propósito de Paulo é mostrar que a bondade de Deus é o único
caminho para a aquisição de uma vida “tranquila e mansa, com toda piedade e
respeito” (1Tm.2.2). Este querer bondoso do Senhor deve conduzir a igreja a
investir na pregação do Evangelho, poder de Deus para a salvação (Rm.1.16),
pois é o único meio de transformar vidas. Portanto, o foco de Paulo não é a
doutrina da eleição, como ocorrerá em outros textos: Romanos 9; Efésios 1 etc.,
nem o assunto é contraditório com os demais ensinamentos do apóstolo, pois seu
foco é o estabelecimento da paz sobre a terra, algo que é alvo do desejo de
Deus.
Resta-nos colocar o texto de 1 Timóteo 2.4 diante de outras
referências que falam sobre certa restrição no projeto redentor:
Ezequiel 36:26-27 Dar-vos-ei coração novo e porei dentro de vós
espírito novo; tirarei de vós o coração de pedra e vos darei coração de carne. Porei
dentro de vós o meu Espírito e farei que andeis nos meus estatutos, guardeis os
meus juízos e os observeis.
Marcos
4:11-12 Ele lhes
respondeu: A vós outros vos é dado conhecer o mistério do reino de Deus; mas,
aos de fora, tudo se ensina por meio de parábolas, para que, vendo, vejam e não
percebam; e, ouvindo, ouçam e não entendam; para que não venham a converter-se,
e haja perdão para eles.
Romanos
9:22 Que diremos, pois,
se Deus, querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu poder, suportou com
muita longanimidade os vasos de ira, preparados para a perdição,
1 João
2:19 Eles saíram de
nosso meio; entretanto, não eram dos nossos; porque, se tivessem sido dos
nossos, teriam permanecido conosco; todavia, eles se foram para que ficasse
manifesto que nenhum deles é dos nossos.
Estas são, apenas, algumas das referências que nos remetem
ao fato de que a salvação é administrada por Deus de tal forma que o homem
depende dEle não somente para obter a justiça, mas, também, para ser capacitado
a crer. Nosso propósito aqui é fazer uma breve análise comparativa com o texto
de 1Tm.2.4, a fim de os cristãos entendam não haver contradição entre os
textos.
O profeta Ezequiel (Ez.36.26-27) é fundamental para o
entendimento da razão pela qual Israel, mesmo vendo as maravilhas de Deus,
sendo guiado por Deus e tendo a lei de Deus, não fez a vontade do Senhor no
decurso de sua história. O profeta responde: porque não tinha o Espírito do
Senhor. Então, Deus promete que dias viriam em que o Espírito do Senhor lhe
seria dado e o coração de pedra seria trocado, a fim de que pudesse viver em
pleno acordo com a lei, fazendo, assim, a vontade de Deus.
O paralelo desse texto com 1 Timóteo 2.4 leva-nos à seguinte
pergunta: Já que Deus “deseja que todos os homens sejam salvos” e é poderoso
para trocar o coração de pedra por um coração de carne, dando-lhes o Espírito
Santo para que obedeçam a seus mandamentos, por que não o fez com todos, mas
apenas com alguns? A resposta encontra-se no propósito máximo do plano de
Salvação: a glória de Deus. Para que Seu NOME seja completamente glorificado em
tudo, aprove ao Senhor que apenas alguns fossem abençoados com um novo coração
e um novo Espírito instrumento para que cressem na Palavra e vissem o Reino de
Deus (Jo.3.3,5). A boa vontade do Senhor não entra em contradição com suas
ações, mas subordina-se a seu perfeito e eterno plano redentor que visa Sua
glória e a glória de Seu Filho Unigênito.
Em Marcos 4.11-12, Jesus responde a indagação dos discípulos
acerca de seu método de ensino, o uso das parábolas. Então, Jesus diz aos
discípulos que as parábolas eram enigmas que dificultavam o entendimento das
pessoas sobre o ensino referente ao Reino de Deus, a fim de que elas não
cressem. Jesus afirma claramente que falava por parábolas “para que não venham
a converter-se, e haja perdão para eles” (Mc.4.12). Portanto, mesmo que Jesus
tenha enviado seus discípulos a pregar o Evangelho, Ele dificultou o
entendimento dos ouvintes para que não alcançassem a salvação. Isso pode levar
à seguinte dedução, também: então, significa que aquelas pessoas poderiam ter
sido salvas caso compreendessem. Todavia, Jesus não disse que elas tinham a
capacidade para entender, mas que lhes estava sendo privada a clareza para que não
entendessem. Em outros momentos, Jesus falou com muita clareza, contudo as
multidões preferiram se afastar dEle (Jo.6).
Em Romanos 9.22, Paulo fala sobre os “vasos de ira” que Deus
suportou durante muito tempo. Isso exigiu a muita paciência de Deus, afinal o
Senhor não se agrada na destruição do pecador. Mas, para que Seu perfeito
projeto eterno fosse satisfeito, foi preciso suportar pacientemente os “vasos
de ira, preparados para a perdição”. Eles foram feitos da mesma massa, ou seja,
são igualmente descendentes de Adão e Eva, todavia foram feitos para cumprir
outro destino que implicaria na glorificação de Deus, eternamente. A ideia de
que o texto esteja falando apenas no aspecto terreno e físico não se coaduna
bem com o versículo 24 no qual Paulo faz referência aos cristãos judeus e
gentios como vasos de misericórdia. A perdição para o qual os “vasos de ira”
foram preparados diz respeito à condenação deles. Mais uma vez, Deus não deseja
o mal dos homens, mas submete sua vontade ao projeto redentor que tem como
propósito manifestar sua glória por meio dos homens.
Por fim, em 1 João 2.19, o apóstolo diz que a saída de
certas pessoas do meio cristão ocorreu para que ficasse evidente que, mesmo
tendo passado um período entre os cristãos, tais pessoas nunca pertenceram ao
povo de Deus. A saída deles apenas evidenciava que havia joio no meio do trigo.
Deus quer que o homem seja salvo, mas nem todos, mesmo estando no meio da
igreja visível de Jesus, recebem a graça de crer em Cristo (Fp.1.29). Algo
semelhante aconteceu com os apóstatas mencionados pelo livro de Hebreus.
Aquelas pessoas desfrutaram de todo o ambiente da graça, mas não tiveram raízes
profundas na Palavra de Deus e, por isso, desviaram-se de Cristo, negando-o
completamente (Hb.6.1-8). Mesmo sem querer condenar o pecador, Deus concretiza
seu projeto, a fim de manifestar sua justiça naqueles que são condenados, da
mesma forma como manifesta sua graça e misericórdia naqueles que são alcançados
pela Palavra e Espírito de Deus.
Concluímos, então, que a vontade de Deus está submissa a Seu
eterno propósito redentor com o fim de glorificar Seu Santo NOME. Deus pode
todas as coisas, mas é firme e paciente em suportar os “vasos de ira”
instrumentos para a manifestação de sua justiça. Vimos, ainda, que o foco de
Paulo em 1 Timóteo 2.1-8, não é a salvação dos homens, mas o estabelecimento da
paz sobre a terra por meio da transformação que o Evangelho opera nos corações
agraciados por Deus. A igreja, portanto, deve pregar o Evangelho “quer seja
oportuno quer não” (2Tm.4.2), pois é o único caminho para uma vida “tranquila e
mansa, com toda piedade e respeito”.
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