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sábado, 4 de abril de 2015

O Dia do Senhor em Apocalipse

“In dominica die[1]” (Ap.1.10), João recebeu uma das mais sublimes revelações dadas por Deus à sua igreja: Apocalipse. À semelhança das revelações proféticas do Antigo Testamento, Apocalipse é Palavra de Deus à sua igreja em dias difíceis e tentadores, exortando à fidelidade, mesmo diante de prejuízos, prometendo-lhes dias de esperança e glória. Os cristãos do primeiro século viviam altos e baixos, ora desfrutando de relativa tranquilidade, onde corriam o risco de se conformarem com o presente século (Rm.12.1-2; Ap.2-3) ora sendo perseguidos pelos inimigos judaizantes, gregos e romanos (At.8.1; 13.50; Rm.8.35; Ap.2.10), tendo que pagar o preço de servir a um único Rei, o Senhor Jesus. Conforme Bruce, os dias dos cristãos se tornaram mais incertos e perigosos após a década de 60 d.C., pois

enquanto a lei romana considerava o cristianismo uma variante do judaísmo, o cristianismo se beneficiava do status que o judaísmo desfrutava como uma religião permitida (religio licita), mas, quando a distinção entre os dois se tornou clara para as autoridades imperiais, o cristianismo foi destituído de toda e qualquer proteção legal.[2]

Segundo Ladd, um historiador do quinto século chamado Paulo Orósio contabilizou dez grandes tribulações sofridas pela igreja nos primeiros séculos da era cristã. Dentre essas, duas se encontram no primeiro século: a primeira no reinado de Nero (64 d.C.), e a segunda durante o reinado de Domiciano (95 d.C)[3]. É importante salientar que a tradição da igreja é praticamente unanime em atribuir a data do final do primeiro século para a escrita do livro de Apocalipse. Segundo Kistemaker, a tradição da igreja confirma, desde cedo, que o apóstolo João escreveu Apocalipse durante o reinado de Domiciano:

Justino Mártir, na primeira parte do segundo século (cerca de 135) escreveu: “Houve certo homem entre nós cujo nome era João, um dos apóstolos de Cristo, que profetizou, por meio de revelação que lhe foi feita.” O autor do Fragmento Muratoriano, datado de aproximadamente 175, atribuiu Apocalipse a João, a quem considerava ser o apóstolo. Cerca de 180, Irineu comentou que sabia de pessoas que tinham visto o autor do Apocalipse[4].

Ser cristão no primeiro século exigia abnegação e firmeza para não se envolver com as riquezas e prazeres idólatras, presentes em todo o império, nem sucumbir às pressões daqueles que obrigavam os crentes a negar Jesus. O cristão deveria permanecer firme na esperança, aguardando o “dia do Senhor”, o dia da vingança de Deus, o dia da eterna salvação dos fiéis. Essa esperança era alimentada pela participação na Ceia do Senhor que era celebrada no “primeiro dia da semana” (At.20.7), dia no qual Cristo venceu a morte, tornando-se Senhor de todo aquele que nele crê, para dar a vida eterna aos que para ele viverem (Rm.14.9). Assim, o dia escolhido pela igreja para se reunir em adoração a Deus trazia alento aos corações que viviam no meio de um reino pagão, pois a idolatria greco-romano estava presente em, praticamente, todas as áreas da vida pública, tornando os dias mais difíceis. O apóstolo João, por se manter fiel, experimentava na ilha de Patmos as consequências de não aderir ao sistema cúltico imperial. Segundo Hendriksen, não se sabe a razão pela qual João foi exilado e se “o apóstolo estava sentenciado a trabalhos forçados porque havia se recusado a queimar incenso sobre o altar de um sacerdote pagão[5]”. Conforme Kraybill, o proceder de Roma inquietava o autor em seu cuidado com a igreja de Jesus, de forma que “a pressão do culto imperial está no centro da preocupação de João[6]” em todo o livro de Apocalipse.
Ainda que Kraybill considere haver relativa tranquilidade nos dias de João, reconhece que certa tribulação acompanhava os cristãos naqueles dias, desafiando-os à fidelidade. Assim, “o fato de João mencionar tribulação qli/yij, perseverança u`pomonh, e a ilha de Patmos, tudo em uma única frase, (1,9), indica ser ele habitante relutante”[7]. Earle faz uma importante ponderação ao lembrar que, sistematicamente, Deus se revelou em tempos de tribulação, de forma que os dias de João se encaixam em perfeita consonância com o contexto de boa parte das literaturas proféticas:

Parece que tempos de tribulação frequentemente preparam o terreno para a revelação de Deus ao homem. Plummer observa: “Foi no exílio que Jacó viu Deus em Betel; foi no exílio que Moisés viu Deus na sarça ardente; foi no exílio que Elias ouviu ‘uma voz mansa e delicada’; foi no exílio que Ezequiel viu a glória do Senhor junto ao rio Quebar; foi no exílio que Daniel viu o “ancião de dias” [8]

Desta forma, ao receber a revelação das mãos de João, Apocalipse soa ao coração dos cristãos como a voz mansa e delicada ouvida pelo profeta Elias após manifestações tempestivas (1Rs.19.11-12); voz que alenta a alma dos fiéis cansados das tormentas de um mundo que “jaz no maligno” (1Jo.5.19); voz que aquieta o coração agitado (Sl.46).
Nenhum dos livros do Novo Testamento contém o registro do dia em que foram escritos. Mas, em Apocalipse esse dia aparece claramente, e dentre os muitos dias nos quais o alento divino poderia ser revelado, Deus faz uso proposital do “dia do Senhor”, dia repleto de significado para os crentes do Antigo e Novo Testamento. Qual conteúdo teológico a expressão evn th/| kuriakh/| h`me,ra|  (no dia do Senhor) carrega em Apocalipse? Qual a sua relação entre o escatológico hw"hy> ~Ay (dia do Senhor) e o th/| mia/| tw/n sabba,twn (o primeiro dia da semana) usado pelos cristãos para culto a Deus?

O DIA DO SENHOR NO ANTIGO TESTAMENTO
Ainda que a expressão hebaica hw"hy> ~Ay (dia do Senhor) apareça poucas vezes no Antigo Testamento (Is.2.12; 13.6,9; Jr.46.10; Ez.13.5; 30.3; Jl.1.15; 2.1,11,31; 3.14; Am.5.18,20; Ob.1.15; Sf.1.7,14; Zc.14.1; Ml.4.5), a ideia remonta à promessa feita por Deus a Adão e Eva com respeito ao dia em que viria aquele que pisaria a cabeça da serpente (Gn.3.15): dia de juízo para a serpente e salvação para o homem. A promessa parece sumir nas páginas seguintes do Pentanteuco e, também, nos livros classificados como históricos (Josué a Ester). O cuidado de Deus com o povo eleito ganha proeminência enquanto a conquista da terra prometida aparece com destaque. No entanto, a promessa não foi esquecida por Deus. Antes, “o dia do Senhor” ganha nova forma no termo “descanso”, prometido por Deus para um povo peregrino no deserto, e no quarto mandamento ordenado pelo Senhor como celebração profética solene semanal. Ao descansar, após seis dias de trabalho, o povo de Deus proclamava a promessa do descanso futuro, o fim das peregrinações e lutas da nação, à semelhança da celebração da Ceia do Senhor, tomada pela igreja do Novo Testamento: “porque, todas as vezes que comerdes este pão e beberdes o cálice, anunciais a morte do Senhor, até que ele venha.” (1Co.11.26). Semelhantemente, Israel é ensinado a viver pela esperança da chegada do descanso prometido: “habitareis na terra que vos fará herdar o SENHOR, vosso Deus; e vos dará descanso de todos os vossos inimigos em redor, e morareis seguros” (Dt.12.10). Conforme Barcellos, “Deus anunciou, na motivação do quarto mandamento, a figura do Libertador de Israel; e, nessa figura, vemos, também, a promessa do Redentor de toda a humanidade[9]” (Dt.5.15).
Com o surgimento dos profetas clássicos, o “dia do Senhor” ganha nova dimensão, expresso em diversas formas nem sempre tão claramente escatológicas. Smith está certo em afirmar que as “expressões “naquele dia”, “nos últimos dias”, “o dia do Senhor”, “naqueles dias”, “eis que vem dias” e “o fim” [...] podem se referir a um evento passado ou futuro, não necessariamente escatológico”[10]. Todavia, ainda que Deus esteja se referindo, no uso de algumas dessas expressões, a eventos históricos-locais específicos, como a queda de algumas nações (Is.12-30; Ob.1.1), não se pode ignorar o fato de que tudo concorria para uma melhor compreensão do principal evento histórico-cósmico, planejado e profetizado por Deus em todo o Antigo Testamento: “o dia do Senhor”. Conforme Kaiser acertadamente observa: “Os profetas então tomavam, em sequência, os temas do dia do Senhor, do Servo do Senhor, da Nova aliança, do reino de Deus, e do triunfo do plano de Deus. Tudo pertencia, porém, a um só plano.[11]” Portanto, o “dia do Senhor” é o principal evento para o qual os demais apontam, pois é o dia da revelação do Messias e manifestação da glória de Deus; dia da vingança do Senhor e da salvação de seu povo. Segundo Kaiser:

o dia do Senhor é aquele tempo de juízo mundial durante o qual Deus fará conhecida a Sua supremacia sobre todas as nações e sobre a própria natureza. Javé Se vindicará através das Suas grandes obras que todos os homens reconhecerão como sendo divinas na sua origem. O juízo seria universal, inescapável e retribuidor. [12]

Por meio dos profetas, Deus ensinou para Israel o viver pela esperança do dia prometido. A frustração na conquista da terra prometida, o descanso do Senhor (Sl.95.11), não ocorreu por acaso, pois a esperança de Israel estava sendo direcionada para o escatológico “dia do Senhor”, dia de vingança contra os inimigos de Deus, dia de vitória para aqueles que esperaram no “Redentor e Santo de Israel” (Is.49.7). Mesmo após a entrada na terra, o dia solene de descanso, o sábado, permaneceu como ordenança, lembrando que o “dia do Senhor” ainda não havia chegado. O autor de Hebreus lembra ainda que “se Josué lhes houvesse dado descanso, não falaria, posteriormente, a respeito de outro dia. Portanto, resta um repouso para o povo de Deus.” (Hb.4.8-9). Por esta razão, encontramos no Novo Testamento um povo ansioso pelo dia em que o Senhor libertaria a nação do jugo de seus inimigos e a tornaria o centro do governo divino sobre toda a terra numa nova era de prosperidade e paz.
Muitas dúvidas pairavam no coração da nação sobre a forma como Deus viria ao encontro de seu povo, contudo não restava dúvida de que tudo concorria para este dia (Jo.4.25). A partir do profeta Isaías a relação entre o “dia do Senhor” e a vinda do Messias se torna cada vez mais estreita a tal ponto que o dia da vinda do Messias é anunciado como o próprio “dia do Senhor”:

8 Ouve, pois, Josué, sumo sacerdote, tu e os teus companheiros que se assentam diante de ti, porque são homens de presságio; eis que eu farei vir o meu servo, o Renovo9 Porque eis aqui a pedra que pus diante de Josué; sobre esta pedra única estão sete olhos; eis que eu lavrarei a sua escultura, diz o SENHOR dos Exércitos, e tirarei a iniqüidade desta terra, num só dia10 Naquele dia, diz o SENHOR dos Exércitos, cada um de vós convidará ao seu próximo para debaixo da vide e para debaixo da figueira. (Zc.3.8-10 – grifo meu)

O modo como o “dia do Senhor” chegaria ganha detalhes e o Messias seria o grande responsável por cumprir a Palavra de Deus, inaugurando uma nova era na história humana: a supremacia de Israel por meio do Reinado Messiânico. A escatologia deste dia não é desconecta da história, pois é o cumprimento de todas as promessas realizadas por Deus para um povo cansado dos sofrimentos de um mundo em confusão. A nova era não apagaria o passado, antes restauraria a perfeição outrora perdida, concedendo descanso das muitas lutas travadas durante a história de Israel. Contudo, o “dia do Senhor” não seria apenas uma volta ao paraíso, Deus inauguraria algo nunca visto antes: um novo céu e uma nova terra, onde o povo de Deus desfrutaria de uma nova vida (Is.65.17-25)[13]. Esta nova vida se torna mais evidente com a chegada do cativeiro babilônico. Deus mostra para a nação que o grande inimigo dela não lhe era externo, mas estava no próprio coração do povo: o pecado. Assim, a revelação do “dia do Senhor” amplia novamente seus horizontes e deixa de ser apenas geográfico, político e econômico e passa a ser espiritual, como no princípio fora revelado na queda de Adão e Eva (Gn.3): dia de justificação e regeneração, dia de purificação da vida daqueles que se chamavam pelo nome de Deus:

Então, aspergirei água pura sobre vós, e ficareis purificados; de todas as vossas imundícias e de todos os vossos ídolos vos purificarei.  26 Dar-vos-ei coração novo e porei dentro de vós espírito novo; tirarei de vós o coração de pedra e vos darei coração de carne.  27 Porei dentro de vós o meu Espírito e farei que andeis nos meus estatutos, guardeis os meus juízos e os observeis.  28 Habitareis na terra que eu dei a vossos pais; vós sereis o meu povo, e eu serei o vosso Deus. (Ez.36.25-28)

Os profetas clássicos, um após o outro, anunciam com ímpeto o escatológico “dia do Senhor”, exortando ao arrependimento e, também, perseverança, dando detalhes deste dia que se aproximava. Malaquias, o último dos profetas clássicos, conclui seu livro proclamando a vinda do precursor do Messias, “o profeta Elias” que seria enviado “antes que venha o grande e terrível dia do Senhor” (Ml.4.5). Por causa do contexto moral-espiritual da nação, o “dia do Senhor” é anunciado como dia terrível, “dia de trevas e não de luz” (Am.5.18). O povo que havia aprendido a ansiar pelo “dia da vingança do Senhor, ano da retribuição pela causa de Sião” (Is.34.8), é exortado a temer o “dia do Senhor”, pois Deus não faria acepção de pessoas naquele dia, e que, portanto, não seria a filiação abraâmica (Mt.3.7-12) que livraria o povo da ira do Senhor, mas a prática do que é bom: “que pratiques a justiça, ames a misericórdia e andes humildemente com o teu Deus” (Mq.6.8). Para que o “dia do Senhor” fosse dia de alegria e não de choro, era necessário converter “o coração dos pais aos filhos e o coração dos filhos a seus pais, para que eu não venha e fira a terra com maldição” (Ml.4.6), antes que chegasse o grande “dia do Senhor”.

O DIA DO SENHOR NO NOVO TESTAMENTO
A esperança alimentada pelas promessas proféticas no coração de Israel não foi frustrada nos dias do Novo Testamento. Israel não havia compreendido a forma e dimensão do cumprimento do “dia do Senhor”, mas sabia que este dia chegaria. Ao chegar o menino Jesus, Deus abriu o entendimento de muitos, revelando-lhes que as promessas estavam se cumprindo (Lc.1-2). Assim, aqueles que viram o menino Jesus nos primeiros dias de sua vida encarnada, tiveram a certeza de estarem contemplando a esperada salvação de Deus (Lc.1.46-55, 68-79; 2.29-32, 38). Foi-lhes revelado que estavam diante do Messias que implantaria a nova era, consumando o “dia do Senhor”, “a favor de Abraão e de sua descendência, para sempre, como prometera aos nossos pais” (Lc.1.55).
O cântico de Zacarias é uma bela profissão de fé com expressões que revelam tanto a esperança política aguardada por Zacarias quanto o anseio pela santificação da vida e culto necessários para a nação. O “dia do Senhor” traria harmonia tanto externa quanto interna para todo o povo de Deus. Zacarias profetiza que o Messias viria “para nos libertar dos nossos inimigos e das mãos de todos os que nos odeiam” e deixá-los “livres das mãos de inimigos” (Lc.1.71,74). Cansado de ver seu povo sofrer nas mãos dos gentios, geração após geração desde o cativeiro babilônico, Zacarias expressa bem seu anseio por libertação do jugo romano. Livres do jugo, o “dia do Senhor” traria também santificação para a nação, livrando-a da interferência dos povos no culto ao Senhor para que “o adorássemos sem temor, em santidade e justiça perante ele, todos os nossos dias [...] para dar ao seu povo conhecimento da salvação, no redimi-lo dos seus pecados” (Lc.1.74,75,79). O que Zacarias não sabia ainda é que a primeira manifestação do “dia do Senhor” era dia de morte, pois o Messias venceria os inimigos de Israel por meio da morte numa cruz.
Durante o ministério de Jesus as pessoas ficaram ansiosas, aguardando que o “dia do Senhor” se consumasse. Até os discípulos escolhidos pediram para sentar-se lado a lado com Jesus, pois esperavam que o reino Davídico fosse implantando pela força e violência (Mt.20.21). As “bem-aventuranças” proferidas por Jesus no sermão do monte (Mt.5-7) não devem ter feito muito sentido para as multidões. Afinal, como Israel venceria Roma se “bem-aventurados são os pacificadores” (Mt.5.9). Quando Jesus se dirigiu para Jerusalém, a multidão se preparou para proclamá-lo Rei de Israel, crendo que ele inauguraria o Reino Messiânico entre eles: “Sabendo, pois, Jesus que estavam para vir com o intuito de arrebatá-lo para o proclamarem rei, retirou-se novamente, sozinho, para o monte.” (Jo.6.15). E, em meio a toda essa expectativa da chegada do “dia do Senhor”, os três anos de ministério se findam com Jesus pendurado num madeiro, símbolo de maldição e vergonha. Todos se sentiram frustrados, pois não haviam compreendido a obra redentora ainda. Haviam depositado toda a esperança em Jesus, aguardando que ele trouxesse o “dia do Senhor”, dia da vitória de Israel sobre os inimigos, dia da salvação do povo de Deus.
Será que a promessa de Deus foi protelada? O “dia do Senhor” não chegou? É interessante o fato que a descrição que os evangelistas fazem da crucificação se parece muito com a profecia de Joel a respeito do “dia do Senhor”. Dentre os evangelistas, Mateus possui interesse peculiar em demonstrar que as Escrituras estavam se cumprindo em Cristo, mostrando a relação entre os eventos ocorridos naqueles dias e as profecias do Antigo Testamento. E, com respeito à crucificação, Mateus é o evangelista que melhor descreve os fenômenos ocorridos. Abaixo, podemos ver o paralelo entre os textos de Mateus e Joel (grifo meu):

Desde a hora sexta até à hora nona, houve trevas sobre toda a terra. [...] Eis que o véu do santuário se rasgou em duas partes de alto a baixo; tremeu a terra, fenderam-se as rochas; abriram-se os sepulcros, e muitos corpos de santos, que dormiam, ressuscitaram. (Mt.27.45, 51-52)
Mostrarei prodígios no céu e na terra: sangue, fogo e colunas de fumaça. O sol se converterá em trevas, e a lua, em sangue, antes que venha o grande e terrível Dia do SENHOR. (Jl.2.30-31)

No entanto, a observação de Hoekema sobre a perspectiva profética é importante. Em geral, as profecias com respeito aos eventos futuros parecem apontar para um único evento histórico. Esse fenômeno ocorre com respeito ao “dia do Senhor”, dando-nos a impressão de que todos os fatos descritos nas profecias se cumpririam num só momento:

Joel, em sua profecia, vê numa única visão, como acontecendo conjuntamente, eventos que de fato estão separados um do outro por milhares de anos. Este fenômeno passível de ser chamado de perspectiva profética ocorre frequentemente nos profetas do Antigo Testamento. [14]

O dia da morte de Cristo foi o dia de sua glorificação, o dia da vitória do Senhor sobre os inimigos de seu povo, pois na cruz do Calvário Jesus cumpriu toda a justiça. Por meio da cruz, Deus trouxe a salvação para seu povo, expulsando o acusador da igreja: “Agora, veio a salvação, o poder, o reino do nosso Deus e a autoridade do seu Cristo, pois foi expulso o acusador de nossos irmãos, o mesmo que os acusa de dia e de noite, diante do nosso Deus.” (Ap.12.10). Segundo Ellis, “é a partir de At 2 que observamos como a igreja primitiva reconheceu que o dia do Senhor tinha iniciado de fato por meio dos eventos da humilhação, morte e ressurreição de Cristo[15]”, Conforme os profetas predisseram, o “dia do Senhor” inauguraria uma nova era na história cósmica, e de Atos a Apocalipse os autores demonstram que a morte e ressureição de Cristo inaugurou o início de um novo tempo, com a chegada do Reino de Deus (Mt.12.28), quando o povo de Deus passa a ser constituído de novas criaturas, pois “se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas” (2Co.5.17). Guthrie observa que “a atividade do Espírito em Pentecostes é vista como um cumprimento direto da profecia do AT. A citação de Joel 2.28-32 em Atos 2.17-21 se refere aos “últimos dias” e à inauguração do “grande e glorioso Dia do Senhor” [16]”.
Segundo Guthrie, “o frequentemente predito Dia do Senhor no AT geralmente se transforma no dia de Cristo nas cartas de Paulo (cf ICo 1.8; Fp 1.6,10; 2.6; c f 2Co 1.14). [17]” Nas cartas paulinas e gerais, o “dia do Senhor” é apontado como promessa futura, na qual os cristãos deveriam estar bem firmados (1Co.5.5; 1Ts.5.2; 2Ts.2.2; 2Pe.3.10). Esse dia será definitivo para toda a terra, pois “virá, entretanto, como ladrão, o Dia do Senhor, no qual os céus passarão com estrepitoso estrondo, e os elementos se desfarão abrasados; também a terra e as obras que nela existem serão atingidas.” (2Pe.3.10 – grifo meu). Portanto, é perceptível a tensão entre a concretização da promessa e o futuro cumprimento do “dia do Senhor”. Ao olhar para o Antigo Testamento, temos a impressão de que o “dia do Senhor” inauguraria todas as promessas divinas num só momento. Contudo, ao olharmos mais de perto, pelas linhas do Novo Testamento, vemos com maior clareza que o “dia do Senhor” se desdobra num longo período, com repercussões políticas e espirituais para a humanidade, conquistadas para o povo de Deus “num só dia” (Is.10.17; 66.8; Zc.3.9). Em Jesus, o cristão é chamado de nova criatura, cidadão do Reino celestial que já chegou, contudo ainda é exortado a aguardar a vida eterna “Porque é necessário que este corpo corruptível se revista da incorruptibilidade, e que o corpo mortal se revista da imortalidade” (1Co.15.53), até que a morte seja definitivamente derrotada (1Co.15.54).
Desta forma, o “dia do Senhor”, ou seja, “primeiro dia da semana”, dia da ressurreição de Jesus é revestido de significado escatológico peculiar, pois a vitória de Jesus sobre a morte é penhor que alimenta a esperança do cristão que aguarda o dia em que desfrutará da imortalidade também. O descanso cristão perpassa a moralidade e tem papel escatológico profético, pois ao guarda-lo em adoração a Deus, o cristão anuncia sua esperança na consumação final da salvação trazida por Cristo ao pecador. O “dia do Senhor” é mais que um memorial do passado, é um símbolo presente que liga o passado histórico ao futuro aguardado pela igreja, segundo a promessa de Deus: “E aquele que está assentado no trono disse: Eis que faço novas todas as coisas. E acrescentou: Escreve, porque estas palavras são fiéis e verdadeiras” (Ap.21.5)

kuriakh/| h`me,ra| NO APOCALIPSE DE JOÃO
A expressão utilizada por João no livro de Apocalipse para se referir ao “dia do Senhor”, kuriakh/| h`me,ra| , difere tanto da Septuaginta, h`me,ra kuri,ou (dia do Senhor), tradução da expressão hebaica hw"hy> ~Ay , quanto dos demais livros do Novo Testamento, th/| mia/| tw/n sabba,twn (o primeiro dia da semana). Poder-se-ia dizer que o autor não desejava criar relação exata com o dia escatológico aguardado pelos fiéis, o dia da volta de Jesus. Mas, é interessante que João não tenha feito uso da expressão usada pelos demais autores do Novo Testamento para se referir ao dia da semana no qual ocorreu a ressurreição de Jesus, dia utilizado pela igreja para descanso e adoração ao Senhor, “o primeiro dia da semana” (th/| mia/| tw/n sabba,twn). Considerando que o apóstolo João escreveu o livro durante o reinado de Domiciano, estando todos os livros do Novo Testamento já escritos; que, provavelmente, João os conhecia, pois circulavam nas igrejas cristãs; e, que o dia da ressurreição possui significado escatológico, conforme as profecias veterotestamentárias: Por qual propósito João escolhe uma expressão singular, kuriakh/| h`me,ra|, para se referir ao “dia do Senhor”?
Conforme Champlin, a expressão evn th/| kuriakh/| h`me,ra|  (no dia do Senhor) deve ser distinguida das demais que ocorrem tanto no Antigo e Novo Testamento por causa de seu contexto. O contexto, segundo Champlin é o culto imperial de onde os cristãos tomaram emprestado o termo kuriakh/|:

Originalmente essa palavra era usada com o sentido de ‘imperial’, algo que pertencia ao imperador romano. Havia também a expressão ‘hemera sebaste’, dia de Augusto, que era o primeiro dia de cada mês, o dia do imperador, quando eram feitos pagamentos em dinheiro. [...] Esse é o uso que se encontra em Didache 14 e Inácio Mago 9, que foram escritos não muito depois da composição deste livro de Apocalipse.[18]

Após examinar o uso do termo kuriakh/| em textos do primeiro e segundo século, Carson conclui que “a partir desses exemplos variados de aplicação, fica claro que o significado do termo kuriako,j é simplesmente sinônimo a (tou/) kuri,ou em todos os casos nos quais (tou/) é usado com função adjetiva junto a um pronome[19]”. Contudo, diferente de (tou/) kuri,ou usado com maior frequência em contextos diversos, kuriako,j não é encontrado com tanta frequência nos primeiros séculos da era cristã. Desta forma, segundo Carson a questão é simples e trata-se tão somente de uma escolha de termos:

Então, por que a integração do termo ao uso cristão comum se deu de modo tão lento? A resposta não é difícil se lembrarmos que não se trata de um termo frequente no grego secular comum dos séculos l e 2. Essa palavra se tornou usual em apenas dois meios: a administração imperial e a igreja cristã; tanto num caso quanto no outro, se tratava do termo independente ku,rioj, que não exigia maiores especificações e ao qual se fazia referência com frequência suficiente para que se reconhecesse a utilidade de um adjetivo para qualificá-lo. [20]

Portanto, quem dará significado teológico ao termo será o contexto no qual é usado. Como já demonstramos, a expressão “dia do Senhor”, em qualquer uma das três formas em que aparece nas Escrituras, incluindo “primeiro dia da semana” carrega em si o conceito escatológico construído em todo o Antigo Testamento. Ao se referir ao “dia do Senhor”, os autores do Novo Testamento apontam para a ressurreição de Cristo, ou para sua volta. E em ambos os casos há uma referência escatológica. Este conceito foi determinante para que se deixasse de observar o Sábado judaico, o sétimo dia da semana, e passasse a usar o primeiro dia da semana para a realização dos cultos cristãos.
Para Kistemaker[21], Ladd[22], Earle[23], Kenner[24], entre outros a expressão evn th/| kuriakh/| h`me,ra|  (no dia do Senhor), refere-se especificamente ao primeiro dia da semana, adotado pela igreja para ser o dia de culto ao Senhor, o descanso cristão. Aos poucos kuri,ou e kuriako,j se tornam mais técnicos, relacionados ao dia cristão de adoração. Conforme Kistemaker, evn th/| kuriakh/| h`me,ra|  se refere ao

dia da ressurreição do Senhor, e no fim do primeiro século os cristãos já tinham começado a indicá-lo não como sendo o primeiro dia da semana, mas o dia do Senhor (comparar a expressão a Ceia do Senhor, 1Co 11.20). É o dia dedicado ao Senhor. O texto não se refere ao eventual regresso do Senhor e o Dia do Juízo, mas ao aparecimento de Jesus a João no primeiro dia da semana - um dia consagrado a Cristo. [25]

O “primeiro dia da semana” deixou de ser um dia comum para o povo de Deus desde a ressurreição de Cristo. Aquele havia sido o dia escolhido por Deus para cumprir todas as suas promessas com respeito à redenção de Israel. Toda a esperança escatológica que ainda resta está relacionada ao “primeiro dia da semana” quando Cristo venceu a morte, ressuscitando dentre os mortos. Ao fazer deste dia o dia da vitória de Jesus sobre o maior inimigo da igreja: a morte, Deus o tornou um dia especial, memorável para todas as gerações, pois nele a igreja recebeu o penhor que garante a vitória no dia final.
Contudo, Carson lembra que “até mesmo as argumentações patrísticas em favor da observância do domingo são conhecidas por não apelarem para uma injunção do Senhor ressurreto.[26]” Bauckham faz uma análise da concepção de variados grupos do cristianismo dos séculos 2º, 3º e 4º com respeito ao Shabbath e o domingo. Conforme Bauckham, “A escatologia do século 2º era dominada pelo conceito de um Shabbath mundial depois da segunda vinda de Cristo. [27]” O cristianismo dos primeiros séculos estava mais preocupado com a volta de Jesus, compreendendo que o dia de descanso, Shabbath, se cumpria em Cristo: “Assim, para os quiliastas Justino Mártir, Irineu e Hipólito, o milênio é o “descanso”, bem como o “reino” dos santos, pois é o descanso sabático de Deus de acordo com Gênesis 2.2 interpretado de maneira tipológica. [28]”. Contudo, a compreensão sobre o papel do “dia de descanso” não era unânime: Segundo Bauckham:

Havia cristãos gentios que adotavam a observância do Shabbath, enquanto outros se consideravam inteiramente livres do mandamento, quer pelo fato de ser uma lei especificamente judaica, ou por seguirem a argumentação paulina de que o Shabbath era uma sombra da realidade manifesta em Cristo. [29]

A partir do segundo século, a separação entre o Shabbath e o “dia do Senhor” está bem nítida e alguns cristãos defendem o “dia do Senhor” como dia de descanso profético em memória da ressurreição de Cristo. Segundo Bauckham, “Na concepção de Inácio, o Shabbath é a insígnia de uma atitude falsa para com Jesus Cristo, enquanto o culto eucarístico no Dia do Senhor define o Cristianismo como a salvação pela morte e ressurreição de Jesus Cristo[30]”. Aos poucos, a igreja segue a tendência judaizante de tratar o “dia do Senhor” como o dia de descanso cerimonial. Desta forma, os cristãos celebravam o “dia do Senhor” em alusão tanto à ressurreição de Jesus quanto ao novo mundo aguardado pela igreja. No entanto, conforme Bauckham, “o verdadeiro sabatismo foi um fenômeno medieval, e não patrístico. [31]

CONCLUSÃO
Em Apocalipse, Jesus é apresentado como Senhor ressurreto que reina sobre toda a história humana. Este poder lhe foi conferido por mérito, por causa de sua morte e ressurreição de forma que “o Dia do Senhor é o dia a partir do qual o Senhor pode reinar sobre o restante da semana.[32]”. Esse dia não é um cerimonial sabatista, mas nele Deus é adorado por toda a criação conforme a visão que João tem do trono de Deus. Neste dia, João vê o triunfo de Jesus, o cordeiro ressurreto digno de abrir os selos (Ap.5.5), e também a vitória final do Senhor sobre todo mal. De forma que, semelhante à Ceia, o “dia do Senhor” é um memorial escatológico que aponta para a ressurreição de Cristo e para a segunda vinda de Jesus. A expressão kuriakh/| h`me,ra|  (dia do Senhor) demonstra a padronização deste dia para os cultos de adoração na igreja cristã. Conforme Bauckham conclui:

O culto no Dia do Senhor é de natureza escatológica. Em tempo de conflito entre as soberanias, a igreja não pode se encontrar com o Senhor sem a oração “Vem, Senhor Jesus” e a expectativa daquilo que pode ser chamado de Dia escatológico do Senhor, o dia em que toda a língua confessará que Jesus é o Senhor. [33]


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] Tradução da expressão evn th/| kuriakh/| h`me,ra|  (no dia do Senhor) encontrada na Vulgata Latina, feita por Jerônimo, no século IV. Desta expressão, procede nosso domingo, o dia do descanso cristão.
[2] BRUCE, F. F.. Apocalipse. In: _______. (Org). Comentário Bíblico NVI: Antigo e Novo Testamento. São Paulo: Editora Vida, 2008, p.2212.
[3] LADD, George Eldon. Apocalipse: Introdução e Comentário. São Paulo: Mundo Cristão, 1980, p.9.
[4] KISTEMAKER, Simon. Apocalipse. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p.34.
[5] HENDRIKSEN, William. Mais que vencedores. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001, p.82.
[6] KRAYBILL, J. Nelson. Culto e comércio imperiais no Apocalipse de João. São Paulo: Paulinas, 2004, p.34
[7] KRAYBILL, 2004, p.42-43
[8] EARLE, Ralph. O livro de Apocalipse. In: Comentário Bíblico Beacon. Rio de Janeiro: CPAD, 2006, v.10, p.401.
[9] BARCELLOS, Edmar. O Sábado judaico e o domingo cristão. Brasília: Projecto Editorial, 2002, p.47.
[10] SMITH, Ralph L. Teologia do Antigo Testamento: história, método e mensagem. São Paulo: Vida Nova, 2001, p.379.
[11] KAISER, Walter C.. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2007, p.53.
[12] Ibid, p. 192.
[13] SMITH, 2001, p.381.
[14] HOEKEMA, Anthony A. A Bíblia e o futuro. São Paulo: Casa Ed. Presbiteriana, 1989, p.13.
[15] ELLIS, David J.. O uso neotestamentário do Antigo Testamento. In: BRUCE, F. F. (Org). Comentário Bíblico NVI: Antigo e Novo Testamento. São Paulo: Editora Vida, 2008, p.1545.
[16] GUTHRIE, Donald. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Cultura Cristã, 2011, p.544.
[17] Ibid, p.302.
[18] CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento interpretado versículo por versículo. São Paulo: Editora Candeia, 1995, p.378.
[19] CARSON, D. A.. Do Sabbath ao dia do Senhor. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p.232.
[20] CARSON, 2006, p.233.
[21] KISTEMAKER, 2004, p.110.
[22] LADD, 1980, p.26.
[23] EARLE, 2006, p.402.
[24] KEENER, 2004, p.789.
[25] KISTEMAKER, 2004, p.128.
[26] CARSON, 2006, p.242.
[27] CARSON, 2006, p.264.
[28] Ibid, p.264.
[29] Ibid, p.265.
[30] Ibid, p.271.
[31] Ibid, p.300.
[32] Ibid, p.254.
[33] Ibid, p.255.

De onde vem a falsa compreensão sobre Maria

Não demorou muito tempo para aparecer os desvios da Verdade no meio do cristianismo já no primeiro século (2Co.11.4; Gl.1.6-7; 1Tm.4.1; 2Tm.2.1-4; 2Jo.1.9). Judeus e Gentios de todas as culturas religiosas foram inseridos na igreja e a conversão da mente não aconteceu instantaneamente (Rm.12.1-2). Além disso, muitos se tornaram membros da igreja sem terem, realmente, sido convertidos, e com o tempo começaram a minar as bases da fé cristã, tentando inserir um tipo de sincretismo religioso dentro do cristianismo, e os personagens cristãos receberam características de heróis, como semideuses do mundo greco-romano. Não foi por acaso que Lucas, escrevendo para os gentios, registrou o breve embate entre Jesus e “uma mulher, que estava entre a multidão, [que] exclamou e disse-lhe: Bem-aventurada aquela que te concebeu, e os seios que te amamentaram! Ele, porém, respondeu: Antes, bem-aventurados são os que ouvem a palavra de Deus e a guardam!” (Lc.11.27-28). Parece que Maria ganhou certo destaque em alguns círculos cristãos já no primeiro século. Esta proeminência feminina pode ter sido criada para justificar a tentativa de algumas mulheres, como a Jezabel do livro de Apocalipse (Ap.2.20), para alcançarem status de líder ou algum tipo de relevância especial. Paulo também precisou combater algumas dessas ousadias ilícitas no meio das igrejas, como está registrado na carta aos Coríntios e à Timóteo (1Co.11.2-16; 1Tm.2.9-15).
Diversas expressões religiosas coabitaram no império romano nos dias do Novo Testamento[1]: os gentios estavam acostumados com figuras femininas proeminentes em sua mitologia greco-romana[2]; grupos ascéticos podem ser encontrados em diversas regiões desde o período interbíblico, conforme as cavernas de Qumram testificam em seus manuscritos judaicos-essênios[3]; além das religiões de mistério que são encontradas entre os gregos e romanos em todo o império[4]. No Novo Testamento aparecem grupos libertinos, mas também ascéticos proibindo o desfrute das coisas boas que Deus criou para serem usufruídas na vida (1Tm.4.1-5), como se toda satisfação corpórea fosse maligna. Alguns desses grupos se desenvolveram um pouco mais, formando grupos gnósticos que apareceram nos séculos II e III da era cristã[5]. O resultado desse desenvolvimento foi a produção literária apócrifa condenada por teólogos e concílios da igreja cristã. O presente texto tem como propósito apresentar uma comparação entre a narrativa de Lucas, acerca da personagem Maria, e a visão apócrifa sobre esta personagem, conforme encontramos nos evangelhos de Pedro e de Tiago.

1. A VISÃO APÓCRIFA SOBRE MARIA

1.1 Apócrifos, bases literárias para extravagantes heresias
São chamados de apócrifos todos e quaisquer livros que procurem arrogar o status de sagrado, inspirado por Deus, sem que de fato o seja[6]. Com isso, não se quer dizer que não possuam alguma informação verdadeira, como ocorre com os livros apócrifos do Antigo Testamento.

Na tradição designaram-se apócrifos aqueles escritos que não fazem parte do cânon bíblico, mas pelo título, pela apresentação e por outros elementos internos e externos se apresentam como textos canônicos reivindicando uma autoridade igual aos do cânon. São livros ou documentos não-autênticos, ou seja, cuja autoria é falsamente atribuída a personagens ilustres para conseguir crédito junto ao público.[7]

Os apócrifos do Novo Testamento possuem algumas características peculiares e “a grande maioria delas pretende transmitir um conhecimento esotérico, oculto, além daquele conhecimento dos apóstolos.[8]” Esse conhecimento oculto que supostamente algum líder e grupo de iniciados possuíam sobre o cristianismo, trazia proeminência sobre os demais grupos cristãos e era usado como meio para alcançar novos adeptos para si. Seu propósito era autenticar os ensinos desses falsos mestres, dando-lhes destaque sobre os demais líderes da igreja enquanto atraía a atenção de leigos no conhecimento das Escrituras Sagradas. Não há lugar para o elemento humilde. Tudo é revestido de especial glória, trazendo superioridade para os portadores de tal conhecimento. O suposto evangelho de Maria é um ótimo exemplo de conhecimento oculto que se propunha ser superior ao que os apóstolos haviam ensinado à igreja:

Pedro disse à Maria, "Irmã, nós sabemos que o Salvador a amou mais que a outras mulheres [cf. Jo 11.5, Lc 10.38-42]. Conte-nos as palavras do Salvador que tens em mente visto que as conhece; e nós não, nem ouvimos falar delas." Maria respondeu e disse, "o que está oculto de vós dividirei convosco."[9]

O fato da liderança da igreja cristã está nas mãos de alguns poucos homens que eram testemunhas de Jesus, não agradou a todos. Em sua terceira carta, o apóstolo João fala acerca de Diótrefes que gostava de ter a primazia e não recebia adequadamente o apóstolo João (3Jo.9). Insatisfeitos de ter que seguir a Palavra de Deus ensinada pelos apóstolos e pessoas próximas a eles (2Tm4.3), alguns indivíduos tentavam autenticar as novas doutrinas que somente eles seriam conhecedores, “quais sonhadores alucinados, não só contaminam a carne, como também rejeitam governo e difamam autoridades superiores” (Jd.8). Outros saíam do meio da igreja e formavam seus próprios grupos, constituindo seitas dentro do cristianismo primitivo (1Jo.2.19). Para dar crédito aos ensinos heréticos, os falsos mestres apresentavam obras que supostamente teriam sido escritas por algum personagem importante para a igreja. Esses ensinos eram extravagantes e atendiam aos anseios do coração pecador que desde a queda deseja ter glória e exaltação. Não há lugar para o elemento humilde dentro dos escritos apócrifos que reivindicam glória em cada detalhe.

1.2 A narrativa sobre Maria nos evangelhos de Pedro e Tiago
Enquanto pouco é dito nos evangelhos canônicos sobre a mãe de Jesus, os evangelhos apócrifos de Pedro e de Tiago, entre outros, se propõem a preencher as lacunas deixadas no Novo Testamento, construindo um conto repleto de intertextualidade judaico-cristã. Assim, as narrativas sobre Maria recuam para os dias antes de seu nascimento, contando quem foram seus pais, como se deu seu nascimento e dias antes de conceber Jesus, até ao suposto dia em que Maria teria subido aos céus diante dos discípulos do Salvador.
O evangelho de Lucas conta a história da família do Messias a partir da aparição do anjo a Isabel e depois a Maria. Enquanto isso, os apócrifos narram os dias antes do nascimento da mãe do Salvador, num texto cheio de intertextualidade com o Antigo e o Novo Testamento. Os pais de Maria eram ricos, mas não tinham filhos, semelhante a Abraão e Sara (Gn.15.1-4), e se chamavam Joaquim e Ana. Esta era estéril e após orações incessantes de ambos, ida de Joaquim ao deserto por quarenta dias e quarenta noites, como Moises, Elias e Jesus (1Rs.19.8; Mt.4.1-2), e visita de um anjo a Ana, como ocorreria com a própria Maria (Lc.1.26-31), prometendo-lhe descendência que seria conhecida no mundo todo, nasce Maria, filha da promessa, entre cânticos de gratidão de sua mãe que como Ana (mãe de Samuel: 1Sm.2.1-10) e Maria (mãe de Jesus: Lc.1.46-55), louva ao Senhor por sua filha. Maria é criada longe de coisas impuras enquanto era entretida por doze donzelas hebréias virgens. O nascimento de Maria é assemelhado ao de grandes profetas como Samuel e João Batista (1Sm.1.1-2.11; Lc.1.1-25), adornado com muita simbologia e ideais ascéticos. E, como uma novilha de três anos (Gn.15.9; 1Sm.1.24), Maria é consagrada ao Senhor aos três anos de idade e deixada no templo, como ocorrera com Samuel nos dias de Juízes (1Sm.1.11, 21-28). Sentada no terceiro degrau do templo, ela dança na presença de Deus e passa a morar nos aposentos sagrados, alimentada por anjos que a serviam, como ocorrera com Elias que fora servido por corvos (1Rs.17.4-6) e com Jesus que foi servido por anjos no deserto (Mc.1.13). O sumo sacerdote ordenou que os viúvos lhe trouxessem cada qual um bastão, semelhante à confirmação da escolha da tribo de Levi para o serviço sacerdotal (Nm.17), e do bastão de José saiu uma pomba como sinal de que Deus o escolhera para ser o guardião da jovem Maria que já estava com doze anos e se conservava imaculada aos olhos de Deus.
Tendo ido para a casa de José, Maria recebe a visita do anjo do Senhor e a narrativa de Lucas é quase que transcrita em blocos, com enxertos que preenchem o enredo. A inocência de José e Maria quanto à concepção sobrenatural desta é atestada pelas águas da prova do Senhor (Nm.5.11-31), trazendo admiração por parte de toda a cidade que recebe a confirmação da parte de Deus de que Maria era virgem e que a criança em seu ventre era o Filho de Deus. Grávida, Maria ora está triste ora está alegre, e este fenômeno é atribuído à visão de dois povos diante dos olhos de Maria: um povo que chora e outro que se alegra. Assim, o texto relaciona Maria com Rebeca de quem saíra duas nações (Gn.25.21-23). Tendo chegado o dia de dar a luz, Maria é levada por José para uma gruta e lá tem seu filho, sozinha (talvez por influencia da mitologia greco-romana), enquanto José vai à procura de uma parteira. Além da narrativa da presença dos três magos e a estrela brilhante registrada nos evangelhos canônicos (Mt.2.1-12), o momento em que Maria está dando a luz é repleto de fenômenos incríveis. Tudo parou ao redor da gruta e uma nuvem luminosa a cercava impossibilitando a vista de seu interior. De dentro saía uma luz tão forte que não era possível contemplá-la e tendo esta minguada logo se pode ver o menino nos seios de sua mãe. A narrativa não enfoca o menino que nasceu, como fazem os evangelhos canônicos, pois nem mesmo o nome do menino é citado. O foco está sobre a mãe que mesmo depois de ter dado a luz permanece virgem conformo constatou Salomé, amiga da parteira[10].
Assim, nos apócrifos, Maria é apresentada com beleza e virtude superior às demais pessoas, além de ser transmissora de paz ao coração daqueles que a ouvem.[11] Maria é portadora de um conhecimento oculto que nem mesmo os doze discípulos possuíam[12]. Ela é a mais bem-aventurada, e se destaca em sabedoria. Com graça e ternura intercede e ajuda muitas pessoas a obterem milagres por meio de seu filho. Anjos falam com Maria e esta tem visões dentre as quais recebe a revelação de sua assunção que ocorreria em três dias após a visão. O apóstolo João pede desculpas por não ter cuidado dela adequadamente, e os demais apóstolos, inclusive Paulo, recebem a revelação de que a mãe do salvador seria assunta aos céus. Por fim, com a face brilhante, rodeada pelos discípulos do Salvador e uma voz celeste dizendo: “Bendita és tu entre as mulheres”, a alma de Maria é assunta aos céus, abraçada nos pés pelos discípulos que desejavam ser por ela santificados.[13] Dessa forma, os apócrifos conseguem colocar Maria lado a lado com Jesus como intercessora nas regiões celestes.
Num misto de culturas religiosas, os autores das narrativas sobre Maria mesclam os Escritos do Antigo e Novo Testamento[14], com tradições judaicas e até mitologias greco-romanas, formando textos ricos em lendas as quais procuraram creditar, relacionando-as com textos das Escrituras Sagradas cristãs. Com os apócrifos da natividade de Maria o feminino é adornado de glória e poder, conferindo assim credibilidade para possíveis lideranças femininas que no cristianismo nunca foram aceitas. Esses textos agradaram a grandes grupos femininos presente em círculos cristãos diversos e atraíram aqueles que estavam acostumados com o feminino no ambiente sagrado pagão cheio de deusas.

1.3 Ausência do elemento humilde na narrativa apócrifa
Com ou sem paralelos no Antigo Testamento, as narrativas sobre Maria são revestidas de glória e exaltação. Não há lugar para o elemento humilde entre os personagens principais que sempre são cobertos de honras e realizam coisas miraculosas, direta ou indiretamente, transformando objetos simples em relíquias sagradas. A humildade presente nas atitudes dos personagens são citações dos evangelhos canônicos e formam uma pequena parte do texto. Essa intertextualidade era necessária para embasar a obra, relacionando-a estritamente com os livros sagrados que estavam em circulação no seio da igreja, conferindo credibilidade e autoridade à obra que procurava ganhar lugar entre os fiéis. Contudo, até o gesto humilde nos livros apócrifos é usado como expressão de grandeza espiritual que destaca o personagem dentre as demais pessoas comuns. Abaixo, foram enumerados três tópicos que revelam a ausência do humilde na narrativa apócrifa: riqueza versus pobreza; sobrenatural versus natural; ascético versus comum.
Riqueza versus pobreza
Ouro, presentes ricos, perfumes caros e pessoas importantes como sacerdotes, príncipes e reis adornam a família de Jesus no decorrer do conto. A narrativa começa com um homem rico e afamado em Israel, chamado Joaquim.[15] Este homem será o pai de Maria. Antes de Maria ter completado um ano, foram chamadas donzelas hebréias virgens para cuidarem dela, o que demonstra o alto poder aquisitivo da família que podia pagar pelas virgens. Maria, então é criada com regalias de uma família abastada. O aniversário de um ano de Maria é festejado com um grande banquete e os principais dos judeus são convidados: sacerdotes, escribas, príncipes e o sinédrio. Portanto, a família era importante dentre os judeus e Maria foi apresentada com graça diante de todos, se tornando afamada entre os principais de Israel. Após ter completado doze anos, Maria foi entregue aos cuidados do viúvo José que também era homem de boas posses, pois era construtor. José não é um simples carpinteiro e nem transparece ser de família simples. Quando Maria está para dar a luz, José a deixa numa caverna, pois estavam em campo aberto. O humilde estábulo, onde Jesus foi posto numa manjedoura, é substituído por uma caverna revestida de glória, pois “parecia-se com um templo augusto, onde reis celestiais e terrestres celebravam a glória e os louvores de Deus por causa da natividade do Senhor Jesus Cristo”[16]. Não há menção do sacrifício oferecido por José e Maria e, ao circuncidarem Jesus colocaram seu prepúcio num vaso com perfume caríssimo, perfume de alabastro, de óleo de nardo velho, que é identificado com o perfume de trezentos denários que Maria derramou sobre Jesus, dias antes de sua morte (Mc.14.5; Jo.12.5). O pano que Maria dá para os magos é considerado de um preço incalculável e é colocado entre os tesouros, como uma relíquia sagrada. No curso de suas viagens, Maria se encontra com a esposa de um príncipe que dá uma festa para a “sagrada família”, além de presentes de gratidão pela cura do filho leproso. Outro homem que teve um feitiço quebrado dá um grande banquete para eles. Mais adiante, a família passa a noite numa casa nobre. Em Mataréia, Jesus faz surgir uma fonte que produz um bálsamo de seu suor. Em outra cidade, Maria encontra mais uma princesa que tinha lepra. Em outra ocasião, José é contratado para fazer o trono de um rei. Nobres e ambientes pomposos fazem vários dos cenários visitados pela família durante a jornada.
Portanto, o estereótipo de uma família humilde, sustentada por um simples carpinteiro e que não tinha condições de oferecer um cordeiro em sacrifício pelo nascimento de Jesus, é substituído pelo estigma de uma família de origem nobre e sempre bem servida entre pessoas da nobreza. Diversos dos personagens que recebem benefícios dos poderes do filho de Maria eram pessoas de relevante status social e excelentes condições econômicas. O elemento humilde é retirado das narrativas dando lugar a uma vida próspera.

Sobrenatural versus natural
Além de riqueza, conforto e status, as narrativas revestem a família de Jesus com o sobrenatural que está presente desde o nascimento de Maria. Ela nasce como obra milagrosa, pois sua mãe era estéril. Tendo sido deixada no templo, Maria é sustentada por anjos que a alimentam. Quando Maria faz doze anos, José é escolhido para ser o esposo de Maria por meio de um sinal miraculoso de Deus. Quando Maria está dando à luz, o tempo pára, uma nuvem luminosa reveste a caverna, que brilha mais do que o sol ao meio-dia, e, mesmo após ter dado a luz, Maria continua sendo virgem. Por só acreditar vendo, semelhante a Tomé (Jo.20.24-27), Salomé tem sua mão carbonizada. A faixa que envolvia Jesus, e é dada aos magos, não se queima no fogo. Tendo começado a viagem de fuga por causa de Herodes, um rastro de milagres vai sendo deixado pela família por onde passa: endemoniados são libertos, leprosos são curados, mortos são ressuscitados, ladrões são espantados, feitiços são quebrados, fonte de bálsamo surge do nada, pessoas são curadas de pestes, meninos são livrados da morte, objetos ganham vida e outros mudam de forma, pessoas morrem por afrontarem Jesus e sua sabedoria maravilha a todos. Quase todos os milagres que ocorreram foram administrados por Maria que, sabendo quem seu filho era, mediava curas com objetos de uso pessoal de Jesus para realizar os milagres nas pessoas que apresentavam seus problemas. A maior parte da narrativa se detém a contar os milagres realizados por Jesus nos braços de sua mãe que agia como uma mediadora, ou intercessora, entre o povo e o Filho de Deus. O comum ganha valor especial ligado ao sobrenatural, e semelhante ao rei Midas, tudo o que a família tocava recebia nova roupagem de forma que as cidades por onde a família trafegou não foram mais as mesmas.

Ascético versus comum
Maria não aparece como uma mulher comum entre as mulheres de Israel. Para justificar o privilégio que ela recebeu de ser a mãe do Salvador, as narrativas realçam a vida de Maria apresentando-a como a eterna virgem escolhida por Deus. Maria é chamada de “beatíssima virgem Maria”[17] Desde cedo, os pais tiveram cuidado para que Maria não tocasse em nada impuro e seus pés foram guardados para o Templo de Deus onde ela ficaria como cumprimento do voto de sua mãe[18]. Para que cuidassem dela, foram chamadas donzelas virgens hebréias, ou seja, puras moças de Israel. Maria é abençoada diversas vezes por sacerdotes e príncipes. Consagrada para o Senhor, Maria é deixada no templo e lá fica até seus doze anos, sendo servida por anjos, separada de tudo que é comum. Ela é a virgem do Senhor, por isso os sacerdotes são orientados para escolher dentre os homens apenas viúvos que teriam a missão de cuidar de Maria. Ela não iria compor uma família como as demais jovens. Tudo em sua vida concorre para sua missão, de forma que a vida de Maria é traçada desde o início de um modo especial, preparando-a para ser a mãe do Filho de Deus. José viaja e ao voltar já a encontra grávida, pois Maria concebeu da Virtude de Deus. Assim, Maria nunca foi tocada por homem algum e mesmo tendo dado à luz permanece virgem por todos os seus dias. A partir do nascimento de Jesus, sua vida se resumirá em cuidar de Jesus e mediar entre o povo e o Filho de Deus. Como mãe do Filho de Deus, consagrada desde o ventre de sua mãe e separada por toda a sua vida, Maria media todo encontro entre os pecadores e o Senhor Jesus. As pessoas vêem na família um lar de deuses e aclamam Maria pelos favores que realiza. O povo chama Maria de “nossa senhora” e a família é denominada como: “Sagrada Família”.

2. MARIA NOS EVANGELHOS CANÔNICOS

2.1 Surgimento e propósito dos livros canônicos
Após a subida do Senhor Jesus aos céus, os discípulos trataram de aguardar a promessa da dádiva do Espírito Santo para começarem a obra de propagação do evangelho do Reino. Então, no dia de pentecostes, a promessa se cumpre e os discípulos começam a testemunhar sobre os três anos de ministério de Jesus, tendo como clímax a morte e ressurreição de Cristo. Os apóstolos foram testemunhas de Cristo e o propósito deles era anunciar a glória de Jesus.
Os evangelhos canônicos surgem no seio da igreja, escritos por apóstolos ou homens que estavam bem relacionados com o grupo dos apóstolos, e foram naturalmente reconhecidos como Palavra de Deus. Enquanto os livros apócrifos são tardios, surgem a partir do segundo século, os evangelhos canônicos surgem cedo no meio da igreja, como necessidade de registrar e difundir entre todas as igrejas tudo o que estava sendo testemunhado pelos apóstolos. Aqueles que haviam ouvido, agora tinham em suas mãos o registro de tudo e poderiam ler e reler toda a história, bem como propagá-la com precisão entre os judeus e gentios. A preocupação primária era a conservação do registro dos fatos que formavam o evangelho, as boas novas do Senhor Jesus, para que a igreja se mantivesse firme no objeto de sua fé que havia recebido dos apóstolos. Afinal, o evangelho não é uma mensagem existencial apenas, mas o agir de Deus na história humana. A igreja recebeu os livros sagrados e não só os guardou, mas logo os reproduziu espalhando-os pelo império Romano. E, se no início os milagres creditaram os apóstolos perante o povo, na segunda metade do primeiro século já não eram mais necessários, pois todos haviam reconhecido a Palavra de Deus testemunhada e escrita pelos homens que Jesus escolhera e por aqueles que estiveram próximos a eles. Dessa forma, os livros canônicos balizavam toda doutrina que a igreja deveria crer, servindo, também, como padrão para a rejeição de toda heresia que surgisse. Por esta razão, os livros apócrifos foram rejeitados naturalmente pela igreja. E para que os leigos não fossem enganados, os concílios e pais da igreja trataram de formalizar a rejeição a tais obras que contrariam os ensinos da Palavra de Deus.

2.2 A narrativa sobre Maria nos evangelhos
Divergindo dos textos apócrifos, os evangelhos são bastante objetivos nas narrativas da natividade de Jesus e dispensam completamente a história do nascimento de Maria. Eles se atém a demonstrar que aconteceu naqueles dias tudo conforme foi predito pelos profetas do Antigo Testamento (Mt.1.23). O foco está em Jesus, o Messias prometido Salvador do mundo (Jo.20.30-31), por quem se alcança a vida eterna, e os evangelistas não deixam de narrar os fatos com fidelidade, como fazem os apócrifos. O propósito é relatar o evangelho tal como este acontecera, afinal é por meio do conhecimento da Verdade que o pecador é salvo. Maria é descrita como uma mulher virtuosa, pois: creu na Palavra do Senhor, proferida pelo anjo; se submeteu à vontade de Deus (Lc.1.26-45); engrandeceu ao Senhor por tamanha graça recebida (Lc.1.46-55); foi humilde mesmo com tamanha honra recebida; e, sempre guardava em seu coração tudo que via e ouvia parte de Deus (Lc.2.7,19). Junto com seu marido ela cumpriu toda a lei de Israel (Lc.2.22-24, 41-42) e se preocupou com seu filho (Lc.2.48-51). E, somente depois do Batismo de Jesus, Maria revela saber que Jesus possuía poder, conforme bodas em Caná da Galiléia (Jo.2.1-5). Contudo, os evangelhos contam que Maria habitava entre o povo como uma mulher comum (Mt.13.55; Mc.6.3) e assim como os discípulos compreenderam a pessoa e ministério de Jesus pouco a pouco, assim também Maria compartilha de semelhantes dúvidas, preocupações e anseios até a ressurreição de Jesus (Mc.3.21,31). E, na morte e ressurreição, Maria está presente chorando com a crucificação e depois se alegrando com a ressurreição, como qualquer mãe faria por seu filho, pois ainda não havia compreendido tudo (Mc.16.1-11). Se houve alguma preocupação em transmitir uma boa e correta imagem de Maria, esta é transmitida por Lucas, em seu segundo volume, mostrando ser Maria uma mulher de oração (At.1.14), e isto era suficiente para a igreja, pois Maria era uma irmã querida como todos os demais cristãos.
Assim, os personagens nos Evangelhos são homens e mulheres simples, comuns dentre os de sua geração que recebem a graça do chamado para cumprir uma missão específica, cooperando para a consumação do propósito redentor de Deus. Dessa forma, o centro de toda a história Bíblica é o Senhor Deus (Pai, Filho e Espírito Santo) que manifesta seu poder e glória na simplicidade da história humana, consumando a redenção por meio da vergonha da cruz, na qual Jesus, o Rei dos reis e Senhor dos senhores, morre pagando os pecados de seu povo. E como os demais personagens, Maria cumpre seu papel e em sua pequena vida Deus é glorificado.[19] Distante de receber algum tipo de atenção especial, Maria sai de cena bem no início dos evangelhos canônicos, de forma que Jesus não divide sua glória com mais ninguém durante toda sua vida e ministério, morte, ressurreição e ascensão.

2.3 A glória de Deus na vida da humilde Maria
Uma humilde e simples serva de Deus. Esta é a imagem de Maria nos evangelhos canônicos. Sempre que Maria é apresentada nas narrativas, sua descrição não se distancia das características de uma mulher comum do primeiro século. Nisto, Deus é glorificado, pois revela sua graça superabundante na vida de pessoas comuns. Maria era uma jovem virgem de Nazaré, uma simples cidade da Galiléia, e estava desposada de José, um simples carpinteiro. Eles teriam uma vida normal como qualquer outro casal, mas o anjo Gabriel lhes traz uma notícia que muda o rumo inicial da vida do casal. Maria é escolhida para ser a mãe do Salvador, o Filho de Deus, e José teria um importante papel de cuidar de Maria e Jesus. Contudo, o foco não estaria na mãe nem em José, mas tão somente sobre “o ente santo que há de nascer” (Lc.1.35). Maria aceita com humildade e dá graças a Deus pelo privilégio. O que uma jovem simples como Maria teria para oferecer ao Filho de Deus? Na simplicidade de Maria e José, Deus manifestaria seu cuidado, fidelidade e graça, e todos os passos seriam orientados e conduzidos pelo Senhor. Na simplicidade da vida deles, Jesus foi glorificado, pois seu esvaziamento da glória, vivendo humildemente como um de nós, precedeu seu ministério, pois toda sua vida foi simples e humilde. Após o nascimento, a família oferece a oferta ordenada por Moisés e, por causa da condição econômica humilde, eles ofertam apenas uma rola ou dois pombinhos (Lc.2.22-24//Lv.12.6-8). Nada de extraordinário acontece além das profecias que são pronunciadas por alguns personagens, e Maria nada faz a não ser guardar as palavras ouvidas em seu coração. A missão dela é cuidar de Jesus com fidelidade para que no devido tempo Ele seja revelado ao mundo, e como João Batista se pronunciou: “Convém que ele cresça e eu diminua” (Jo.3.30), também Maria veria a glória de seu filho ser exaltada perante o mundo. Na pequena e frágil vida de Maria, Deus revela sua glória e poder redentor se identificando com o homem, preservando sua vontade e manifestando seu poder.

CONCLUSÃO
Maria é descrita nos evangelhos canônicos, à semelhança de todos os demais personagens da Bíblia, como uma pessoa agraciada por Deus, contudo sujeita às mesmas desventuras e fraquezas que qualquer outra ser humano. Dessa forma, sem privá-la de sua benção divina, as Escrituras, registram fielmente os fatos históricos e mantém o foco sobre o único que é digno de receber toda honra e toda glória em todas as gerações: Deus.
No entanto, os apócrifos distorcem a imagem de Maria, dando-lhe status de heroína mediadora entre Deus Filho e os homens. Para dar credibilidade aos seus ditos, seus autores fazem diversas citações tanto do Antigo quanto do Novo Testamento. Contudo o principal critério para a rejeição dos apócrifos é exatamente a desarmonia deles com relação aos livros canônicos. Ao contrariarem, doutrinaria e/ou historicamente, os livros canônicos, a igreja rejeitou os apócrifos, retirando-os de entre os livros lidos nos cultos. Alguns que liam e recomendavam a leitura de apócrifos foram convencidos em sua comparação aos livros canônicos que deveriam ser excluídos dos círculos cristãos por causa das heresias.[20]
Infelizmente, os apócrifos não deixaram de ser lidos, e com passar do tempo foram aceitos em alguns grupos cristãos como expressão de sua fé. O resultado deste desvio da Verdade pode ser visto em diversas seitas cristãs, dentre elas a mais expressiva é o Catolicismo Romano, que exalta Maria indevidamente, colocando-a ao lado de Jesus nas regiões celestes, como eterna intercessora[21]. Esse fenômeno demonstra quão perigoso é a tolerância às heresias no seio da igreja, pois a conduz pouco a pouco à completa perdição.



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[1] BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Petrópolis: Editora Vozes, 1986, vol. 1, p.32-34
[2] MÉNARD, René. Mitologia Grego-Romana. São Paulo: Opus Editora, 1991, vol. 1, p.22-32.
[3] GUNDRY, Robert H. Panorama do Novo Testamento. São Paulo: Editora Vida Nova, 2ª Ed. 1999, p.56
[4] ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p.7-8
[5] SANTOS, João Alves dos. Cristianismo e Gnosticismo: Uma avaliação de sua incompatibilidade ao ensejo da publicação do evangelho de Judas. In: Fides Reformata XI, nº 1, 2006, p.51-81
[6] REID, Daniel G. Dicionário Teológico do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2012, p.114
[7] ZILLES, Urbano. Evangelhos apócrifos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p.9-10.
[8] LOPES, Augustus Nicodemus. Porque não aceitamos os evangelhos apócrifos. São Paulo: Fides Reformata, 2012, Vol. 17 p.14.
[9] Excertos do Evangelho de Maria. In: PROENÇA, Eduardo. Apócrifos da Bíblia e pseudo-epígrafos. Tradução: Cláudio J. A. Rodrigues. São Paulo: Fonte Editorial, 2005, p.610
[10] Proto-Evangelho de Tiago. In: PROENÇA, Eduardo. Apócrifos da Bíblia e pseudo-epígrafos. Tradução: Cláudio J. A. Rodrigues. São Paulo: Fonte Editorial, 2005, p.519-530
[11] Evangelho de Pedro. In: PROENÇA, Eduardo. Apócrifos da Bíblia e pseudo-epígrafos. Tradução: Cláudio J. A. Rodrigues. São Paulo: Editora Cristã Novo Século, 2004, p.641-671
[12] Excertos do Evangelho de Maria, p.609-611
[13] Passagem da Bem-aventurada virgem Maria. In: PROENÇA, Eduardo. Apócrifos da Bíblia e pseudo-epígrafos. Tradução: Cláudio J. A. Rodrigues. São Paulo: Fonte Editorial, 2005, p.771-776
[14] MORALDI, Luigi. Evangelhos Apócrifos. São Paulo: Editora Paulus, 2008, p.55-60
[15] Proto-Evangelho de Tiago, 2005, p.519-530
[16] Evangelho de Pedro., 2004, p.644.
[17] Passagem da Bem-aventurada virgem Maria, 2005, p.772
[18] Proto-Evangelho de Tiago, 2005, p.520.
[19] CARSON, D. A.; MOO, Douglas J.; MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1997, p.144.
[20] LOPES, 2012, p.16.
[21] Carta apostólica Rosarium Virginis Mariae do Sumo Pontífice João Paulo II ao episcopado, ao clero e aos Fiéis Sobre O Rosário. Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/apost_letters/ documents/hf_jp-ii_apl_20021016_rosarium-virginis-mariae_po.html. Acesso em 10 de julho de 2014.