Pages

terça-feira, 13 de outubro de 2015

O evangelho de João e os sinóticos

Na verdade, fez Jesus diante dos discípulos muitos outros sinais que não estão escritos neste livro. Estes, porém, foram registrados para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome.” (Jo.20.30-31)

Mesmo uma leitura superficial dos quatro evangelhos possibilita uma nítida percepção das diversas diferenças entre o evangelho de João e os evangelhos sinóticos, tanto na seleção dos eventos vividos por Jesus quanto na seleção das mensagens ditas por Ele. Caso o leitor seja mais detalhista, conseguirá encontrar outras diferenças quanto ao estilo literário, uso de termos e geografia predominante. Contudo, há diversas informações que podem ser encontradas em, pelo menos, dois evangelhos sinóticos e no evangelho de João como similaridades entre eles (política, geografia, batismo por João batista, família de Jesus, sua missão e relação com o Pai, seus títulos, seus discípulos etc.). Diferenças e semelhanças existem porque o grande evento que envolveu o nascimento, vida, ministério, paixão e ressurreição de Jesus foi maior do que as narrativas nos contam. Sendo assim, dentro do universo histórico das boas novas cabe toda a rica diversidade entre os evangelhos.
Conforme o evangelista João: “Na verdade, fez Jesus diante dos discípulos muitos outros sinais que não estão escritos neste livro.” (Jo.20.30) e “Há, porém, ainda muitas outras coisas que Jesus fez. Se todas elas fossem relatadas uma por uma, creio eu que nem no mundo inteiro caberiam os livros que seriam escritos” (Jo.21.25). Estes versículos parecem justificar a diferença do evangelho de João em relação aos três evangelhos sinóticos que o antecederam em data de composição. Conforme estes dois versículos, poder-se-ia dizer que Jesus falou e fez tantas coisas que cabem as diferenças tanto no estilo oratório quanto na diversidade de assunto e obras realizadas em seus três intensos anos de ministério.
Apenas os evangelistas Mateus e João foram testemunhas oculares do ministério de Cristo. Este fato deveria ser ponderado como algo importante na datação do evangelho de Mateus, provavelmente o mais hábil na escrita dentre os demais apóstolos e que pode ter registrado diversos eventos logo após seu ocorrido, formando, assim, um diário do ministério de Jesus. Apesar disso, há algumas razões que favorecem a escrita tardia do evangelho de João. Tanto o testemunho externo dos pais da igreja quanto o desenvolvimento teológico interno do próprio evangelho de João, que dá ênfases que não haviam sido tratadas ainda por Mateus e os outros evangelistas Marcos e Lucas, indicam que seu evangelho foi posterior aos sinóticos. Esta diferença na seleção e organização dos fatos e mensagens de Jesus está relacionada aos propósitos do evangelista. Primariamente, o apóstolo João desejava promover a fé por meio do conhecimento de Cristo, o Filho de Deus (Jo.20.31). Mas, além disso, João traz respostas a questões que estavam em pauta em seus dias tanto dentro da igreja quanto fora dela, tendo em vista aqueles que procuravam minar as bases da fé cristã.
A ênfase teológica de João difere propositadamente da teologia dos sinóticos. Considerando a data mais tardia do evangelho de João, pode-se dizer que havia problemas presentes nos dias em que o apóstolo João escreveu que ainda não estavam presentes nos dias dos demais evangelistas que viveram no período inicial da igreja cristã com forte presença de judeus em seu meio, além da indesejada perseguição promovida por grupos judaizantes dentro e fora da igreja. Nos evangelhos sinóticos, Jesus prega enfaticamente o Reino de Deus que está se aproximando como cumprimento escatológico, e contrapõe o judaísmo vigente que vivia a aparência da legalidade sem compreensão real da revelação de Deus que se cumpria diante dos olhos daquela geração. Os sinóticos demonstram que o cristianismo é o cumprimento das promessas messiânicas do Antigo Testamento, e explicam o motivo da esperança messiânica não ter sido satisfeita conforme grande parte do judaísmo esperava que fosse. Os evangelhos sinóticos contam inúmeros fatos, cronologicamente, que atraem os leitores para a maravilha da fé em Jesus e testificam a mensagem pregada pelos apóstolos. Uma vez que a fé cristã está alicerçada na intervenção de Deus na história, os evangelhos sinóticos oferecem as bases históricas dessa fé. A cristologia é desenvolvida paulatinamente dentro do enredo dos evangelhos sinóticos. Os discípulos só compreendem quem Jesus é no final de seu ministério e somente após a ressurreição é que entenderam a obra que Jesus veio fazer. Nos sinóticos os apóstolos são escolhidos por Jesus e, também, revestidos de autoridade, confirmando as credenciais que eles possuíam perante a igreja. Os onze apóstolos (doze menos Judas), não outros quaisquer, foram escolhidos por Jesus para testemunhar os eventos em torno de Cristo e liderar a igreja, e, dentre esses eventos, alguns deles foram realizados na presença apenas de alguns dos discípulos (Pedro, Tiago e João).
Enquanto isso, o evangelho de João inicia sua obra dissertando um pouco sobre o logos eterno presente em Gênesis 1, Jesus, a luz do mundo. Seu evangelho registra apenas sete sinais operados por Jesus, cercando-os de longos discursos que dão significado ao que Jesus fez. O Reino de Deus não é o ponto central para o quarto evangelho, mesmo que seja anunciado como um cumprimento escatológico, não apenas futuro, mas, principalmente, presente no meio da igreja e manifesto na vida cristã diária. No quarto evangelho, o Reino se manifesta por meio da fé e testemunho ao se praticar a vontade de Cristo. João não se preocupa em trazer informações sobre a escolha e autoridade dos discípulos escolhidos para serem apóstolos da igreja. Os judeus parecem não ser a principal preocupação da igreja nos dias de João, ainda que se constitua num problema ainda vigente.
Diferente dos sinóticos, o evangelho de João possui uma diversidade temática concentrada, transmitida por diversos longos discursos de Jesus. Ou seja, alguns temas se repetem em mais de um bloco do evangelho. Os sinóticos abordam diversos temas ético-morais que caracterizam o Reino de Deus escatológico. Enquanto isso, João aborda temas mais conceituais com a presença de diversos termos antitéticos (luz e trevas, céu e terra, verdade e mentira, alto e baixo). João não põe palavras na boca de Jesus nem distorce a história para privilegiar seu ponto de vista apaixonado, mas seleciona suas palavras para combater desvios doutrinários dentro de alguns grupos na igreja, além de outros fora dela. São sugeridos pelo menos três grupos contra os quais João também destina sua obra: o grupo seguidor de João Batista, o grupo de Judeus ainda presentes e o grupo protognostico do primeiro século, que trará maiores problemas no segundo século quando o gnosticismo estará mais bem organizado.
Essa diversidade não anula a presença de um tema predominante que amarre todos demais assuntos abordados, dando uma direção coesa para a obra. Conforme, João 20.30 a seleção de materiais tinha como propósito promover a fé em Jesus como Filho de Deus. A ênfase não recai sobre Jesus como Filho do Homem, o Messias prometido, como ocorre nos evangelhos sinóticos, mas sobre a divindade de Jesus, o EU SOU, que realizou maravilhas por ser o Filho de Deus. Para mostrar a glória singular de Jesus, o Filho de Deus, João usa termos elevados para se referir a Cristo (logos divino, Verdade, Pão do céu, Vida, do Alto, Eu Sou etc.) contrapondo a medíocre realidade terrena dos demais homens. João quer trazer o advento histórico para perto de seus leitores, por isso o autor faz um largo uso do presente histórico, afinal o Filho de Deus permanece para sempre, e, por meio do Espírito Santo, habita na igreja. Não basta crer no Messias crucificado, pois é necessário crer no Filho de Deus ressurreto que vive para todo o sempre.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARSON, D. A. Historical Tradition in the Fourth Gospel: After Dodd, What? R.T. France & David Wenham, eds., Gospel Perspectives, Vol. 2: Studies of History and Tradition in the Four Gospels. Sheffield: JSOT Press, 1981, p.83-145.
CARSON, D. A.; MOO, Douglas J.; MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1997, p.19-65.
HARRIS, W. Hall. Major Differences Between John and the Synoptic Gospels. Disponível em: https://bible.org/seriespage/major-differences-between-john-and-synoptic-gospels. Acesso em: 31 de julho de 2014, às 14h30min.
HÖRSTER, Gerhard. Introdução e Síntese do Novo Testamento. Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 1996, p. 8-21.
LADD, George Eldon. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2001, p.199-207.
MADRIGAL, Ramón Anthony. A Communities of Practice Approach to the Synoptic Problem. Teaching Theology & Religion 15, nº 2, 2012, p. 125-144.
MINCATO, Ramiro. O Título “Filho de Deus” e os dois níveis do quarto evangelho. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006, v.36, nº154, p.895-904.
REID, Daniel G. Dicionário teológico do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2012, p.1050-1060.
SMITH, Shawn C. A defense of using patristic sources in synoptic problem research. Stone-Campbell Journal 16, nº 1, 2013, p. 63-83.

Nenhum comentário:

Postar um comentário