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quinta-feira, 21 de abril de 2016

Olhares diversos sobre Paulo e sua teologia

para mostrar, nos séculos vindouros, a suprema riqueza da sua graça, em bondade para conosco, em Cristo Jesus.” (Ef.2.7)

É claro que não se deve pensar em teologia paulina somente após a reforma protestante, pois os pais da igreja (séc.II à VIII) procuraram compreender a teologia do apóstolo Paulo, bem como a igreja dos séculos seguintes (séc.IX à XV). Contudo, a partir da reforma (séc.XVI), as cartas de Paulo ganham destaque nos círculos cristãos, alvo de estudos os mais variados. Tanto os reformadores retiraram das cartas paulinas os fundamentos da fé, livres dos abusos papais de um cristianismo norteado por tradições apócrifas, quanto diversos outros estudiosos fizeram delas a base para seus estudos místicos, liberais e ético-morais.
Lutero foi profundamente marcado pela doutrina da justificação pela fé, e fez dela o critério para a canonicidade dos livros do Novo Testamento. Romanos era para ele a carta magna e a justificação pela fé somente, sem as obras da lei, era o importante fundamento que aponta para Cristo, afinal todas as coisas devem apontar para Jesus. Calvino, também, vivenciou o espírito da reforma em sua ênfase à justificação pela fé como tema chave para a compreensão do evangelho, e, apesar de não ter assumido o rigor de Lutero, Calvino compreendia que essa doutrina era fundamental para “substituir o espírito de servidão legalista”. Lutero e Calvino fizeram uma leitura judicial da Lei, de forma que a justificação deveria ser compreendida como uma obra objetiva e legal, que ocorreu fora do homem, imputada a ele por meio da fé. Esta fé torna o homem participante da justiça alcançada por Jesus.
Com o surgimento do pietismo (séc. XVII), misticismo e moralismo, a ênfase sobre a justificação mudou, deixando sua aplicação judicial, externa ao indivíduo, para uma experiência individual de salvação focada em sua prática espiritual e moral. A salvação é enfatizada a partir do relacionamento do indivíduo com Deus por meio de sua prática espiritual e conduta moral, em conformidade com os ensinos do Novo Testamento, que tem no sermão do monte seu modelo. A justificação não é mais compreendida em termos objetivos, mas subjetivos, e a imagem jurídica de um tribunal onde Cristo nos justificou perante o Juiz de toda a Terra é substituída por um quadro de cunho mais existencialista, repleto de experiências espirituais-ético-morais. Ainda que o pietismo tenha apontado importantes pontos da teologia, a piedade cristã cotidiana, trocou o foco da fé cristã.
A partir do iluminismo, o estudo das cartas paulinas ganha uma maior força acadêmica por meio da exegese histórico-crítica norteada pelos pressupostos filosóficos e religiosos da época (séc. XVIII), criando diversas imagens de Paulo de acordo com tais conceitos pré-concebidos. A maioria dos estudiosos foram buscar suas ideias nas filosofias gregas, religiões de mistério, literaturas apocalípticas e livros gnósticos. O background judaico de Paulo se tornou completamente secundário e o Antigo Testamento foi quase que ignorado. O “Jesus histórico” se tornou apenas um ponto de partida para o desenvolvimento praticamente independente de Paulo, formando basicamente uma nova religião a partir de um misto de ideias que o influenciaram após sua experiência de conversão na estrada de Damasco. Quatro escolas produzem sua própria imagem de Paulo: a escola de Tübingen, a escola liberal, a escola da história das religiões e a escola das interpretações escatológicas.
A partir da escola de Tübingen (séc. XIX), os estudiosos tendem a ler Paulo numa perspectiva subjetiva ético-mística. O Antigo Testamento e o judaísmo não é o background das cartas paulinas, mas as religiões de mistério encontradas entre os gregos, além dos conceitos helênicos sobre salvação, carne, espírito etc. O ponto de partida é a experiência de Paulo na estrada de Damasco. Esta teria transformado o fariseu num novo homem desvencilhado da Lei judaica.
A partir de seu fundador F. C. Baur, a escola interpretou o cristianismo por meio dos princípios filosóficos de Hegel, afirmando encontrar nas cartas paulinas uma antítese ao cristianismo judaico que estava preso à Lei mosaica. Conforme esta escola, a síntese entre o cristianismo judaico e o cristianismo de Paulo aparece posteriormente por meio do gnosticismo e do catolicismo sintético. Enquanto o cristianismo inicial ainda vivia debaixo da esfera da Lei, Paulo defendeu e propagou um cristianismo fora das amarras da Lei. Mais tarde, a igreja gera uma síntese dos dois pensamentos concebendo o universalismo. Para Baur, Paulo estava desassociado do cristianismo iniciado pelos demais apóstolos. Conforme Baur, o Jesus histórico não é o objeto da fé do apóstolo aos gentios. Sua concepção de cristianismo liberto da Lei surgiu quando Deus o chamou e lhe revelou a realidade da morte de Jesus. A partir de sua experiência, Paulo não precisava da história relacionada ao cristianismo, pois Deus falava em sua consciência diretamente. Por esta razão, Baur considerou uma grande parte do conteúdo das cartas paulinas como escrito não original do apóstolo, por causa das muitas referências ao Antigo Testamento.
Um pouco posterior à escola de Tübingen, apareceu a escola liberal interpretando Paulo à luz de uma antropologia grega, considerando que a linha jurídico-legal pertencia ao judaísmo enquanto Paulo adotava uma linha ético-mística de caráter grego-helenista. Assim, a “união com Cristo” é interpretada com sentido místico voltado para a ética. Paulo teria abandonado o judaísmo após sua conversão na estrada para Damasco começando uma nova vida influenciada por diversos pensamentos gregos místicos. A antítese entre espírito e carne é analisada numa perspectiva ético-racionalista, onde carne significa os desejos animalescos, como o desejo sexual, e o espírito é “o mais importante princípio racional no ser humano”. Contudo, sem poder negar o caráter jurídico da doutrina da justificação, o liberalismo ora interpreta Paulo numa visão grega e moral ora afirma que Paulo abordava o tema numa perspectiva judaica. A conversão de Paulo em Damasco foi de caráter subjetivo e se tornou a base para a doutrina da salvação elaborada pelo apóstolo. Essa salvação se dá por meio da experiência pessoal e interior do indivíduo, com o Espírito. Seus conceitos teriam se originado a partir de pensamentos gregos que o influenciaram, fazendo-o abandonar os conceitos judaicos de seu tempo de fariseu. O pensamento de Paulo é reduzido a uma religiosidade ética-racional independente de fatores redentores objetivos.
No entanto, conforme Wrede, os conceitos de Paulo eram provenientes de sua religião judaica e foram transferidos para Jesus, gerando o Cristo de Paulo. Mesmo que a proclamação de Paulo não tenha muita relação com o Jesus histórico, deve ser compreendida a partir deste. A concepção de Wrede sobre a teologia de Paulo sobrepôs as compreensões anteriores a ele, ainda que não tenha feito justiça ao pensamento do apóstolo, pois manteve certa distância entre o apóstolo e o Filho de Deus histórico.
A abordagem da história das religiões interpretou Paulo a partir das religiões de mistério presentes em sua época. Em certa medida, sua abordagem não é muito diferente das demais escolas, tentando explicar os conceitos de Paulo a partir das filosofias e religiões presentes no primeiro século. Para essa escola, as religiões de mistério helênicas teriam exercido forte influência sobre Paulo que inseriu os elementos sacramentais no cristianismo, associando-os à morte e ressurreição de Jesus. Cristo é reinterpretado de forma mística se tornando o kyrios pneumático (Senhor espiritual) que se faz presente misticamente no culto oferecido pela igreja. Este kyrios (Senhor) é o Espirito que atua na igreja proporcionando uma experiência de ressurreição. A presença do kyrios (Senhor) na vida do cristão transmite para este a vida, tornando-o participante de sua eternidade. Uma espécie de pré-gnosticismo teria influenciado Paulo. Sua proclamação não se baseava nos ensinos e obra do Jesus histórico, mas na experiência que ele teve em seu interior. Paulo seria um místico que assimilou o conceito mitológico de redentor redimido.
Conforme a escola da interpretação escatológica de Paulo, a união da igreja com cristo deve ser compreendida num sentido escatológico judaico. Portanto, a teologia de Paulo está fundamentada na pregação do Reino de Deus anunciada por Jesus. O tempo presente se tornou o período escatológico, mas como diversos elementos esperados não foram cumpridos, Paulo fez uma releitura mística, de acordo com o esquema de livros apocalípticos como Baruque. O presente e o futuro, o natural e o sobrenatural se encontram nesta era tornando o cristão coparticipante da ressurreição, como uma “personalidade conjunta” desfrutada por meio do “pneuma” (Espírito). Contudo, essa relação não é simbólica, nem místico-grega, mas real e corpórea que ocorre por meio da apropriação do evento sacramental.
Apesar de todo esforço, nenhuma das correntes de interpretação fez justiça aos aspectos fundamentais da teologia do apóstolo Paulo. Perdeu-se a continuidade entre o Antigo e o Novo Testamento, pois o cristianismo deixou de ser visto como o cumprimento das promessas redentoras feitas pelos profetas. A conversão de Paulo se tornou um completo abandono de seu passado relacionado ao Antigo Testamento. Sem um fundamento para alicerçar a teologia paulina, foi preciso colocar outro no lugar daquele que fora retirado, e, para isso, as escolas de interpretação recorreram aos diversos elementos filosóficos e religiosos presentes nos dias do apóstolo, criando uma imagem completamente distorcida de Paulo e sua teologia.
Contudo, um grupo de teólogos tem se preocupado em ler o evangelho a partir de seu sentido original, olhando para o Novo Testamento como o cumprimento da história redentora anunciada pelo Antigo Testamento. A escatologia realizada não é o resultado de uma frustração, mas a compreensão de que os últimos dias se iniciaram por meio de Jesus e a igreja já desfruta das bênçãos divinas enquanto aguarda o advento da volta de Jesus. Desta forma, toda a teologia de Paulo é compreendida numa relação de continuidade com o Antigo Testamento, vida e obra de Jesus. Herman Ridderbos representa com excelência um grupo significativo de estudiosos ortodoxos com esse olhar para Paulo e suas obras.
Conforme Herman Ridderbos, há alguns temas que são básicos na formação da teologia de Paulo. Eles se constituem no fundamento da “proclamação e explicação do tempo escatológico de salvação inaugurado com o advento de Cristo, sua morte e ressurreição”. Paulo usa duas vezes a expressão “Plenitude dos tempos” para se referir à consumação do tempo com o advento de Cristo. O mundo entrou em seu estágio final e esse último estágio possui um aspecto presente e outro futuro, ambos abordados pelo apóstolo que tanto olha para o presente, explicando a presença do Reino de Deus, quanto aborda o tempo futuro quando se dará o desfecho destes dias. Dentro deste tempo Paulo faz menção do “dia da salvação” como referência à encarnação, morte, ressurreição, glorificação de Cristo e vinda do Espírito. Esses eventos redentores se constituem no “dia da salvação” e inauguraram os últimos dias. O futuro escatológico chegou por meio de Cristo e com Ele a “nova criação” foi inaugurada. A igreja, portanto, já desfruta da nova criação. Esta ampla realidade dos últimos dias estava oculta nos dias do Antigo Testamento. Mas, a proclamação do evangelho de Paulo, e o Novo Testamento como um todo, é a “Revelação do mistério” que estivera oculto em tempos anteriores. Paulo explica que o advento de Cristo não era conhecido dos homens, mas o tempo de sua revelação chegou por meio da manifestação de Cristo e pregação apostólica.
Paulo compreende a história à luz de Cristo de forma que sua escatologia é cristológica, pois está diretamente relacionada com os eventos históricos-redentor acontecidos em Cristo. Esses eventos são a base da pregação de Paulo, determinados pela morte e ressurreição de Jesus. O Reino de Deus chegou com poder e o mundo presente perdeu sua força diante da chegada do tempo escatológico. Um novo mundo está presente sobrepondo o velho mundo com seus pecados. Aqueles que creem recebem a aplicação da obra expiatória de Cristo se beneficiando do tempo da salvação. Esses desfrutam de uma plena união com Cristo, uma realidade permanente que molda todos os aspectos da vida. Por meio dessa união com Cristo o pecado é vencido, pois o velho homem foi crucificado perdendo seu controle sobre aqueles que estão em Cristo. A carne já não tem domínio, pois a nova criação foi inaugurada proveniente do Espírito. Toda essa realidade foi inaugurada pela pessoa de Cristo, o filho de Deus pré-existente que na plenitude dos tempos foi revelado. Ele é o primogênito de todas as coisas, ou seja, o Senhor absoluto de todo o cosmo criado, também o inaugurador da nova criação. Por meio do Espírito, penhor que sela que garante ao crente a redenção final, Cristo, exaltado à destra de Deus, mantém comunhão com a igreja. Mas, o advento do Espírito, parte do projeto redentor, somente pode ser compreendido à luz de Cristo de forma que sem os eventos históricos-redentor manifestos na pessoa de Cristo a promessa do Espírito não poderia ser cumprida. Pelo Espírito a igreja mantem sua expectativa futura até que a revelação do mistério de Deus seja completada quando Cristo for manifesto em glória.

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