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sábado, 4 de abril de 2015

De onde vem a falsa compreensão sobre Maria



Não demorou muito tempo para aparecer os desvios da Verdade no meio do cristianismo já no primeiro século (2Co.11.4; Gl.1.6-7; 1Tm.4.1; 2Tm.2.1-4; 2Jo.1.9). Judeus e Gentios de todas as culturas religiosas foram inseridos na igreja e a conversão da mente não aconteceu instantaneamente (Rm.12.1-2). Além disso, muitos se tornaram membros da igreja sem terem, realmente, sido convertidos, e com o tempo começaram a minar as bases da fé cristã, tentando inserir um tipo de sincretismo religioso dentro do cristianismo, e os personagens cristãos receberam características de heróis, como semideuses do mundo greco-romano. Não foi por acaso que Lucas, escrevendo para os gentios, registrou o breve embate entre Jesus e “uma mulher, que estava entre a multidão, [que] exclamou e disse-lhe: Bem-aventurada aquela que te concebeu, e os seios que te amamentaram! Ele, porém, respondeu: Antes, bem-aventurados são os que ouvem a palavra de Deus e a guardam!” (Lc.11.27-28). Parece que Maria ganhou certo destaque em alguns círculos cristãos já no primeiro século. Esta proeminência feminina pode ter sido criada para justificar a tentativa de algumas mulheres, como a Jezabel do livro de Apocalipse (Ap.2.20), para alcançarem status de líder ou algum tipo de relevância especial. Paulo também precisou combater algumas dessas ousadias ilícitas no meio das igrejas, como está registrado na carta aos Coríntios e à Timóteo (1Co.11.2-16; 1Tm.2.9-15).
Diversas expressões religiosas coabitaram no império romano nos dias do Novo Testamento[1]: os gentios estavam acostumados com figuras femininas proeminentes em sua mitologia greco-romana[2]; grupos ascéticos podem ser encontrados em diversas regiões desde o período interbíblico, conforme as cavernas de Qumram testificam em seus manuscritos judaicos-essênios[3]; além das religiões de mistério que são encontradas entre os gregos e romanos em todo o império[4]. No Novo Testamento aparecem grupos libertinos, mas também ascéticos proibindo o desfrute das coisas boas que Deus criou para serem usufruídas na vida (1Tm.4.1-5), como se toda satisfação corpórea fosse maligna. Alguns desses grupos se desenvolveram um pouco mais, formando grupos gnósticos que apareceram nos séculos II e III da era cristã[5]. O resultado desse desenvolvimento foi a produção literária apócrifa condenada por teólogos e concílios da igreja cristã. O presente texto tem como propósito apresentar uma comparação entre a narrativa de Lucas, acerca da personagem Maria, e a visão apócrifa sobre esta personagem, conforme encontramos nos evangelhos de Pedro e de Tiago.

1. A VISÃO APÓCRIFA SOBRE MARIA

1.1 Apócrifos, bases literárias para extravagantes heresias
São chamados de apócrifos todos e quaisquer livros que procurem arrogar o status de sagrado, inspirado por Deus, sem que de fato o seja[6]. Com isso, não se quer dizer que não possuam alguma informação verdadeira, como ocorre com os livros apócrifos do Antigo Testamento.

Na tradição designaram-se apócrifos aqueles escritos que não fazem parte do cânon bíblico, mas pelo título, pela apresentação e por outros elementos internos e externos se apresentam como textos canônicos reivindicando uma autoridade igual aos do cânon. São livros ou documentos não-autênticos, ou seja, cuja autoria é falsamente atribuída a personagens ilustres para conseguir crédito junto ao público.[7]

Os apócrifos do Novo Testamento possuem algumas características peculiares e “a grande maioria delas pretende transmitir um conhecimento esotérico, oculto, além daquele conhecimento dos apóstolos.[8]” Esse conhecimento oculto que supostamente algum líder e grupo de iniciados possuíam sobre o cristianismo, trazia proeminência sobre os demais grupos cristãos e era usado como meio para alcançar novos adeptos para si. Seu propósito era autenticar os ensinos desses falsos mestres, dando-lhes destaque sobre os demais líderes da igreja enquanto atraía a atenção de leigos no conhecimento das Escrituras Sagradas. Não há lugar para o elemento humilde. Tudo é revestido de especial glória, trazendo superioridade para os portadores de tal conhecimento. O suposto evangelho de Maria é um ótimo exemplo de conhecimento oculto que se propunha ser superior ao que os apóstolos haviam ensinado à igreja:

Pedro disse à Maria, "Irmã, nós sabemos que o Salvador a amou mais que a outras mulheres [cf. Jo 11.5, Lc 10.38-42]. Conte-nos as palavras do Salvador que tens em mente visto que as conhece; e nós não, nem ouvimos falar delas." Maria respondeu e disse, "o que está oculto de vós dividirei convosco."[9]

O fato da liderança da igreja cristã está nas mãos de alguns poucos homens que eram testemunhas de Jesus, não agradou a todos. Em sua terceira carta, o apóstolo João fala acerca de Diótrefes que gostava de ter a primazia e não recebia adequadamente o apóstolo João (3Jo.9). Insatisfeitos de ter que seguir a Palavra de Deus ensinada pelos apóstolos e pessoas próximas a eles (2Tm4.3), alguns indivíduos tentavam autenticar as novas doutrinas que somente eles seriam conhecedores, “quais sonhadores alucinados, não só contaminam a carne, como também rejeitam governo e difamam autoridades superiores” (Jd.8). Outros saíam do meio da igreja e formavam seus próprios grupos, constituindo seitas dentro do cristianismo primitivo (1Jo.2.19). Para dar crédito aos ensinos heréticos, os falsos mestres apresentavam obras que supostamente teriam sido escritas por algum personagem importante para a igreja. Esses ensinos eram extravagantes e atendiam aos anseios do coração pecador que desde a queda deseja ter glória e exaltação. Não há lugar para o elemento humilde dentro dos escritos apócrifos que reivindicam glória em cada detalhe.

1.2 A narrativa sobre Maria nos evangelhos de Pedro e Tiago
Enquanto pouco é dito nos evangelhos canônicos sobre a mãe de Jesus, os evangelhos apócrifos de Pedro e de Tiago, entre outros, se propõem a preencher as lacunas deixadas no Novo Testamento, construindo um conto repleto de intertextualidade judaico-cristã. Assim, as narrativas sobre Maria recuam para os dias antes de seu nascimento, contando quem foram seus pais, como se deu seu nascimento e dias antes de conceber Jesus, até ao suposto dia em que Maria teria subido aos céus diante dos discípulos do Salvador.
O evangelho de Lucas conta a história da família do Messias a partir da aparição do anjo a Isabel e depois a Maria. Enquanto isso, os apócrifos narram os dias antes do nascimento da mãe do Salvador, num texto cheio de intertextualidade com o Antigo e o Novo Testamento. Os pais de Maria eram ricos, mas não tinham filhos, semelhante a Abraão e Sara (Gn.15.1-4), e se chamavam Joaquim e Ana. Esta era estéril e após orações incessantes de ambos, ida de Joaquim ao deserto por quarenta dias e quarenta noites, como Moises, Elias e Jesus (1Rs.19.8; Mt.4.1-2), e visita de um anjo a Ana, como ocorreria com a própria Maria (Lc.1.26-31), prometendo-lhe descendência que seria conhecida no mundo todo, nasce Maria, filha da promessa, entre cânticos de gratidão de sua mãe que como Ana (mãe de Samuel: 1Sm.2.1-10) e Maria (mãe de Jesus: Lc.1.46-55), louva ao Senhor por sua filha. Maria é criada longe de coisas impuras enquanto era entretida por doze donzelas hebréias virgens. O nascimento de Maria é assemelhado ao de grandes profetas como Samuel e João Batista (1Sm.1.1-2.11; Lc.1.1-25), adornado com muita simbologia e ideais ascéticos. E, como uma novilha de três anos (Gn.15.9; 1Sm.1.24), Maria é consagrada ao Senhor aos três anos de idade e deixada no templo, como ocorrera com Samuel nos dias de Juízes (1Sm.1.11, 21-28). Sentada no terceiro degrau do templo, ela dança na presença de Deus e passa a morar nos aposentos sagrados, alimentada por anjos que a serviam, como ocorrera com Elias que fora servido por corvos (1Rs.17.4-6) e com Jesus que foi servido por anjos no deserto (Mc.1.13). O sumo sacerdote ordenou que os viúvos lhe trouxessem cada qual um bastão, semelhante à confirmação da escolha da tribo de Levi para o serviço sacerdotal (Nm.17), e do bastão de José saiu uma pomba como sinal de que Deus o escolhera para ser o guardião da jovem Maria que já estava com doze anos e se conservava imaculada aos olhos de Deus.
Tendo ido para a casa de José, Maria recebe a visita do anjo do Senhor e a narrativa de Lucas é quase que transcrita em blocos, com enxertos que preenchem o enredo. A inocência de José e Maria quanto à concepção sobrenatural desta é atestada pelas águas da prova do Senhor (Nm.5.11-31), trazendo admiração por parte de toda a cidade que recebe a confirmação da parte de Deus de que Maria era virgem e que a criança em seu ventre era o Filho de Deus. Grávida, Maria ora está triste ora está alegre, e este fenômeno é atribuído à visão de dois povos diante dos olhos de Maria: um povo que chora e outro que se alegra. Assim, o texto relaciona Maria com Rebeca de quem saíra duas nações (Gn.25.21-23). Tendo chegado o dia de dar a luz, Maria é levada por José para uma gruta e lá tem seu filho, sozinha (talvez por influencia da mitologia greco-romana), enquanto José vai à procura de uma parteira. Além da narrativa da presença dos três magos e a estrela brilhante registrada nos evangelhos canônicos (Mt.2.1-12), o momento em que Maria está dando a luz é repleto de fenômenos incríveis. Tudo parou ao redor da gruta e uma nuvem luminosa a cercava impossibilitando a vista de seu interior. De dentro saía uma luz tão forte que não era possível contemplá-la e tendo esta minguada logo se pode ver o menino nos seios de sua mãe. A narrativa não enfoca o menino que nasceu, como fazem os evangelhos canônicos, pois nem mesmo o nome do menino é citado. O foco está sobre a mãe que mesmo depois de ter dado a luz permanece virgem conformo constatou Salomé, amiga da parteira[10].
Assim, nos apócrifos, Maria é apresentada com beleza e virtude superior às demais pessoas, além de ser transmissora de paz ao coração daqueles que a ouvem.[11] Maria é portadora de um conhecimento oculto que nem mesmo os doze discípulos possuíam[12]. Ela é a mais bem-aventurada, e se destaca em sabedoria. Com graça e ternura intercede e ajuda muitas pessoas a obterem milagres por meio de seu filho. Anjos falam com Maria e esta tem visões dentre as quais recebe a revelação de sua assunção que ocorreria em três dias após a visão. O apóstolo João pede desculpas por não ter cuidado dela adequadamente, e os demais apóstolos, inclusive Paulo, recebem a revelação de que a mãe do salvador seria assunta aos céus. Por fim, com a face brilhante, rodeada pelos discípulos do Salvador e uma voz celeste dizendo: “Bendita és tu entre as mulheres”, a alma de Maria é assunta aos céus, abraçada nos pés pelos discípulos que desejavam ser por ela santificados.[13] Dessa forma, os apócrifos conseguem colocar Maria lado a lado com Jesus como intercessora nas regiões celestes.
Num misto de culturas religiosas, os autores das narrativas sobre Maria mesclam os Escritos do Antigo e Novo Testamento[14], com tradições judaicas e até mitologias greco-romanas, formando textos ricos em lendas as quais procuraram creditar, relacionando-as com textos das Escrituras Sagradas cristãs. Com os apócrifos da natividade de Maria o feminino é adornado de glória e poder, conferindo assim credibilidade para possíveis lideranças femininas que no cristianismo nunca foram aceitas. Esses textos agradaram a grandes grupos femininos presente em círculos cristãos diversos e atraíram aqueles que estavam acostumados com o feminino no ambiente sagrado pagão cheio de deusas.

1.3 Ausência do elemento humilde na narrativa apócrifa
Com ou sem paralelos no Antigo Testamento, as narrativas sobre Maria são revestidas de glória e exaltação. Não há lugar para o elemento humilde entre os personagens principais que sempre são cobertos de honras e realizam coisas miraculosas, direta ou indiretamente, transformando objetos simples em relíquias sagradas. A humildade presente nas atitudes dos personagens são citações dos evangelhos canônicos e formam uma pequena parte do texto. Essa intertextualidade era necessária para embasar a obra, relacionando-a estritamente com os livros sagrados que estavam em circulação no seio da igreja, conferindo credibilidade e autoridade à obra que procurava ganhar lugar entre os fiéis. Contudo, até o gesto humilde nos livros apócrifos é usado como expressão de grandeza espiritual que destaca o personagem dentre as demais pessoas comuns. Abaixo, foram enumerados três tópicos que revelam a ausência do humilde na narrativa apócrifa: riqueza versus pobreza; sobrenatural versus natural; ascético versus comum.
Riqueza versus pobreza
Ouro, presentes ricos, perfumes caros e pessoas importantes como sacerdotes, príncipes e reis adornam a família de Jesus no decorrer do conto. A narrativa começa com um homem rico e afamado em Israel, chamado Joaquim.[15] Este homem será o pai de Maria. Antes de Maria ter completado um ano, foram chamadas donzelas hebréias virgens para cuidarem dela, o que demonstra o alto poder aquisitivo da família que podia pagar pelas virgens. Maria, então é criada com regalias de uma família abastada. O aniversário de um ano de Maria é festejado com um grande banquete e os principais dos judeus são convidados: sacerdotes, escribas, príncipes e o sinédrio. Portanto, a família era importante dentre os judeus e Maria foi apresentada com graça diante de todos, se tornando afamada entre os principais de Israel. Após ter completado doze anos, Maria foi entregue aos cuidados do viúvo José que também era homem de boas posses, pois era construtor. José não é um simples carpinteiro e nem transparece ser de família simples. Quando Maria está para dar a luz, José a deixa numa caverna, pois estavam em campo aberto. O humilde estábulo, onde Jesus foi posto numa manjedoura, é substituído por uma caverna revestida de glória, pois “parecia-se com um templo augusto, onde reis celestiais e terrestres celebravam a glória e os louvores de Deus por causa da natividade do Senhor Jesus Cristo”[16]. Não há menção do sacrifício oferecido por José e Maria e, ao circuncidarem Jesus colocaram seu prepúcio num vaso com perfume caríssimo, perfume de alabastro, de óleo de nardo velho, que é identificado com o perfume de trezentos denários que Maria derramou sobre Jesus, dias antes de sua morte (Mc.14.5; Jo.12.5). O pano que Maria dá para os magos é considerado de um preço incalculável e é colocado entre os tesouros, como uma relíquia sagrada. No curso de suas viagens, Maria se encontra com a esposa de um príncipe que dá uma festa para a “sagrada família”, além de presentes de gratidão pela cura do filho leproso. Outro homem que teve um feitiço quebrado dá um grande banquete para eles. Mais adiante, a família passa a noite numa casa nobre. Em Mataréia, Jesus faz surgir uma fonte que produz um bálsamo de seu suor. Em outra cidade, Maria encontra mais uma princesa que tinha lepra. Em outra ocasião, José é contratado para fazer o trono de um rei. Nobres e ambientes pomposos fazem vários dos cenários visitados pela família durante a jornada.
Portanto, o estereótipo de uma família humilde, sustentada por um simples carpinteiro e que não tinha condições de oferecer um cordeiro em sacrifício pelo nascimento de Jesus, é substituído pelo estigma de uma família de origem nobre e sempre bem servida entre pessoas da nobreza. Diversos dos personagens que recebem benefícios dos poderes do filho de Maria eram pessoas de relevante status social e excelentes condições econômicas. O elemento humilde é retirado das narrativas dando lugar a uma vida próspera.

Sobrenatural versus natural
Além de riqueza, conforto e status, as narrativas revestem a família de Jesus com o sobrenatural que está presente desde o nascimento de Maria. Ela nasce como obra milagrosa, pois sua mãe era estéril. Tendo sido deixada no templo, Maria é sustentada por anjos que a alimentam. Quando Maria faz doze anos, José é escolhido para ser o esposo de Maria por meio de um sinal miraculoso de Deus. Quando Maria está dando à luz, o tempo pára, uma nuvem luminosa reveste a caverna, que brilha mais do que o sol ao meio-dia, e, mesmo após ter dado a luz, Maria continua sendo virgem. Por só acreditar vendo, semelhante a Tomé (Jo.20.24-27), Salomé tem sua mão carbonizada. A faixa que envolvia Jesus, e é dada aos magos, não se queima no fogo. Tendo começado a viagem de fuga por causa de Herodes, um rastro de milagres vai sendo deixado pela família por onde passa: endemoniados são libertos, leprosos são curados, mortos são ressuscitados, ladrões são espantados, feitiços são quebrados, fonte de bálsamo surge do nada, pessoas são curadas de pestes, meninos são livrados da morte, objetos ganham vida e outros mudam de forma, pessoas morrem por afrontarem Jesus e sua sabedoria maravilha a todos. Quase todos os milagres que ocorreram foram administrados por Maria que, sabendo quem seu filho era, mediava curas com objetos de uso pessoal de Jesus para realizar os milagres nas pessoas que apresentavam seus problemas. A maior parte da narrativa se detém a contar os milagres realizados por Jesus nos braços de sua mãe que agia como uma mediadora, ou intercessora, entre o povo e o Filho de Deus. O comum ganha valor especial ligado ao sobrenatural, e semelhante ao rei Midas, tudo o que a família tocava recebia nova roupagem de forma que as cidades por onde a família trafegou não foram mais as mesmas.

Ascético versus comum
Maria não aparece como uma mulher comum entre as mulheres de Israel. Para justificar o privilégio que ela recebeu de ser a mãe do Salvador, as narrativas realçam a vida de Maria apresentando-a como a eterna virgem escolhida por Deus. Maria é chamada de “beatíssima virgem Maria”[17] Desde cedo, os pais tiveram cuidado para que Maria não tocasse em nada impuro e seus pés foram guardados para o Templo de Deus onde ela ficaria como cumprimento do voto de sua mãe[18]. Para que cuidassem dela, foram chamadas donzelas virgens hebréias, ou seja, puras moças de Israel. Maria é abençoada diversas vezes por sacerdotes e príncipes. Consagrada para o Senhor, Maria é deixada no templo e lá fica até seus doze anos, sendo servida por anjos, separada de tudo que é comum. Ela é a virgem do Senhor, por isso os sacerdotes são orientados para escolher dentre os homens apenas viúvos que teriam a missão de cuidar de Maria. Ela não iria compor uma família como as demais jovens. Tudo em sua vida concorre para sua missão, de forma que a vida de Maria é traçada desde o início de um modo especial, preparando-a para ser a mãe do Filho de Deus. José viaja e ao voltar já a encontra grávida, pois Maria concebeu da Virtude de Deus. Assim, Maria nunca foi tocada por homem algum e mesmo tendo dado à luz permanece virgem por todos os seus dias. A partir do nascimento de Jesus, sua vida se resumirá em cuidar de Jesus e mediar entre o povo e o Filho de Deus. Como mãe do Filho de Deus, consagrada desde o ventre de sua mãe e separada por toda a sua vida, Maria media todo encontro entre os pecadores e o Senhor Jesus. As pessoas vêem na família um lar de deuses e aclamam Maria pelos favores que realiza. O povo chama Maria de “nossa senhora” e a família é denominada como: “Sagrada Família”.

2. MARIA NOS EVANGELHOS CANÔNICOS

2.1 Surgimento e propósito dos livros canônicos
Após a subida do Senhor Jesus aos céus, os discípulos trataram de aguardar a promessa da dádiva do Espírito Santo para começarem a obra de propagação do evangelho do Reino. Então, no dia de pentecostes, a promessa se cumpre e os discípulos começam a testemunhar sobre os três anos de ministério de Jesus, tendo como clímax a morte e ressurreição de Cristo. Os apóstolos foram testemunhas de Cristo e o propósito deles era anunciar a glória de Jesus.
Os evangelhos canônicos surgem no seio da igreja, escritos por apóstolos ou homens que estavam bem relacionados com o grupo dos apóstolos, e foram naturalmente reconhecidos como Palavra de Deus. Enquanto os livros apócrifos são tardios, surgem a partir do segundo século, os evangelhos canônicos surgem cedo no meio da igreja, como necessidade de registrar e difundir entre todas as igrejas tudo o que estava sendo testemunhado pelos apóstolos. Aqueles que haviam ouvido, agora tinham em suas mãos o registro de tudo e poderiam ler e reler toda a história, bem como propagá-la com precisão entre os judeus e gentios. A preocupação primária era a conservação do registro dos fatos que formavam o evangelho, as boas novas do Senhor Jesus, para que a igreja se mantivesse firme no objeto de sua fé que havia recebido dos apóstolos. Afinal, o evangelho não é uma mensagem existencial apenas, mas o agir de Deus na história humana. A igreja recebeu os livros sagrados e não só os guardou, mas logo os reproduziu espalhando-os pelo império Romano. E, se no início os milagres creditaram os apóstolos perante o povo, na segunda metade do primeiro século já não eram mais necessários, pois todos haviam reconhecido a Palavra de Deus testemunhada e escrita pelos homens que Jesus escolhera e por aqueles que estiveram próximos a eles. Dessa forma, os livros canônicos balizavam toda doutrina que a igreja deveria crer, servindo, também, como padrão para a rejeição de toda heresia que surgisse. Por esta razão, os livros apócrifos foram rejeitados naturalmente pela igreja. E para que os leigos não fossem enganados, os concílios e pais da igreja trataram de formalizar a rejeição a tais obras que contrariam os ensinos da Palavra de Deus.

2.2 A narrativa sobre Maria nos evangelhos
Divergindo dos textos apócrifos, os evangelhos são bastante objetivos nas narrativas da natividade de Jesus e dispensam completamente a história do nascimento de Maria. Eles se atém a demonstrar que aconteceu naqueles dias tudo conforme foi predito pelos profetas do Antigo Testamento (Mt.1.23). O foco está em Jesus, o Messias prometido Salvador do mundo (Jo.20.30-31), por quem se alcança a vida eterna, e os evangelistas não deixam de narrar os fatos com fidelidade, como fazem os apócrifos. O propósito é relatar o evangelho tal como este acontecera, afinal é por meio do conhecimento da Verdade que o pecador é salvo. Maria é descrita como uma mulher virtuosa, pois: creu na Palavra do Senhor, proferida pelo anjo; se submeteu à vontade de Deus (Lc.1.26-45); engrandeceu ao Senhor por tamanha graça recebida (Lc.1.46-55); foi humilde mesmo com tamanha honra recebida; e, sempre guardava em seu coração tudo que via e ouvia parte de Deus (Lc.2.7,19). Junto com seu marido ela cumpriu toda a lei de Israel (Lc.2.22-24, 41-42) e se preocupou com seu filho (Lc.2.48-51). E, somente depois do Batismo de Jesus, Maria revela saber que Jesus possuía poder, conforme bodas em Caná da Galiléia (Jo.2.1-5). Contudo, os evangelhos contam que Maria habitava entre o povo como uma mulher comum (Mt.13.55; Mc.6.3) e assim como os discípulos compreenderam a pessoa e ministério de Jesus pouco a pouco, assim também Maria compartilha de semelhantes dúvidas, preocupações e anseios até a ressurreição de Jesus (Mc.3.21,31). E, na morte e ressurreição, Maria está presente chorando com a crucificação e depois se alegrando com a ressurreição, como qualquer mãe faria por seu filho, pois ainda não havia compreendido tudo (Mc.16.1-11). Se houve alguma preocupação em transmitir uma boa e correta imagem de Maria, esta é transmitida por Lucas, em seu segundo volume, mostrando ser Maria uma mulher de oração (At.1.14), e isto era suficiente para a igreja, pois Maria era uma irmã querida como todos os demais cristãos.
Assim, os personagens nos Evangelhos são homens e mulheres simples, comuns dentre os de sua geração que recebem a graça do chamado para cumprir uma missão específica, cooperando para a consumação do propósito redentor de Deus. Dessa forma, o centro de toda a história Bíblica é o Senhor Deus (Pai, Filho e Espírito Santo) que manifesta seu poder e glória na simplicidade da história humana, consumando a redenção por meio da vergonha da cruz, na qual Jesus, o Rei dos reis e Senhor dos senhores, morre pagando os pecados de seu povo. E como os demais personagens, Maria cumpre seu papel e em sua pequena vida Deus é glorificado.[19] Distante de receber algum tipo de atenção especial, Maria sai de cena bem no início dos evangelhos canônicos, de forma que Jesus não divide sua glória com mais ninguém durante toda sua vida e ministério, morte, ressurreição e ascensão.

2.3 A glória de Deus na vida da humilde Maria
Uma humilde e simples serva de Deus. Esta é a imagem de Maria nos evangelhos canônicos. Sempre que Maria é apresentada nas narrativas, sua descrição não se distancia das características de uma mulher comum do primeiro século. Nisto, Deus é glorificado, pois revela sua graça superabundante na vida de pessoas comuns. Maria era uma jovem virgem de Nazaré, uma simples cidade da Galiléia, e estava desposada de José, um simples carpinteiro. Eles teriam uma vida normal como qualquer outro casal, mas o anjo Gabriel lhes traz uma notícia que muda o rumo inicial da vida do casal. Maria é escolhida para ser a mãe do Salvador, o Filho de Deus, e José teria um importante papel de cuidar de Maria e Jesus. Contudo, o foco não estaria na mãe nem em José, mas tão somente sobre “o ente santo que há de nascer” (Lc.1.35). Maria aceita com humildade e dá graças a Deus pelo privilégio. O que uma jovem simples como Maria teria para oferecer ao Filho de Deus? Na simplicidade de Maria e José, Deus manifestaria seu cuidado, fidelidade e graça, e todos os passos seriam orientados e conduzidos pelo Senhor. Na simplicidade da vida deles, Jesus foi glorificado, pois seu esvaziamento da glória, vivendo humildemente como um de nós, precedeu seu ministério, pois toda sua vida foi simples e humilde. Após o nascimento, a família oferece a oferta ordenada por Moisés e, por causa da condição econômica humilde, eles ofertam apenas uma rola ou dois pombinhos (Lc.2.22-24//Lv.12.6-8). Nada de extraordinário acontece além das profecias que são pronunciadas por alguns personagens, e Maria nada faz a não ser guardar as palavras ouvidas em seu coração. A missão dela é cuidar de Jesus com fidelidade para que no devido tempo Ele seja revelado ao mundo, e como João Batista se pronunciou: “Convém que ele cresça e eu diminua” (Jo.3.30), também Maria veria a glória de seu filho ser exaltada perante o mundo. Na pequena e frágil vida de Maria, Deus revela sua glória e poder redentor se identificando com o homem, preservando sua vontade e manifestando seu poder.

CONCLUSÃO
Maria é descrita nos evangelhos canônicos, à semelhança de todos os demais personagens da Bíblia, como uma pessoa agraciada por Deus, contudo sujeita às mesmas desventuras e fraquezas que qualquer outra ser humano. Dessa forma, sem privá-la de sua benção divina, as Escrituras, registram fielmente os fatos históricos e mantém o foco sobre o único que é digno de receber toda honra e toda glória em todas as gerações: Deus.
No entanto, os apócrifos distorcem a imagem de Maria, dando-lhe status de heroína mediadora entre Deus Filho e os homens. Para dar credibilidade aos seus ditos, seus autores fazem diversas citações tanto do Antigo quanto do Novo Testamento. Contudo o principal critério para a rejeição dos apócrifos é exatamente a desarmonia deles com relação aos livros canônicos. Ao contrariarem, doutrinaria e/ou historicamente, os livros canônicos, a igreja rejeitou os apócrifos, retirando-os de entre os livros lidos nos cultos. Alguns que liam e recomendavam a leitura de apócrifos foram convencidos em sua comparação aos livros canônicos que deveriam ser excluídos dos círculos cristãos por causa das heresias.[20]
Infelizmente, os apócrifos não deixaram de ser lidos, e com passar do tempo foram aceitos em alguns grupos cristãos como expressão de sua fé. O resultado deste desvio da Verdade pode ser visto em diversas seitas cristãs, dentre elas a mais expressiva é o Catolicismo Romano, que exalta Maria indevidamente, colocando-a ao lado de Jesus nas regiões celestes, como eterna intercessora[21]. Esse fenômeno demonstra quão perigoso é a tolerância às heresias no seio da igreja, pois a conduz pouco a pouco à completa perdição.



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[1] BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Petrópolis: Editora Vozes, 1986, vol. 1, p.32-34
[2] MÉNARD, René. Mitologia Grego-Romana. São Paulo: Opus Editora, 1991, vol. 1, p.22-32.
[3] GUNDRY, Robert H. Panorama do Novo Testamento. São Paulo: Editora Vida Nova, 2ª Ed. 1999, p.56
[4] ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p.7-8
[5] SANTOS, João Alves dos. Cristianismo e Gnosticismo: Uma avaliação de sua incompatibilidade ao ensejo da publicação do evangelho de Judas. In: Fides Reformata XI, nº 1, 2006, p.51-81
[6] REID, Daniel G. Dicionário Teológico do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2012, p.114
[7] ZILLES, Urbano. Evangelhos apócrifos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p.9-10.
[8] LOPES, Augustus Nicodemus. Porque não aceitamos os evangelhos apócrifos. São Paulo: Fides Reformata, 2012, Vol. 17 p.14.
[9] Excertos do Evangelho de Maria. In: PROENÇA, Eduardo. Apócrifos da Bíblia e pseudo-epígrafos. Tradução: Cláudio J. A. Rodrigues. São Paulo: Fonte Editorial, 2005, p.610
[10] Proto-Evangelho de Tiago. In: PROENÇA, Eduardo. Apócrifos da Bíblia e pseudo-epígrafos. Tradução: Cláudio J. A. Rodrigues. São Paulo: Fonte Editorial, 2005, p.519-530
[11] Evangelho de Pedro. In: PROENÇA, Eduardo. Apócrifos da Bíblia e pseudo-epígrafos. Tradução: Cláudio J. A. Rodrigues. São Paulo: Editora Cristã Novo Século, 2004, p.641-671
[12] Excertos do Evangelho de Maria, p.609-611
[13] Passagem da Bem-aventurada virgem Maria. In: PROENÇA, Eduardo. Apócrifos da Bíblia e pseudo-epígrafos. Tradução: Cláudio J. A. Rodrigues. São Paulo: Fonte Editorial, 2005, p.771-776
[14] MORALDI, Luigi. Evangelhos Apócrifos. São Paulo: Editora Paulus, 2008, p.55-60
[15] Proto-Evangelho de Tiago, 2005, p.519-530
[16] Evangelho de Pedro., 2004, p.644.
[17] Passagem da Bem-aventurada virgem Maria, 2005, p.772
[18] Proto-Evangelho de Tiago, 2005, p.520.
[19] CARSON, D. A.; MOO, Douglas J.; MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1997, p.144.
[20] LOPES, 2012, p.16.
[21] Carta apostólica Rosarium Virginis Mariae do Sumo Pontífice João Paulo II ao episcopado, ao clero e aos Fiéis Sobre O Rosário. Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/apost_letters/ documents/hf_jp-ii_apl_20021016_rosarium-virginis-mariae_po.html. Acesso em 10 de julho de 2014.

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