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quarta-feira, 9 de março de 2016

O cristão e as relações trabalhistas

não como escravo; antes, muito acima de escravo, como irmão caríssimo, especialmente de mim e, com maior razão, de ti, quer na carne, quer no Senhor.” (Fm.16)

Em 13 de maio de 1888, num domingo, a princesa Isabel sancionou a lei nº 3.353, concedendo liberdade aos escravos no Brasil. Neste dia, ocorreu, oficialmente, a abolição da escravatura que fora chamada de lei Áurea. Uma nova etapa iniciava-se no Brasil, legalmente e aparentemente melhor. O Brasil deixa de ter uma característica político-econômica comum ao primeiro século: o uso da mão de obra escrava e o tratamento opressor com um grupo social considerado inferior (escravos), tratado como mero objeto de posse de seus donos. No entanto, sabemos que a abolição não acabou com o sistema opressor político-econômico, marcado pelo pecado, que tem governado o país.
Ainda que não haja mais escravos, sentido mais literal da palavra, no sistema político-econômico do país, o relacionamento chefe-funcionário carece de princípios bíblicos, a fim de ser saudável para ambas as partes, mantendo a dignidade de ambos e a produtividade necessária para cada um. Paulo já havia dado instruções por meio da carta aos Efésios quanto à forma como os chefes crentes devem tratar seus funcionários (Ef.6.9), e quanto ao modo como os funcionários cristãos devem se submeter às autoridades tanto crentes quanto não cristãs (Ef.6.5-8). Em Filemom, Paulo demonstra os efeitos restauradores da conversão, pois aquele que era considerado inferior, e “inútil”, por ser escravo (Fm.11) é tratado com a dignidade de um irmão “caríssimo” (Fm.16), útil para a obra missionária (Fm.13). Por meio de Cristo, a igualdade ontológica é restaurada, e não somente Filemom, mas, também, a igreja que se reunia na casa de Arquipo deveriam saber como proceder diante de tais circunstâncias. Além disso, Paulo ensina que o propósito de levar o evangelho ao mundo tem primazia sobre os interesses pessoais.
O apóstolo começa a carta fazendo menção de sua prisão. Em vez de fazer uso do termo (escravo) como faz costumeiramente em suas cartas (Rm.1.1; 2 Co.4.5; Gl.1.10; Fp.1.1; Tt.1.1), ele o substitui por prisioneiro. Também, faz referência a suas algemas nos versículos 10 e 13 para referir-se à sua prisão. É interessante a substituição dos termos, pois Paulo está se dirigindo para um dono de escravos, acerca de um escravo fugitivo sobre o qual o apóstolo deseja que seja liberto para servir ao Senhor de todos, Jesus. Paulo não é um escravo nesta carta, provavelmente para mostrar sua liberdade alcançada em Cristo. Paulo é um prisioneiro que está sofrendo por causa dos homens que o aprisionaram, tentando impedir o avanço do evangelho do Senhor Jesus.
O apóstolo desejava restaurar pacificamente a relação entre o escravo e seu senhor, conduzindo para um relacionamento fraterno e livre, por meio de Cristo. Quanto a isso, Paulo tinha convicção de que seria bem sucedido em sua empreitada para com Filemom (v.21). Sua iniciativa não era tão inovadora quanto parece, pois o Antigo Testamento já possuía preceitos sobre o assunto. A Lei ordenava que dentro da nação de Israel, um israelita não poderia escravizar seu irmão, somente os estrangeiros (Lv.25.39; Dt.23.15; 1 Rs.9.22). A conversão de Onésimo mudou os parâmetros de sua relação com Filemom, e Paulo desejava que a nova condição do escravo fosse considerada por Filemom, a fim de que o libertasse como irmão amado em Cristo.
Paulo inicia sua intercessão por Onésimo no versículo 8, prefaciando a solicitação com a menção de sua autoridade, que deve ser compreendida como referência ao ofício apostólico e, também, ao fato de que Filemom “devia até a si mesmo” (v.19). Contudo, a autoridade do apóstolo Paulo não era a única razão pela qual ele desejava que fosse obedecido. Melhor era que Filemom tivesse o prazer de agir em plena consciência de seu papel como nova criatura dentro do Reino de Deus, obedecendo com agrado e não por constrangimento, voluntariamente e não por força. Melhor que a obrigação da obediência, seria o amor que Filemom deveria demonstrar por aquele escravo transformado em servo de Jesus.
A fuga de Onésimo não foi obra do acaso, nem seu encontro com Paulo uma simples coincidência. Paulo interpreta a fuga de Onésimo como propósito de Deus (v.15), a fim de que o escravo problemático de Filemom retornasse como servo fiel e útil, irmão amado de Paulo, e, consequentemente, de Filemom, também. Conceitos comuns à época são quebrados pelo apóstolo ao chamar de irmão um escravo, último na pirâmide social, considerado inferior às demais pessoas da sociedade, tornando-o, assim, igual a si mesmo. Paulo era um homem privilegiado socialmente, pois possuía o direito de cidadania romana, por nascimento; judeu de família tradicional, que se destacara em seus estudos na famosa escola de Gamaliel; além de ser apóstolo do Senhor Jesus (At.22.25-28; Fp.3.4,5). Contudo, sua posição social não o tornava melhor que aquele escravo fujão. Em Cristo, Paulo entende que todos são irmãos, iguais perante Deus, ainda que diferentes em suas funções dentro da igreja.
O apóstolo aplica a lei prescrita por Moisés em Levítico 25.39: “Também se teu irmão empobrecer, estando ele contigo, e vender-se a ti, não o farás servir como escravo.”, ao novo relacionamento entre Filemom e Onésimo. A conversão de Onésimo o tornou irmão de Filemom, portanto este deveria olhar para Onésimo como igual, a fim de amá-lo como Cristo o amou (Jo.13.34-35). A Lei previa o tratamento igualitário para todos os Israelitas, filhos de Deus, irmãos pela fé no mesmo Deus. Tal convicção de Paulo perante a Lei é tão clara, que o apóstolo devolve Onésimo a Filemom entendendo que não está ferindo o mandamento prescrito em Deuteronômio 23.15: “Não entregarás ao seu senhor o escravo que, tendo fugido dele, se acolher a ti.
Onésimo não estava voltando como escravo, mas como irmão. Filemom deveria recebê-lo como irmão em Cristo, não como um produto comprado para servi-lo durante seus dias. De forma semelhante, Onésimo deveria ter satisfação em servir a Filemom não por ser escravo, obrigado a cumprir suas obrigações com medo da punição. Onésimo deveria estar à disposição de Filemom por amor, por obediência ao Senhor de ambos, instruído pela Palavra e tendo recebido o modelo do próprio Cristo: “Ora, se eu, sendo o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros. Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós também.” (Jo.13.14,15).
Filemom deveria ser convencido de que a conversão de Onésimo mudara o relacionamento entre eles. Agora eram irmãos na fé, não mais estranhos quanto a aliança em Cristo. O muro que separava os dois fora derribado, para que formassem um só povo: “Porque ele é a nossa paz, o qual de ambos fez um; e, tendo derribado a parede da separação que estava no meio, a inimizade,” (Ef.2.14). Por esta razão, também, o apóstolo, pai na fé de ambos, sentia-se à vontade para enviar Onésimo de volta para Filemom. Paulo estava proporcionando a comunhão, em Cristo, entre Filemom e Onésimo.
Paulo estava bastante preocupado com o que ocorreria no encontro entre seus filhos na fé, Filemom e Onésimo. A fuga de Onésimo poderia acarretar em prejuízo espiritual para Filemom: ira, planos pecaminosos, condutas não coerentes com a Palavra de Deus, sentimentos não movidos pelo Espírito Santo. Pecados poderiam ocupar a vida daquele senhor de escravos. Paulo estava preocupado com Filemom e, também, com a igreja que estava ciente de toda a situação, testemunhando, até aquele momento, a boa conduta daquele homem de Deus: Filemom. Diferente da preocupação com Filemom, Paulo estava certo de que Onésimo estava convencido de seu erro e, por isso, concordara com a sugestão de Paulo para que voltasse para Filemom. Infelizmente, Onésimo não possuía nada para recompensar Filemom por qualquer estrago que pudesse ter causado, então Paulo intervém, apelando para o perdão de Filemom (v.18 e 19).
A carta está repleta de apelos de Paulo: O testemunho de Filemom perante a igreja (v.5), a autoridade apostólica (v.8), a piedade de Filemom (v.6-7), o agir de Deus providenciando a conversão de Onésimo (v.15,16), o relacionamento entre ele, Paulo e Filemom (v.17), o bom testemunho de Filemom perante Paulo (v.21), a visita do apóstolo à Filemom (v.22), a presença de muitas testemunhas (v.2,23,24). Este número de apelos visa alcançar o favor do coração de Filemom. Paulo faz algo semelhante ao que fez Jacó quando voltava para a casa de seu pai, tendo recebido a informação que Esaú estava vindo ao seu encontro (Gn.32.3-21). Jacó distribui seus bens em partes para presentear o irmão, uma parte à frente da outra, a fim de amolecer o coração de Esaú. Cada encontro com os presentes seria uma tentativa de quebrantar o coração do irmão, que na mente de Jacó estaria endurecido. Paulo usa de mesma estratégia para quebrantar o coração de Filemom. Cada apelo era como um presente que quebrantaria pouco a pouco um coração possivelmente marcado pela raiva. Talvez Paulo soubesse que Filemom havia ficado bastante desgostoso com a fuga de Onésimo e, por isso, tomou tal atitude. Ou, mesmo que não soubesse, o apóstolo estava se precavendo, imaginando a possibilidade de Onésimo encontrar Filemom com o coração endurecido.
O novo mandamento dado por Cristo estava em discursão. Filemom sabia que um cristão devia ao outro o amor com que Cristo amou a igreja. Cristo havia ensinado aos apóstolos: “Novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros; assim como eu vos amei, que também vos ameis uns aos outros.” (Jo.13.34). O amor que Filemom devia a Onésimo não era mais o amor ao próximo somente: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mt.22.39), pois Onésimo não era mais um simples próximo de Filemom. Agora, eles eram irmãos em Cristo, e o amor com que deveriam se amar era especial, pois era peculiar à igreja de Cristo: “Sede, pois, imitadores de Deus, como filhos amados; e andai em amor, como também Cristo nos amou e se entregou a si mesmo por nós, como oferta e sacrifício a Deus, em aroma suave.” (Ef.5.1,2).
Este novo relacionamento entre eles, por causa de Cristo, também exigia o acerto de contas entre Filemom e Onésimo. Onésimo deveria cumprir a justiça e pagar a Filemom tudo quanto estivesse devendo. No entanto, como já mencionamos acima, Onésimo não tinha condições de arcar com qualquer prejuízo que tivesse causado a Filemom. Restava, então, que Filemom colocasse em prática o amor sacrificial com que Cristo nos amou, perdoando Onésimo de todas as suas dívidas. Paulo faz menção de alguma dívida que Filemom tinha para com o apóstolo: “para não te alegar que também tu me deves a ti mesmo” (Fm.19). Esta dívida pode ser a insistente atuação do apóstolo em pregar o evangelho para Filemom, pelo qual houve sua conversão e, por isso, passou das trevas para o Reino de Deus. Ou pode ser alguma ajuda crucial que Paulo ofereceu a Filemom, livrando-o de dificuldades ou mesmo da morte. Paulo não cobrou a dívida que Filemom tinha para com ele, perdoando-o. Desta mesma forma, Filemom deveria proceder com Onésimo. Filemom teve a oportunidade de aplicar o amor Bíblico ao receber Onésimo de volta, não mais como escravo comprado com dinheiro, mas como um irmão caríssimo, pois foi comprado pelo precioso sangue do Senhor Jesus.
A partir de Filemom e Onésimo, a igreja aprendeu como lidar com situações reais dentro do contexto escravista e da esfera trabalhista em geral, aplicando o amor cristão aos relacionamentos socioeconômicos. Havia um grande número de escravos dentro do império romano, e muitos deles se converteram ao cristianismo. O tratamento amoroso dos cristãos aos escravos trouxe grandes implicações para a sociedade, pois despertou a reflexão sobre o direito humano à liberdade, pela qual muitas gerações lutaram posteriormente. O cristianismo se tornou o grande propagador da liberdade, por meio da valorização do indivíduo reconhecido como imagem de Deus.
Em Filemom, Paulo nos ensina como deve ser o tratamento do chefe para com seu funcionário e, também, o tratamento do funcionário para com seu chefe. Filemom deveria ver em Onésimo a imagem de Cristo, que estava sendo restaurada nele pela Palavra de Deus e pelo Espírito do Senhor (2Co.3.18). Cristo havia comprado aquele escravo por meio de seu precioso sangue. Por esta razão, ele era caríssimo. De forma semelhante, aqueles que possuem funcionários cristãos devem trata-los como irmãos, pelos quais Cristo morreu. Isto implica em tratamento amoroso, respeitoso, valorizando o ser. Não deve haver exploração nem financeira nem físico-mental, pois não há diferença ontológica entre funcionário e chefe, apenas diferença funcional. O chefe deve ser benção para seu funcionário, o auxiliando para que cumpra bem sua missão de glorificar a Deus com a vida e pela pregação da Palavra. O cristão não deve fazer o irmão na fé de escravo nem usá-lo para se beneficiar.
Mas, não apenas Filemom deveria cumprir seu papel cristão como chefe. Onésimo, também, deveria cumprir suas obrigações com amor e respeito. Ele deveria pagar o que devia, deveria obedecê-lo e servi-lo bem. O funcionário cristão deve trabalhar com amor, fazendo sempre o melhor para os que receberão seu serviço. Desta forma, o trabalhador cristão estará testemunhando a restauração do ser e da sociedade por meio da conversão a Cristo, difundindo os valores do Reino dos céus. O trabalhador cristão não deve ser ganancioso, pois a ganância é idolatria, amor ao dinheiro. Portanto, o cristão deve trabalhar usando suas capacidades para promover o bem-estar dos outros. Onésimo estava disposto a trabalhar para o apóstolo Paulo, a fim de ajuda-lo no desenvolvimento da obra missionária. De forma semelhante, o trabalhador cristão deve ser benção para o chefe, clientes, colegas de trabalho etc., a fim de proporcionar um ambiente harmônico adornado com “justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo” (Rm.14.17).

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