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sábado, 29 de julho de 2017

A origem das críticas: da FORMA e da REDAÇÃO

No final do século XVIII, em meio ao ambiente iluminista e como resultado de suas filosofias racionalistas conflitantes, nasce, entre a erudição alemã, o método histórico-crítico que arroga para si completa imparcialidade, racionalidade e objetividade na análise hermenêutico-exegética dos textos, querendo contrapor a hermenêutica realizada pela igreja no decurso dos séculos, por considerá-la supersticiosa. Dentro do ambiente histórico-crítico, surge no início do século XX a crítica da forma, amplamente defendida por Bultmann. Posteriormente, por volta da década de cinqüenta, e alicerçada tanto na crítica da fonte quanto na crítica da forma, surgiu a crítica da redação com três alunos de Bultmann: Günther Bornkamm (Mateus), Willi Marxen (Marcos) e Hans Conzelmann (Lucas). A crítica da forma e a crítica da redação são duas perspectivas diferentes sobre o texto, e, apesar de serem o resultado de esforços racionalistas, são, contraditoriamente, subjetivas e hipotéticas em muitas de suas conclusões, definidas basicamente pelos pressupostos que carregam.
A crítica da forma é bastante ousada em seu propósito, pois seu foco está nas tradições orais utilizadas para compor o texto organizado pelo redator. Essas tradições representam diversas comunidades que possuíam suas próprias crenças e focos teológicos que foram sendo desenvolvidos com o passar do tempo, formando doutrinas e também mitos, afinal um dos principais pressupostos do método histórico-crítico é o deísmo, a existência de um Deus que não se envolve com a criação nem na história nem por revelação. Conforme a crítica da forma os conectivos de tempo e lugar foram acrescentados pelo redator e não estavam nas fontes tradicionais da igreja, pois esta nunca teria se preocupado em organizar nem os ditos de Jesus nem sua história. Este fenômeno teria ocorrido pelo fato de que igreja estava preocupada com a fé e esta não estaria arraigada na história e sim numa mensagem. A fé é vista como um elemento subjetivo, bem próprio do existencialismo que utilizará bastante a crítica da forma em sua leitura da Bíblia.
Uma vez que o texto é o resultado da compilação das tradições orais que eram propagadas no meio da igreja, além de outras fontes escritas teorizadas pela crítica das fontes, a crítica da forma se empenha em descobrir os estágios que vão do Jesus histórico ao Cristo da fé, ou seja, como as tradições foram sendo desenvolvidas no seio da igreja com o passar dos anos. Um dos critérios mais utilizados para se encontrar as reais palavras do Jesus histórico é o critério da dessemelhança, ou seja, somente o que não pode ser encontrado no judaísmo nem no cristianismo deverá ser aceito como palavras do Jesus histórico, o restante foi posto pela igreja na boca de Jesus. Assim, o Jesus histórico é descontextualizado de seu próprio ambiente judaico e a igreja é vista como uma falsificadora da mensagem de seu mestre.
Martin Dibelius foi o responsável por popularizar o termo: Crítica da forma. Contudo, Rudolf Bultmann se tornou o estudioso mais influente no campo da crítica da forma, com sua análise dos evangelhos em busca do Jesus histórico. Um ponto importante que deve ser ressaltado em meio a todo subjetivismo da crítica da forma é que esta demonstrou que é impossível se encontrar um Jesus puramente histórico em meio a todos os textos canônicos da igreja. Desta forma, a única possibilidade é aceitar o personagem Jesus tal como é apresentado nas Escrituras, pois fora dele é impossível se encontrar outro.
A crítica da redação nasce um pouco depois da crítica da forma, como já fora dito. Ned B. Stonehouse foi o primeiro a desenvolver a crítica da redação, ainda que nunca tenha feito uso do termo. Contudo, foi Gerhard von Rad quem popularizou a crítica da redação em seu comentário de Gênesis ao considerar que as fontes utilizadas pelo seu editor não foram organizadas aleatoriamente. Surge, então, um novo foco do estudioso histórico-crítico: descobrir a teologia do editor dos livros Bíblicos. O foco migra das obras escritas e tradições orais para o editor que fez uso de todo este material com propósito bem definido. Conforme a crítica da redação, o propósito dos editores do Cânon formal foi transmitir sua teologia com pouca, ou mesmo nenhuma, intenção de preservar dados históricos, pois a fé não dependia destes.
Foi a hipótese dos textos recortados e colados estabelecida pela crítica da fonte e crítica da forma que fundamentou a constituição dessa nova crítica: a crítica da redação. Nesta, a atenção não está nem sobre as fontes nem sobre o processo da tradição, mas sobre o redator que organizou tudo formando o texto final. Percebeu-se, que aqueles que eram considerados péssimos editores, homens ignorantes, eram, na verdade, sábios escritores que sabiam muito bem o que estavam fazendo, e que realizaram tal empreitada com excelência, esbanjando perspicácia literária. Uma das grandes dificuldades que os estudiosos da crítica da redação apresentam é a tentativa de fazer separação entre os textos que exprimem a teologia do editor e os textos que expressam a teologia de supostas comunidades, pois mesmo que os estudiosos da crítica da redação reconheçam a capacidade do redator, não o veem como autor de uma obra coesa, mas como hábeis compiladores que deixaram suas marcas na obra literária que editaram. Desta forma, os estudiosos partem na busca pelo Cânon normativo dentro do Cânon formal, expurgando o que foi imposto pelo redator. Além de não perceberem a imensa subjetividade aplicada nesta inútil busca, os estudiosos tendem a desacreditar outros métodos de estudo das Escrituras, como se os métodos acima fossem os únicos capazes de conduzir o estudioso ao conhecimento literário-teológico presente nos livros do Antigo e Novo Testamento.
A crítica da forma e a crítica da redação são aplicadas tanto ao Antigo Testamento quanto ao Novo Testamento. Contudo, após diversas teorias, quanto a composição do Pentateuco, entrarem em descrédito, muitos estudiosos, tanto da crítica da forma quanto da redação, se concentraram no estudo dos evangelhos, principalmente os sinóticos. Estas ainda são largamente utilizadas pelo mais diversos liberais, em toda a Escritura, mas tem recebido maduras e fortes críticas daqueles que reconhecem a inspiração da Bíblia. Infelizmente, as mais diversas críticas literárias da pós-modernidade estão sendo aplicadas à Bíblia. Elas podem ser encontradas em filmes evangélicos, músicas, livros, boletins e pregações, de forma que os perigos oferecidos por estes métodos e sua cosmovisão estão bem próximos do dia a dia da igreja, tornando-a simplesmente existencialista ao desvinculá-la da fé histórica.
Mas, há alguma coisa que possa ser aproveitada? Sim. Ao se retirar os maus pressupostos filosóficos liberais, é possível se aproveitar algo desses métodos, afinal tanto não é novidade que fontes orais e escritas foram utilizadas para compor parte das Escrituras Sagradas (Lc.1.1-4; 1Co.11.23; 1Co.15.3) quanto que cada autor possui sua originalidade na escrita de seu livro, como os evangelhos sinóticos demonstram. Contudo, é dentro da crença na inspiração, inerrância, infalibilidade e autoridade das Escrituras que o estudioso procura compreender o desenvolvimento orgânico da fé da igreja e o propósito que cada autor teve ao escrever.

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